29/03/2006

Notícias do desencanto

Durante seis longos anos dirigi um jornal regional, o Outra Banda, quinzenário que tentava, esforçadamente, cobrir a realidade social, económica e política da Península de Setúbal. Pensava, no entanto – e continuo a pensar – que tudo o que acontecia em Portugal e no mundo, resultante das grandes orientações da política nacional e internacional, se reflectia, directa ou indirectamente, nesta laboriosa região que o Tejo e o Sado limitam geograficamente, mas não isolam do resto do país e do planeta. Assim, questões de âmbito mundial, como a guerra, ou de dimensão nacional, como as políticas de emprego, educação ou saúde, sempre tiveram espaço e destaque nas páginas do Outra Banda de então. Nunca pretendi, por outro lado, que o jornal fosse um jornal independente, (ou falsamente independente, como são todos os outros) mas, sim, um jornal que tomasse partido ao lado daqueles que mais precisam de voz e de apoio na luta quotidiana pela sobrevivência, ou seja, a grande maioria dos quase 800 mil seres humanos que habitam ou labutam nesta península.

Por isso, não me limitava, por exemplo, a noticiar o encerramento de uma empresa e o despedimento de 400 trabalhadores, sem enquadrar isso na respectiva moldura política, isto é, como reflexo das orientações políticas e económicas que encaram os trabalhadores – pessoas de carne e osso, sabiam? – como peças sacrificáveis no processo económico.

Penso que quem me lia – e lia, então, o Outra Banda – tal como aqueles que hoje têm a paciência de me escutar na Rádio Baía, perceberam logo que defendo ideais e valores de justiça social, que escolhi o meu campo há muito tempo, e que mantenho esta atitude de forma livre e independente, não criticando ou aplaudindo de acordo com conveniências de grupos ou aparelhos de qualquer natureza. Ora se isto agrada ao cidadão comum, certamente não agrada àqueles que, detendo uma parcela de poder, dele abusam – ou com ele não fazem aquilo que deviam fazer – traindo ou defraudando quem o poder lhes confiou, seja a força política pela qual concorreram, sejam os eleitores que neles votaram.

Como devem calcular, esta atitude não me tornou a vida fácil, pois havia quem pensasse que eu não só deveria dizer aquilo que lhes conviesse, como – e principalmente – deveria ignorar os podres que ia vendo à sua volta. Pressões, ameaças, chantagens e boicotes, de tudo me posso gabar de ter sofrido (não, não me enganei, quis mesmo dizer gabar), e depressa percebi que certos valores democráticos, como liberdade de imprensa e de opinião (de crítica ou auto-crítica nem é bom falar…) são, para certos democratas, como as pastilhas elásticas: servem para lhes andar na boca, mas nada de as engolir. Havia quem pensasse que o anúnciozito colocado no jornal (e pago sempre tarde e a más horas) lhe dava o direito de definir a linha editorial do jornal e decidir o que podia ou não ser publicado. Pensavam, com isso, comprar o silêncio cúmplice naquilo que pretendessem esconder, e as trombetas triunfais que glorificassem o pouco ou nada que faziam. E é por estas – e por outras – que certas pessoas ditas de esquerda se equivalem às ditas de direita e, em muitos casos, até as ultrapassam em défice democrático. E noutras práticas…

Por exemplo: soube, há dias, que a Câmara Municipal do Seixal resolveu comprar seis Toyotas Prius para serem colocados ao serviço do presidente da Câmara e de mais cinco vereadores. Para além disso, o senhor presidente também viu o seu Mercedes ceder lugar a um novo BMW de gama alta. Nada de mais, dirá o ouvinte, o que são para aí quarenta e tal mil contos num orçamento municipal? Pois é. Mas a verdade é que eu tenho alinhado aqui – e muito bem – na censura pública que tem sido feita, por exemplo, ao senhor governador do Banco de Portugal, por ter gasto um balúrdio na remodelação da frota automóvel da administração e dos quadros daquela instituição, enquanto manda apertar o cinto aos portugueses. E, seguramente, pesam menos os novos automóveis no orçamento do Banco de Portugal, do que os seis Toyotas e o BMW presidencial pesam no orçamento do Câmara do Seixal. E se não pesam assim tanto, é questão para perguntar, então, porque está em curso uma severa política de contenção a todos os níveis e o investimento é nulo – ou quase – não havendo notícia de uma única obra municipal digna desse nome lançada nos últimos anos? (Não quero falar do famoso Parque Oficinal, porque isso são outras contas e outros trocos).

Porque estão, por exemplo, o Parque Lopes Graça e o seu monumento ao compositor, literalmente desprezados, precisamente no ano do centenário desse grande vulto da nossa cultura e da resistência anti-fascista? Porque se degrada o espaço público, mesmo nos aspectos mais simples, com caldeiras viúvas de árvores há anos, e com o mobiliário urbano sem a necessária manutenção? Porque morreram o Cantigas do Maio e outras iniciativas emblemáticas, o Seixal Jazz está reduzido a uma tristonha amostra do que foi (só para que não se diga que também morreu), a Seixalíada é um pálido arrastar daquelas seixalíadas que ensinaram ao país o que queria dizer Desporto para Todos? Como está o famoso Moinho de Maré, ex-libris do concelho, desactivado há anos, sofrendo as obras de Santa Engrácia? Como estão os edifícios e os espaços envolventes de alguns dos mais recentes equipamentos culturais e desportivos, como o Fórum Cultural do Seixal e as Piscinas de Amora, onde os sinais do tempo e da incúria me fazem olhar para o lado de vergonha?

Não há dinheiro, dizem-nos. Tudo bem, não há dinheiro. Mas se não há dinheiro, então que não se gaste o dinheiro que não há em belíssimos carros para o senhor presidente e para os senhores vereadores, que devem ser, antes e acima de todos, os primeiros a dar o exemplo de contenção e austeridade. Consciente do que significa a aquisição destas viaturas neste contexto, diz a administração da Câmara, cinicamente, que se trata de uma aposta na preservação ambiental, pois os Toyotas Prius são carros ecológicos. Pior a emenda que o soneto. Francamente, mais valera não terem dito nada. Só faltou dizer que trocar de carro foi um gesto altruísta e um sacrifício enorme para os contemplados que, coitados, até se sujeitam às críticas e ao escárnio de trabalhadores e da população, em nome da política ambiental. Assim como quem diz: «A malta até nem queria os carros, mas como estes poluem menos do que outros, olha… lá teve de ser…». A isto, meus amigos, chama-se deitar poeira para os olhos do Zé Pagode, o que acaba por me doer ainda mais do que a acção em si própria.

Mas é disto que trata a nossa conversa de hoje, ou isto é só um pretexto para outras conversas? Para ser sincero, é as duas coisas ao mesmo tempo. Quer se trate dos Toyotas e do BMW, ou, por exemplo, do saco sem fundo que é a Fundação Mário Soares, à qual o ministério dos Negócios Estrangeiros atribuiu, em finais de 2005, mais uma ajudinha de 16 mil euros (deve ser para ordenados ou ajudas de custo…), mas só agora o despacho de Freitas do Amaral foi publicado em Diário da República. Aliás, ainda no Verão passado o ministério da Defesa também havia atribuído uma verba da ordem dos 20 mil euros à instituição liderada pelo ex-chefe de Estado.

É comovente esta solidariedade partidária, embora eu desconfie que, para além das afinidades partidárias, andem por ali outros – e grossos – interesses em jogo, pois desde 2002 que a fundação já arrecadou qualquer coisa como 885 mil euros. Mas – e é bom não o esquecer – o prédio onde está instalada foi-lhe entregue pelo filho do patrono, João Soares, quando era presidente da Câmara Municipal de Lisboa e, logo a seguir à instalação, o governo de então, só de uma pazada, lá enfiou meio milhão de contos.

Entretanto, neste quadro de regabofe, onde uns regam os bofes e outros os deitam pela boca, como é próprio de uma sociedade democrática e, sobretudo, moderna, o governo volta a atacar os desempregados, reduzindo os subsídios e o seu tempo de duração. Compreende-se: o dinheiro não pode chegar para tudo.

Mas as «boas» notícias não se ficaram por aqui. O Dia Mundial da Tuberculose foi assinalado com uma «excelente» novidade: em 2005, a tuberculose atingiu 31 em cada cem mil portugueses, mantendo Portugal com uma taxa de novos casos superior ao dobro da média na União Europeia. Claro que nada disto tem a ver com os baixos salários, ou com o desemprego, com as condições terceiro-mundistas em que vivem milhares de famílias, ou com outras maravilhas decorrentes dos excelentes governos que temos e tivemos, como sejam as dificuldades cada vez maiores que as pessoas encontram para ter acesso a cuidados médicos e de saúde. Deve ser apenas do clima. É isso, com certeza… Do mau uso que se dá aos dinheiros públicos, seja para comprar automóveis de luxo, seja para encher o baú dos amigos, seja para aliviar o capital financeiro e económico da carga fiscal, é que não é…

Já que estamos em maré de boas novas, terminemos com mais uma, que prova como somos um povo sereno, cordeirinho, manso, cordato, paciente e «lúcido». Ei-la: Os portugueses pagam, em média, mais 33% de energia eléctrica por dia que os espanhóis, pois uma factura média de electricidade de um cliente doméstico espanhol ronda os 360 euros anuais, cerca de 1 euro por dia, enquanto que, em Portugal, a factura média anual de um cliente doméstico português ronda os 480 euros, ou seja, uma factura mensal de 40 euros, e cerca de 1,33 euros por dia, um valor 33% superior ao pago pelos espanhóis.

Quer isto dizer que gastamos mais energia? Não. Quer dizer que a pagamos tão cara que, mesmo consumindo menos, a factura é 33% mais pesada do que a dos nossos vizinhos espanhóis.

Mas haja dinheiro para simpósios, colóquios, encontros, seminários (com pausas para café e refeições por conta da organização), que tudo o resto se há-de resolver a seu tempo. Aliás, é mesmo para isso – para se resolverem os nossos problemas – que eles organizam simpósios, colóquios, seminários e encontros. Com almoços e jantares grátis, pois então!

O que eles se esforçam por nós! Pensando bem, até merecem uns carritos novos…


(Crónica de João Carlos Pereira - Lida aos microfones da Rádio Baía em 29/03/2006)

27/03/2006

ESTA SEMANA

TURISMO
Por motivos profissionais tive que me deslocar às Astúrias onde tive oportunidade de poder ver e comparar a forma como se trabalha para o desenvolvimento de uma região que, alicerçada no sector industrial e agrícola desde há séculos, tem também vindo a sofrer com a globalização e a crise generalizada, virando-se agora com mais afinco para o turismo como forma de poder superar as carências económicas e de emprego.
Nas Astúrias, ao contrário do que se passa em Portugal, existe uma planificação e sente-se uma grande dinâmica dos agentes económicos que são impulsionados pelo poder político local e regional que não ficou à espera das multinacionais ou dos “beneméritos” Belmiros que tudo querem monopolizar.
É de salientar o aproveitamento (não só nas Astúrias como também noutras regiões espanholas) de todos os recursos disponíveis, salvaguardando a identidade própria e a qualidade dos serviços que são oferecidos, embora nem todas possuam as condições intrínsecas que existem em Portugal e que nós desprezamos.
Enquanto por cá se continuar a pensar que para o desenvolvimento do turismo basta ter umas boas praias, muito sol, alguns monumentos, o futebol e o Santuário de Fátima, muito dificilmente poderemos competir com outros países que já perceberam este fenómeno.
Não é preciso inventar nada, mas é urgente conhecer o que de bom se faz por esse mundo fora de uma maneira prática e eficaz, sem a mania das intelectualices onde se gasta rios de dinheiro com promoções que não têm as necessárias contrapartidas, a não ser, provavelmente, para os bolsos de alguns.

22/03/2006

O caldeirão já ferve

Três anos passados sobre a invasão e ocupação do Iraque, o mundo assemelha-se a um imenso caldeirão atulhado de ingredientes explosivos, fervendo sobre uma fogueira descontrolada. Ninguém sabe quando se dará a explosão, mas ninguém duvida que, mais tarde ou mais cedo, ela vai acontecer. E nos últimos meses – e especialmente, nas últimas semanas – a crise mundial conheceu desenvolvimentos preocupantes, agravando-se perigosamente.

Incapazes de resolver os problemas económicos e sociais nascidos da própria natureza do sistema capitalista, os governos dos chamados países ocidentais, liderados pelos EUA, parecem caminhar para a velha solução da guerra total, cegueira que já custou à humanidade, só no último século, algo à volta dos cem milhões de vidas humanas. Pior do que então, e com o poder avassalador das armas de hoje, cuja capacidade destruidora os EUA não se cansam de aperfeiçoar, é a própria vida no planeta que está em risco.

Com o Irão cada vez mais na mira dos nazis norte-americanos, a corda estica-se até aos níveis da loucura. Convém recordar que o apetite não é novo, já que os EUA apoiaram com armas e bagagens (muitas delas proibidas) o Iraque de Saddam Hussein – exactamente este Saddam que agora julgam como criminoso de guerra, e não outro Saddam qualquer – apoiaram-no, então, contra o Irão da época do Ayatollah Khomeini. Agora, na sua vertigem alucinada para submeter o mundo inteiro aos seus ditames imperiais, vão tão longe que já se atrevem a enviar recados ameaçadores à China e à Rússia.

Na Bielorrússia, país que se recusa a integrar a NATO e a alinhar na corte de serviçais que presta vassalagem aos EUA, e cujo presidente foi reeleito com mais de 80% dos votos, tal como sucedera em eleições anteriores, a UE e os EUA estão a tentar a receita que usaram na Ucrânia e na Geórgia: financiamento e apoio descarado ao candidato da oposição e, face à derrota, fomentar a contestação com base em supostas irregularidades. Se os exemplos já citados se repetirem, a coisa só pára quando o golpe de estado se concretizar. Esclareça-se que um dos «crimes» imputados ao regime bielorruso é recusar-se a privatizar sectores chaves da economia. Que horror! Negar sangue fresco aos vampiros!

Mas qual é a verdadeira razão do desvario norte-americano? Com uma economia incapaz de sustentar o país – e de se sustentar a ela própria – a chamada nação mais poderosa do mundo é, de facto, uma nação que consome muito mais do que aquilo que produz, e que entraria rapidamente em colapso se a desligassem da máquina que parasita as riquezas do mundo inteiro. Com uma dívida externa gigantesca, e com défices do Orçamento e Comercial ainda maiores, que se agravam em cada segundo que passa, os loucos fanáticos que controlam o poder político e o poder económico nos EUA (que são os mesmo que têm o dedo no gatilho e mexem os cordelinhos no Pentágono) acreditam que só o domínio absoluto do planeta pode resolver os seus problemas. Outros pensaram o mesmo, os últimos dos quais há cerca de 60 anos, com o resultado que sabemos…

Entretanto, no Iraque – porque os desejos são uma coisa, e a realidade, outra – os norte-americanos vão-se atolando lenta e inexoravelmente. As baixas militares – e citando só os números do Pentágono – já vão nas duas mil trezentas e doze. Para estas contas não entram outros norte-americanos, os mercenários e os vários agentes que, sob os mais diversos disfarces (seguranças e guarda-costas, «jornalistas», técnicos disto e daquilo ou simples assassinos profissionais) acabaram os seus dias anonimamente de norte a sul do Iraque. Sair, agora, é bem mais difícil para os norte-americanos do que foi entrar. E de tal modo as coisas estão, que vários sectores e personalidades da sociedade iraquiana dizem que, se no tempo de Saddam havia muita coisa má, agora é tudo péssimo. A bota americana é mais pesada e violenta do que a bota do seu antigo aliado. E – o que é pior – é estrangeira. Entretanto, vêm a lume novos massacres cometidos pelos «heróicos» marines, mas os crimes de guerra praticados pelos norte-americanos estão a salvo de qualquer julgamento internacional.

Por outro lado, e apesar dos órgãos de comunicação social estarem repletos de gente muito bem paga para escrever de acordo com o guião da Casa Branca e do Pentágono, já ninguém associa – ou poucos associam – os EUA à ideia de democracia, liberdade, progresso, solidariedade ou outra coisa qualquer digna de respeito. Pelo contrário, a humanidade, tem hoje a consciência de estar, precisamente, perante o oposto disso tudo. A vontade – melhor dizendo: a necessidade – dos EUA dominarem o mundo, transformou-se numa ameaça asfixiante que cria, por todo o lado, fenómenos de rejeição, mesmo entre aqueles que um dia acreditaram na propaganda made in Hollywood. A verdadeira matriz cultural dos EUA é aquela que produz os Rambos acéfalos, os super-homens impossíveis, os Hulks e outros brutamontes, e que reza: «O que não puderes ter a bem, vai buscá-lo à força». Hoje, para milhões incontáveis de seres humanos, a sigla USA é sinónimo de violência sem limites, estupidez, brutalidade, arrogância, guerra, opressão, barbárie, crime, morte.

E se esta filosofia da força bruta, da prepotência – justificada com mentiras tão frágeis e tão estúpidas que, por o serem, certamente por estúpidos iguais ou maiores nos tomam aqueles que as engendram – se é ela que regulamenta as relações internacionais nestes dias inquietantes e sombrios, também é ela que, em cada estado vassalo dos EUA, como o nosso ou o francês, faz doutrina e impõe receitas. Se, a nível planetário, uma super-potência se julga com o direito de impor as regras e definir o futuro de cada país (que o mesmo é dizer, de sujeitá-lo aos seus interesses, de colonizá-lo, de moldá-lo de forma a dele retirar os proveitos que sustentem o seu parasitismo económico), também nos países sujeitos à lógica capitalista se passa, a nível interno, precisamente o mesmo. Cada governo sujeita o seu povo aos interesses do grande capital. É este o regime democrático.

Em França, por exemplo, por muito menos do que o Código do Trabalho que Bagão fez – e o PS adoptou de braços abertos – a população foi para a rua defender o seu direito ao trabalho e à estabilidade profissional. Assustam-se, por cá, os escribas do capitalismo, gritando Aqui-del-Rei!, que os franceses são irresponsáveis, estão a comprometer o futuro da França, porque sem os patrões poderem despedir à vontade a economia não se torna competitiva. Tentam diminuir a dimensão dos protestos e, pelo meio, vão salientando que anarquistas e agitadores profissionais andam por ali a manipular milhões de franceses estúpidos ou desprevenidos. Estes escribas, bem pagos pelos jornais e TVs de referência, com tachito garantido enquanto escreverem o que escrevem, cujos filhos e netos saberão encaixar onde for preciso, nem que seja nas telenovelas nacionais, a debitar diálogos redondos em enredos quadrados, sabem que a eles, e respectiva prole, nunca faltarão emprego e remuneração suculenta. São papagaios a cantar de galo, cumprindo o seu papel de ajudar a manter o povo português de espinha dobrada e tento na língua.

Um povo que, por isso, vê os funcionários públicos serem os mais penalizados no seu poder de compra, quando comparados com os seus pares de sete países comunitários, quer se considerem os que estão com défices excessivos, quer os países da Coesão. Embora não sejam os únicos a sofrer as agruras da contenção orçamental, os servidores do Estado português não só tiveram a maior erosão salarial em 2005 – dois pontos percentuais – como são os que sofrem esse embate há mais tempo, desde há seis anos. Um panorama que se repete este ano, pois perderão mais quase 1% (0,8 pontos percentuais).

Mas, como aqui temos dito muitas vezes, a crise não é para todos. Em Portugal, governa-se para as grandes empresas, para os grandes grupos económicos, para as grandes famílias. Sabemos que os quatro maiores bancos privados nacionais aumentaram os seus lucros, de 2004, para 2005, em 37%, atingindo os 1.625 milhões de euros, ou seja 325 milhões de contos. Como? Com os juros elevados, com o sobre-endividamento das famílias, com os preços especulativos e brutais dos serviços bancários, com a subida incontrolada das comissões bancárias, que em pouco mais de dez anos subiram 46%, com taxas de juro que chegam a atingir os 20%, com a degradação das condições laborais e remuneratórias dos trabalhadores da banca, onde as empresas de prestação de serviços pesam cada vez mais, com os impostos pagos pela banca a diminuir, pois pagam agora de IRC, metade do que pagaram em 1998.

Num cenário de crise profunda, de autêntica recessão, com o desemprego a aumentar, com a esmagadora maioria das famílias portugueses a apertar o cinto para além de todos os furos admissíveis, cortando na saúde, na alimentação, no vestuário, na educação, na higiene e conforto, vendo aumentar a idade de reforma e subir a carga fiscal (mas enquanto, no outro lado da pirâmide social, uns quantos arrebanham grossas fatias do erário público), com as magras reformas a serem corroídas por novos impostos e pela inflação, não é de espantar que a tuberculose continue a apresentar os piores índices do espaço UE.

Mas também as baixas reformas não são para todos. Para alguns, não é preciso esperar, sequer, pelos 63 ou 65 anos. Na ADSE, pensões acima dos 4.000 euros, ou seja, 800 contos, triplicaram nos últimos 5 anos, contemplando portugueses de primeira, como Nascimento Rodrigues, Alberto João Jardim, Luís Filipe Pereira (o homem dos Mellos, que foi ministro da Saúde de Durão Barroso), Alfredo de Sousa, Adelino Salvado, Fernando Gomes, (o tal que está na Galp e foi presidente da C. M. do Porto), e um batalhão de muitos outros. Porquê? Porque há para estes e falta para os outros? Porque, nesta democracia, há dois pesos e duas medidas. Porque esta gente soube encostar-se aos partidos certos, àqueles que dão bons empregos a quem não se importar de vender a alma. E, principalmente, porque o poder, nas mãos de tal gente, serve, antes do mais, para elaborar as leis que lhes façam da vida um mar de rosas.

Mas o caldeirão está ao lume. E ferve em França, no Médio Oriente, na América do Sul, muitas vezes ferve onde menos se espera. A revolta mina as sociedades de forma silenciosa e invisível, como acontece no interior dos vulcões só aparentemente adormecidos. A injustiça produz a revolta. Mesmo cá, onde a resignação cobarde e a passividade inexplicável de um povo que há pouco mais de 30 anos festejou a conquista da liberdade e da cidadania, o descontentamento alastra e, nos muitos que votaram PS, só a vergonha (ou o medo) impede que gritem contra a violência socrática.

Deixem-me citar Karl Marx, já que a maioria dos nossos jornalistas, analista, intelectuais, economista e outros pensadores não o fazem. Disse ele que «a violência é a parteira da história». Que forma de violência vem aí, é coisa que deixo para os bruxos.

Apenas sei que o caldeirão já está ao lume. E que ferve, ferve, ferve…


(Crónica de João Carlos Pereira - Lida aos microfones da Rádio Baía em 22/03/2006)

19/03/2006

ESTA SEMANA

CONTRAMÃO
Mais um condutor com 79 anos morreu numa auto-estrada, por circular na A4 em contramão, provocando mais 6 feridos. Um outro, de 83 anos, lançou o pânico na A8 ao circular em contramão durante cinco quilómetros na zona de Torres Vedras. Por sorte, neste caso, não houve qualquer acidente para além do susto.
Segundo dados fornecidos pela DGV, em 2005 registaram-se 85 acidentes provocados por veículos em contramão, tendo morrido 38 pessoas (21 delas condutores que seguiam contra o sentido), 93 ficaram feridas gravemente e 84 de forma ligeira, num total de 215 vítimas.
O idoso que assustou diversos automobilistas na A8 tinha renovado a carta em Novembro de 2005. Para conseguir esta renovação (obrigatória de dois em dois anos a partir dos 70 anos) é necessário um atestado médico. Mas os exames realizados para a renovação da carta baseiam-se na visão, na audição, na capacidade de locomoção e na função cardíaca.
A Direcção-Geral de Viação pede aos médicos que avaliem o estado mental dos requerentes, o que é feito através de uma simples conversa. O médico Horácio Firmino, presidente da Associação Portuguesa de Gerontopsiquiatria, diz que devia ser obrigatória a realização de um exame neuropsicológico, incluindo testes de reacção e de memória.
Que espera o senhor ministro da tutela para alterar rapidamente esta legislação ? Sabemos que a simples mudança da Lei não vai evitar mais casos, mas pode pelo menos diminuí-los e poupar algumas vidas.

HOSPITAL
Andam por aí alguns descompensados mentais que defendem a ampliação do Hospital Garcia de Orta, porque uma qualquer comissão de não sei quantos, paga pelo Estado para debitar umas quantas ideias soltas, chegou à brilhante conclusão que bastaria colocar mais 150 camas e ficaria tudo resolvido.
Ou seja, contratam-se a prazo mais uns quantos profissionais de saúde, compram-se mais umas camas e arrastadeiras, põem-se beliches no serviço de urgências, cobram-se mais umas taxas aos utentes e o assunto está arrumado, como se todos os outros serviços não estivessem já mais que sobrecarregados.
Também já li algures, que o interesse na construção de um novo Hospital no Concelho do Seixal serviria principalmente para a especulação imobiliária, pois quem defende esta solução são os grandes investidores conluiados com a Câmara Municipal.
Tanta ignorância e estupidez juntas só pode ser justificável por quem nunca teve necessidade de recorrer ao único Hospital que existe na zona para servir uma população acima dos 500.000 habitantes, para além daqueles doentes que são transferidos para aqui, oriundos de todo o sul do País, porque nas suas zonas não existem recursos ou porque os Hospitais que os deveriam servir não possuem todas as valências médicas.
Se alguém se der ao trabalho de verificar a rede hospitalar que existe nos Distritos de Setúbal, Évora, Beja e Faro, honestamente terá de concordar que existe uma grande carência e um enorme desequilíbrio em relação à zona norte.
Um Hospital no Concelho do Seixal não é uma teimosia, um luxo ou um negócio; é sim uma necessidade urgente.

15/03/2006

O actual feudalismo financeiro/democrático

Ou o esclavagismo de rosto humano

O sistema feudal, que caracterizou a sociedade durante a maior parte da Idade Média, sacralizava o poder dos proprietários da terra, estabelecendo uma relação de extrema dependência por parte daqueles que os serviam. Os senhores feudais detinham o principal «aparelho produtivo» da época – a propriedade rural – e as classes trabalhadoras de então estavam, em maior ou menor grau, dependentes dessa nova classe dominante. A forma mais dura de dependência era a dos servos (os trabalhadores por conta de outrem dos nossos dias), que estavam adstritos ao serviço do senhor e à própria terra. Eram obrigados a trabalhar na propriedade do seu amo, a cultivar as suas terras e a entregar-lhe parte substancial daquilo que eles e as respectivas famílias produzissem (não só produtos agrícolas como cereais, carne e criação, mas também artigos manufacturados, como tecidos e couros). Por outras palavras: o servo era obrigado não só a alimentar a família e os criados do seu senhor, mas também a vesti-los e a calçá-los.

Dado que tudo o que era necessário para a vida quotidiana era produzido em pequena escala – e que a base material de toda a cultura medieval era, sobretudo, o trabalho dos camponeses numa economia camponesa, em pequena propriedade arrendada – isso permitia uma relativa independência económica, dado que, trabalhando mais, os camponeses poderiam obter, para si próprios e para as suas famílias, um excedente sobre a produção mínima vital, para além do que era devido ao seu senhor. Nisto residiu o enorme progresso da ordem feudal em relação à sociedade que praticava a escravatura. De facto, os escravos trabalhavam a terra dos seus amos, a quem entregavam todos o fruto do seu trabalho, recebendo, em troca, apenas aquilo que era absolutamente necessário para a sua sobrevivência. O escravo odiava o seu trabalho, como facilmente se percebe, mas o servo medieval, porém, por mais dura que fosse a sua vida – e era – trabalhava na sua terra de forma praticamente independente e tinha interesse em aumentar a sua produtividade. Por isso, a sociedade feudal, embora construída sobre as ruínas do sistema esclavagista, foi, no entanto, em termos sociais, um passo positivo, embora curto e lento.

Aqui chegados – e à luz destes factos e ensinamentos históricos – saltemos sobre a chamada Revolução Industrial e toda a fase do Capitalismo Primitivo, para aterrarmos em Portugal, em pleno século XXI, e fazermos algumas – e interessantes – comparações.

Os senhores feudais de hoje chamam-se grandes empresários e os seus feudos deixaram de ter uma dimensão geográfica restrita: estendem-se por quase todo o país, chamam-se grandes empresas (ou grupos económicos) e subordinam milhares de servos, hoje designados por assalariados – ou trabalhadores por conta de outrem. A estes servos não se cobra renda, antes se paga (quando paga…) um salário, que corresponde a uma pequena parte da riqueza criada, mas não é dada (ao contrário do que acontecia no feudalismo) qualquer autonomia ou posse no feudo/empresa, do qual são frequentemente expulsos através de processos designados por despedimentos, ou caducidade do contrato de trabalho.

Apesar de não ser cobrada renda aos servos dos nossos dias, existem vários processos ainda mais eficazes para lhes serem extorquidos os excedentes que possam resultar da sua actividade. Um deles – e o mais eficaz – chama-se Fisco, ou política fiscal, outro chama-se contenção salarial, outro chama-se inflação (que é mais grave quando resulta do aumento dos bens de primeira necessidade), outro chama-se agravamento de taxas e tarifas, ou a invenção de taxas e tarifas novas, muitas vezes para pagar o que já devia estar pago pelos bens colectados pela política fiscal.

Neste aspecto, sucede um pouco o que sucedia na sociedade esclavagista, pois já existem, nos tempos que correm, milhões de pessoas em Portugal que, tal como os escravos de antigamente, só têm o indispensável para não caírem para o lado ao fim de cada dia. Não, meus amigos, nem estou a falar daqueles outros, dos que vivem em miséria absoluta, a chamada escória da sociedade, mas daqueles que, trabalhando todos os dias, apenas dispõem de recursos para o essencial, para iludir a fome, para se cobrirem com a roupa indispensável à decência, e para se abrigarem, à noite, sob um tecto precário.

Se estes não são os escravos do século XXI, o que é então esta gente que sobrevive sem esperança de um dia terem aquilo que a Declaração Universal dos Direitos Humanos diz serem seus direitos inalienáveis? Gente sem acesso a bens culturais, cujos filhos não sabem o sabor do leite ou da carne, e que são forçados a abandonar os estudos para tentarem contribuir para o rendimento familiar. Gente que se já não podiam recorrer a cuidados de saúde, agora menos pode, com as taxas moderadoras a custarem 400$00 nos Centros de Saúde e perto dos 1.600$00 mas urgências (não falo em euros, pois 2, ou mesmo 8 euros parecem pouco coisa, como é sabido, mas pesam nos bolsos daquelas famílias que têm os cêntimos contados. Gente que já dificilmente podia aviar uma receita médica, e que agora vê esse avio ainda mais dificultado, pois não cessam de sair da lista de medicamentos comparticipados cada vez mais medicamentos.

Na Idade Média, os senhores feudais com frequência se entregavam à guerra, tendo em vista conquistarem mais terras e bens. Nas batalhas, onde morria a arraia-miúda, arrebanhada para defender as barbas do seu senhor, salvava-se quase sempre o essencial, ou seja, o feudo e os seus recheios, embora mudassem de dono. Nas guerras de hoje, chamadas OPAS, os senhores feudais, agora ditos grandes empresários, fazem a coisa de forma menos violenta, mas as vítimas são sempre os mesmos, os que dependem do empresário vencido, pois arriscam-se a ficar sem emprego e sem futuro, ou sem parte do pouco que tinham. Depois da OPA, as coisas sempre se compõem para quem perdeu, pois nas mesas empresariais há sempre lugar para quem é da casta dominante.

Na Idade Média, o senhor feudal era, ao mesmo tempo, o poder económico, o poder político – logo, era também o poder legislativo – e o poder judiciário, isto é, fazia as leis e administrava a justiça. Nas sociedades capitalistas, mesmo naquelas que se dizem pais e mães da democracia, os senhores feudais de hoje – ditos grandes empresários, como já expliquei – preferem que as coisas pareçam separadas, para que possam exercer o seu poder mais tranquilamente. Por isso, sendo eles o poder económico, inventaram os políticos para lhes fazerem as leis convenientes, e o sistema judiciário para administrar a justiça, fazendo crer que era sua vontade que tal sistema fosse independente e sério. Isto é: desejando que parecesse que havia uma justiça igual para senhores e servos. Para ricos e pobres – ou para os mais ricos e para os menos ricos, se quisermos adoptar a linguagem cínica de José Sócrates.

Diga-se a verdade que, apesar de tudo, se os senhores empresários, os grandes empresários, são unha com carne com os senhores políticos – especialmente se os políticos são da marca PS e do modelo Sócrates – podendo dizer-se que são porcos do mesmo chiqueiro e da mesma gamela (é uma expressão metafórica, claro está), já o mesmo não se pode dizer do poder judicial, que, apesar de ter a sua marca de classe e nem sempre se honrar, faz, muitíssimas vezes, por ser realmente justo, algo que desagrada aos tais dois poderes em um: o económico e o político.

A prová-lo, meus queridos ouvintes, está o facto de o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (SMMP) ter aprovado há dias uma moção em que condena as «práticas de vários pesos e muitas medidas» da política criminal do Governo, nomeadamente por deixar que certos processos nunca cheguem a Tribunal. Dizem os magistrados que «há a vontade de retirar ou reduzir o papel do Ministério Público na área penal e no controlo da legalidade da investigação», e criticam os poderes político e económico por «quotidianamente» porem em causa a ideia de que a lei deve ser igual para todos. Disseram os magistrados, lá na sua, e com todas as letras, que o governo socialista quer evitar que a sua gente – e os tais senhores feudais que a sustenta – possam sujeitar-se às leis como a escumalha comum.

Uma coisa parecida com o que Bush e a administração norte-americana faz com a Tribunal Penal Internacional de Haia, que pode prender, julgar e, pelos vistos, matar toda a gente, menos os norte-americanos, façam eles o que fizerem.

Por tudo isto se pode dizer, sem esforço ou exagero, que as diferenças entre escravos e amos (na sociedade esclavagista), entre servos e senhores (na sociedade feudal), ou entre capitalistas e assalariados (nesta bendita sociedade capitalista), salvaguardadas as distâncias entre épocas e a evolução verificada aos diversos níveis, se não são iguais, são semelhantes. Resumindo: uns, os primeiros, têm tudo, até a capacidade de decidirem da vida e da morte dos outros. Aos outros, aos escravos, aos servos, ou aos trabalhadores, meus amigos, ontem como hoje – de há 1.500 anos a esta parte – nada resta a não ser trabalharem e sujeitarem-se à única coisa por que trabalha a sério o poder político. O bem-estar, a opulência da classe dominante, que muda de nome e de métodos, mas que nunca muda de apetites nem de privilégios.

Democracia, dizem eles. Feudalismo financeiro/democrático, ou um autêntico esclavagismo de rosto humano, digo eu, e penso que tenho razões para tal.

«Ah!», exclama aquele senhor que nunca telefona, porque não gostando do que aqui se diz, também não tem argumentos para contradizer. «Ah!. Agora, apanhei-te, meu espertalhão. Então é o voto? O povo é que decide, pelo voto, como quer viver, como quer ser governado: bem ou mal, somos nós que escolhemos».

Bem, se foi você que escolheu pagar mais pelos medicamentos e pelas taxas moderadoras; se foi você que escolheu ver o seu ordenado cada vez mais pequeno num mês cada vez maior; se foi você que escolheu o desemprego galopante, os contratos a prazo, e o Código do Trabalho; se foi você que escolheu uma política que faz os ricos cada vez mais ricos, ao fazer os pobres cada vez mais pobres – e todos os dias acrescentar mais pobres à lista –; se foi você que escolheu pagar impostos sobre tudo o que ganha, enquanto os muito ricos só pagam sobre uma parte da sua riqueza; se foi você que escolheu ver-lhe negados ou reduzidos direitos que até a ditadura lhe garantia, enquanto os ricos acumulam empregos com ordenados e reformas escandalosamente altos e, por isso, imorais: se foi você que escolheu vender o país ao estrangeiro e destruir as nossas pescas, a nossa agricultura, a nossa indústria, enfim se você escolheu isto tudo e ainda não é um deles, um dos ricos, então, meu caro amigo, só lhe posso dizer que se a estupidez pagasse imposto, você – sozinho – resolvia o problema do défice público.

Mas não se acanhe. Telefone na mesma. Afinal, na Idade Média também havia gente assim, sempre pronta a lamber as botas dos senhores do castelo. Já na altura lhes chamavam lacaios. Você não é uma novidade.

(Crónica de João Carlos Pereira - Lida aos microfones da Rádio Baía em 15/03/2006)

12/03/2006

ESTA SEMANA

FERIADO
A passada 5ª feira dia 9 deveria ter sido feriado. Não pela tomada de posse do novo Presidente da República, mas sim pela brilhante vitória do Benfica na Liga dos Campeões.
Como se viu, foram milhares e milhares de pessoas que deram azo à sua alegria durante toda a madrugada, percorrendo as principais artérias da capital e fazendo da recepção no aeroporto uma verdadeira festa popular. O mesmo não se viu em S. Bento ou em Belém, porque isso era só para alguns e o povo já não embarca nessas coisas.
Durante todo o dia as televisões impingiram-nos os discursos e os cumprimentos a sua excelência, em vez dos maravilhosos golos do Simão e do Miccoli e as duas ou três defesas do Moretto.
Para mais de 6 milhões de portugueses teria sido muito mais importante rever os cortes do Luisão, as arrancadas do Geovanni ou as recuperações do Manuel Fernandes, do que saber se os convidados de sua excelência tinham comido ou não os espargos e o rodovalho.
Na verdade temos um novo Presidente da República, mas isso não vai alterar nada das nossas vidas. O que é diferente e nos enche de orgulho é ter o Benfica nos quartos de final. E venha de lá o Barcelona, que cá os esperaremos.

DIREITOS HUMANOS
Abusos de autoridade, brutalidade policial, condições precárias nas prisões e tráfico humano, são alguns dos pontos negros do relatório anual de 2005 sobre os Direitos Humanos.
E se alguém pensa que isto diz respeito ao que se passa nos Estados Unidos da América, está redondamente enganado, porque este relatório é elaborado por um seu Departamento e refere-se a Portugal. É preciso não terem vergonha nenhuma.
Porque não falam eles ao “tratamento” dado pelos seus soldados aos civis e aos prisioneiros iraquianos ou o que se passa no seu campo de concentração de Guantanamo ?
De acordo com os peritos da Comissão de Direitos Humanos da ONU, os carrascos americanos infligem aos prisioneiros violentos actos de tortura, sem que estes tenham qualquer culpa formada ou acusação credível, recusando-se a apresentá-los perante um tribunal internacional competente e isento.
Isto para já não falar de muitas outras coisas e dos abusos sexuais praticados pelos padres americanos, pela escravatura ainda existente em muitos Estados e pelas milhares de mortes que ocorreram em Nova Orleães devido à incúria dos governantes, principalmente a do paranóico Bush.

08/03/2006

Enojado até ao vómito

As nossas conversas das quartas-feiras têm um efeito benéfico na minha estabilidade emocional. Vendo a televisão ou lendo jornais, por imperiosa necessidade de ir tentando perceber o que acontece (e nunca – ou raramente – por prazer), vou acumulando um desgaste nervoso resultante de não poder, no preciso momento em que as mentiras e outras alavancas manipulatórias se abatem sobre mim – e, naturalmente, sobre milhões de portugueses – desmascarar tanto os embusteiros como o embuste, e descodificar a perfídia de tão insinuantes e doutorais conversas. Vou, por isso, contendo e acumulando a minha indignação, à qual nem os desabafos domésticos, mais ou menos violentos, servem de lenitivo. Chego aqui, às quartas-feiras, e faço a minha psicoterapia, desabafo e deixo que os ouvintes desabafem, sempre na esperança que a semente dê flor e fruto e, um dia, quando houver outro 25 de Abril, se possa dizer que também nós, aqui na Rádio Baía, demos um pequeno contributo para ele.

Há muito – desde antes do 25 de Abril – que aprendi a decifrar a linguagem dos políticos e dos seus papagaios na comunicação social, uns e outros, como sabemos, bem pagos pelo poder económico, em cuja folha de férias se digladiam por figurar. Lembro-me dos discursos de dedo em riste de Salazar e das Conversas em Família, de Marcelo Caetano. Talvez por não precisarem disso, pouco mentiam, dado que, para impor ao povo a sua vontade dispunham de outros meios mais directos, tais como a polícia política, a Censura, as restantes forças da ordem, ou a possibilidade legal, assumida, de despedir um cidadão pelas suas opções ideológicas ou, simplesmente, por reclamar por Pão e Liberdade. E não mentiam tanto, também, porque assumiam naturalmente e sem vergonha os seus princípios ideológicos, sinceramente convencidos de que eles eram o único caminho para se viver em sociedade. Dizendo isto, estou a dizer que estes, os salazares e marcelos de hoje, porque em democracia se diz que vivemos, cuidam de evitar o que nela, democracia, mal parece. Por isso, em vez do discurso e da prática autoritários (o que, no caso de Sócrates, nem é bem verdade, já que de autoritário e arrogante não lhe falta nada) – e no lugar das pides, tarrafais, aljubes, peniches ou caxias, que se encarregavam de convencer os renitentes – valem-se do discurso manipulador, da promessa alantejoulada, da partidarite facciosa, que arregimenta e ilude, e de uma cortina de artifícios maquiavélicos, com os quais vão levando no engano, como diestros encartados, essa «enorme e possante besta» que nós somos, e de que já aqui falei certa vez, citando Erasmo de Roterdão, o autor da metáfora. Mas vamos a factos.

Esta semana que passou, queridos ouvintes, foi demais! As taxas moderadoras vão sofrer um aumento brutal, mais de dez vezes a taxa da inflação. Não, não é para subsidiar o Serviço Nacional de Saúde, dizem eles, é só para moderar o acesso àqueles serviços, pois há, segundo parece, pessoas que se divertem passando umas horas nas urgências dos hospitais ou nas filas doentias dos centros de saúde. Este cinismo atroz, este atestado de atrasados mentais que o governo de Sócrates nos está a passar, este desprezo pela nossa dignidade dói mais, posso garanti-lo, que as cacetadas da polícia de choque salazarista ou as torturas infligidas nas salas sombrias da PIDE.

Só um governante sem escrúpulos – e os socialistas são indivíduos mais descarados e sem escrúpulos do que os outros políticos todos juntos – é que pode, sem rir, dizer alarvidades desta natureza para explicar a sangria. É preciso, além disso, nunca ter passado pelas urgências dos hospitais ou pelas portas dos centros de saúde às tantas da madrugada, para poder sequer admitir que alguém, no seu perfeito juízo, para ali vá por gosto ou só para passar o tempo. O que está em marcha é um assalto selvagem aos portugueses de menos recursos, que são esses, coitados, que recorrem às urgências hospitalares e aos centros de saúde, e não a ministralhada, os belmiros ou os senhores administradores disto e daquilo. «Combater as falsas urgências», argumentam eles, esses energúmenos que o povo, descuidadamente, levou ao poder, sugerindo, implicitamente, que alguém, ao sentir-se mal, saiba avaliar se está à beira de um enfarte ou de um AVC, ou se não passa tudo de uma indisposição passageira, um susto e nada mais.

Medida assassina, chamo-lhe eu, enojado por ser governado por estes algozes, capazes de atentar mais contra a saúde e a vida dos portugueses do que algum ditador alguma vez se atreveu a fazer.

Enquanto se preparavam estas medidas, o algoz-mor, José Sócrates, foi até à Finlândia na busca de argumentos para dar ânimo ao seu agonizante Plano Tecnológico, um fracasso há muito anunciado. Um facto político criado à pressão, que, para além de consumir mais uns milhares de euros aos cofres do Estado, lhe serviu também para arrazoar contra os professores portugueses, em particular, e os trabalhadores, em geral.

Ao ver os meninos finlandeses nas suas salas de aula impecáveis, todos eles com computador na carteira, a eminência parda soltou a voz para insinuar que, se as coisas cá não são bem assim, é porque os professores não querem trabalhar mais. (E, já agora, de borla, acrescento eu). Mas a preclara figura foi mais longe. Disse, sem que a voz delicodoce alterasse o registo maviosamente ondulado, que a Finlândia dedica especiais cuidados à área social, sendo um exemplo nesse aspecto, insinuando assim, matreiramente, que, para lá chegarmos, só precisamos de nos sujeitarmos à política do PS sem tugir nem mugir. A ida à Finlândia ficava deste modo explicada por Sócrates: «É isto que eu quero para Portugal, e para isso estou a governar. Sujeitem-se, então, à minha governação, obedeçam-me… e em breve viveremos como os finlandeses».

Ora, acontece que os professores finlandeses não são tratados, nem pagos, pelo seu governo como os professores portugueses são tratados, e pagos, pelos governos que por cá temos – e tivemos – nem ficam aos milhares no desemprego ou são atirados anos a fio para os Cus de Judas lá do sítio, como se passa por cá. Ora, acontece que as crianças finlandesas não vão para a escola com frio e fome, apesar do clima rigoroso da Finlândia, nem têm pais com salários em atraso, ou com ordenados miseráveis, ou no desemprego não remunerado. Ora, acontece que as escolas finlandesas são escolas dignas desse nome, e não barracões degradados, como sucede em milhares de escolas em Portugal. Ora, acontece que os finlandeses não construíram Expôs’98 ou dez estádios de futebol, em vez de escolas e centros de saúde ou hospitais. Ora, acontece que os políticos finlandeses não têm a fama de corruptos, incompetentes e oportunistas como acontece por cá, nem consta que se amanhem com belos ordenados e acumulem reformas e vários tachos, como sucede nesta república das bananas chamada Portugal. Ora, acontece, para abreviar, que a grande distância entre a Finlândia e Portugal resulta, acima de tudo, da diferença que há entre honestidade e sentido de Estado – lá – e desonestidade, incompetência e pura ladroagem – cá. É a distância que vai da decência à pouca-vergonha absoluta.

Na Finlândia, as obras públicas não derrapam, porque não é normal escorrerem dinheiros por fora para todo o bicho careta que se mete no esquema, sem esquecer os partidos políticos e os seus homens de mão, os Senhores 5% que acossam os empreiteiros sempre que o governo lhes adjudica uma obra. Na Finlândia é impensável uma Fundação Vara, ou um Vara com tachos atrás uns dos outros (CGD e, agora, também a PT), um político como Jorge Coelho, ou uma autarca como Fátima Felgueiras. Na Finlândia não existe um fosso abismal entre os mais ricos e menos ricos, porque não existem, como cá, 2 milhões de pessoas pobres, sendo mais de duzentas mil delas a viver em miséria extrema. E se lá se pode falar em mais ricos e menos ricos, cá só podemos falar em indecentemente ricos, ricalhaços e, depois, em mais pobres e menos pobres.

Entretanto, o INE confirmou aquilo que os nossos bolsos e estômagos já sabiam: os bens alimentares estão a subir todos os dias. A desculpa, desta vez, é a seca. Só o azeite subiu 45%! Mas o aumento dos combustíveis, para pagar a guerra no Iraque, também é apontado, envergonhadamente, como outra das razões. Notícias de Espanha, onde a seca foi igualmente severa, dizem-me que, por lá, não há novidades destas. Explicações para isto? É fácil: enquanto os espanhóis têm uma consciência cívica altamente desenvolvida e exercem a sua cidadania sem quaisquer hesitações, pondo, por isso, os seus interesses acima das fidelidades partidárias, os portugueses não cultivam nenhuma dessas virtudes. Deixámos de pensar e de agir. Rendemo-nos. Abdicámos de ser um povo dono do seu destino. E quando assim é, os crápulas não perdem a oportunidade, como agora se prova.

É por tudo isto que eu, quando me forço a ver o a ouvir o primeiro-ministro tocando a flauta das nossas futuras bem-aventuranças, sinto algo que nunca, em tempo algum, um político me provocou: uma repulsa instintiva, uma náusea enorme.

É irracional, eu sei, tanto mais que, afinal, a culpa é mais nossa do que dele. Mas não há nada a fazer: Sócrates enoja-me até ao vómito.

(Crónica de João Carlos Pereira - Lida aos microfones da Rádio Baía em 08/03/2006)

05/03/2006

ESTA SEMANA

BÈBÉ DESAPARECIDA
Durante vários dias muito se falou sobre o desaparecimento de uma menina recém-nascida que foi raptada na maternidade onde nasceu. Passaram-se outros tantos dias e já nada se diz ou escreve sobre o assunto, parecendo que este vai ser mais um caso entre muitos outros por resolver, juntando-se à há já longa lista de crianças e adultos desaparecidos no nosso País e que se desconhece o seu destino.
Todos nós temos o dever cívico de tentar ajudar as autoridades e por isso sugere-se a consulta regular à página da Polícia Judiciária (http://www.pj.pt/htm/pessoas.htm) onde consta a identificação dessas pessoas.

CALOTEIROS
O ministro das Finanças anunciou que a partir de Julho vai divulgar a lista de “caloteiros” ao fisco, prevendo recuperar em 2006 cerca de 1,5 milhões de euros em atraso. Segundo ele, o montante total de dívidas ascende a 17 mil milhões de euros e que, a ser cobrado na totalidade, dava para acabar com o défice de 2005 e ainda sobrava qualquer coisita.
Claro está que da tal lista não irão fazer parte os bancos e as seguradoras, nem aqueles senhores que têm dinheiro suficiente para lançarem OPAS sobre as “PT’s” recorrendo a uma subsidiária na Holanda e daí beneficiarem com a isenção do pagamento de 0,5 do imposto de selo a que todos nós estamos obrigados a liquidar às Finanças, sobre todas as operações realizadas com apoio da banca.
A esta fraude legal avaliada em 57,5 milhões de euros, junta-se também a isenção do pagamento de imposto sobre mais-valias e sobre dividendos, bem como à retenção na fonte dos juros bancários.
Realmente o mundo é dos espertos.

COOPERAÇÃO NUCLEAR
O senhor Bush foi ali ao Afeganistão cumprimentar os amigos que ele colocou no poder e aproveitou para dar um saltinho à Índia e ao vizinho Paquistão com o objectivo de estreitar as relações, estabelecendo acordos de cooperação sobre energia nuclear, onde estão contempladas as respectivas bombas, essas sim de destruição maciça, como se constatou em Hiroshima e Nagasaki.
Apesar de ter feito o seu primeiro teste nuclear em 1974, a Índia afirmou-se definitivamente como potência militar nuclear em 1998, tal como o Paquistão, não sendo signatária do Tratado de Não-Proliferação Nuclear (TNP). O tratado, que entrou em vigor em 1970, tem como principais objectivos evitar a proliferação de armas nucleares, fomentar o uso da energia nuclear para fins pacíficos e promover medidas conducentes ao total desarmamento nuclear do globo
Ao abrigo do acordo com o paranóico que julga ser o dono do mundo, a Índia promete dedicar a actividades exclusivamente civis 14 dos seus 22 reactores nucleares e mais 7 que está a construir, submetendo-os ao controlo internacional.
Assim se vê a coerência desta gente. Enquanto ao Irão e à Coreia do Norte (que até são signatários do Tratado) não lhes é permitido desenvolverem os seus projectos nucleares para fins pacíficos, outros até têm apoio dos americanos e da comunidade internacional que continua de cócoras perante a “grande potência” dos hambúrgueres e da batata frita.

01/03/2006

Co-incineração e psicopatia

(ou os «negócios da China» do Partido Socialista)

Da acção de Sócrates como ministro do Ambiente do governo de António Guterres, duas coisas ficaram na memória dos portugueses: a sua total incapacidade para resolver os graves problemas ambientais do país e uma doentia fixação no processo de co-incineração, que teimava em localizar na Arrábida e em Souzelas. Na altura, um vigoroso movimento de opinião alastrou pelo país e, principalmente nas regiões ameaçadas, contribuiu para pôr a nu os malefícios do processo e, ao mesmo tempo, desmascarar os verdadeiros interesses do Partido Socialista em todo aquele sinistro esquema. Por estas e por outras, Guterres fugiu a sete pés, o PS perdeu as eleições, e pensou-se, então, que a Arrábida estava salva e que o bom-senso se imporia nas decisões que os futuros governantes viessem a tomar.

De facto, Isaltino Morais pôs fim à cabala socialista, e apesar da sua curta passagem pelo governo de Durão Barroso, bem como a inconsequente governação do PSD e do CDS/PP não contribuíram para que o problema dos resíduos industriais perigosos tivesse uma solução mais rápida, ainda assim já estão homologados dois Centros Integrados de Recolha e Valorização de Resíduos Industriais Perigosos (RIP), o que praticamente dispensará a co-incineração em cimenteiras, ou a incineração dedicada.

Mas, afinal, o que é isso da co-incineração? Incinerar é tratar termicamente os resíduos. No caso da co-incineração de RIP em cimenteiras, o processo consiste em substituir parte do combustível fóssil utilizado nestas unidades industriais, como, p.e., o carvão, por resíduos que têm um poder calorífico significativo. A destruição dos RIP ocorre nos fornos das cimenteiras juntamente com as matérias-primas utilizadas para o fabrico do cimento. Neste processo, os componentes orgânicos dos resíduos são destruídos, mas os metais são incorporados no produto final, ou seja, no cimento.

Contudo, como qualquer outro processo de tratamento térmico de resíduos, comporta riscos, quer para o ambiente, quer para a saúde pública, como a libertação de poluentes atmosféricos, e é aqui que está o “calcanhar de Aquiles” do processo. Por outras palavras: uma parte dos resíduos (a menos perigosa) é eliminada, outra parte vai aparecer misturada com o cimento, e outra parte há que vai passar para a atmosfera, através de partículas de vária natureza, sendo as mais perigosas designadas por dioxinas e furanos, tidas como altamente cancerígenas. Isto é, o processo não é seguro.

E por o não ser, a co-incineração tem vindo a ser gradualmente posta de parte, de tal maneira que, no dia 22 de Maio de 2001 foi aprovada a Convenção de Estocolmo sobre os Poluentes Orgânicos Persistentes (POPs). Nela, os cerca de 100 países signatários, entre os quais Portugal, reconhecem que os POPs são muito perigosos para a saúde humana e o ambiente, devendo as suas emissões ser reduzidas o mais possível, e tanto quanto possível eliminadas por completo. Ora, a co-incineração de RIP em cimenteiras está explicitamente listada na convenção como uma actividade a ser eliminada o mais depressa possível, conforme se lê no anexo C, Parte II, alínea b) da referida Convenção.

Já nessa altura, caros ouvintes, não se compreendia que o Governo português, tendo subscrito essa convenção, quisesse, ainda assim, prosseguir com a co-incineração em Portugal. Para o fazer, Sócrates repetia, mentindo grosseiramente, que a co-incineração era inócua. Se o era, porque carga de água assinou, então, uma convenção internacional, com mais de 100 países, que diz exactamente o contrário? E o descaramento e espírito manipulador do então ministro do Ambiente – e actual PM – foram tão longe na tentativa de iludir o povo português, que o site do Ministério do Ambiente nunca divulgou a Convenção de Estocolmo nem, como aconteceu nos outros países subscritores, traduziu – e muito menos publicou – o texto saído da Convenção nesse seu site. Democratas…

Para que se veja, ainda, o calibre deste indivíduo a quem os portugueses deram rédea solta para governar o país, lembremo-nos que Sócrates afirmou nessa ocasião, respondendo a uma queixa apresentada em Bruxelas por altura da sua primeira investida com a co-incineração no Parque Natural da Arrábida, que (e cito) «nunca esteve nas intenções do governo a queima de resíduos perigosos no Outão».

Chegou a altura de dizer duas coisas: uma, é que a co-incineração é o «negócio da China» para qualquer cimenteira. Primeiro, porque recebe financiamentos estatais para se dotar com filtros e outros equipamentos que, alegadamente, melhorem o processo de queima; segundo, porque os resíduos que vai utilizar como combustível, permitem-lhe poupar mais de 30% no consumo em energia para funcionamento dos seus fornos; finalmente, porque uma parte dos resíduos vai entrar na composição do cimento, em vez das matérias-primas normalmente utilizadas. Talvez por isso, e tal como foi dito em 2001 – e então largamente divulgado na comunicação social escrita e falada – o PS terá sido altamente beneficiado com generosos donativos financeiros por parte das cimenteiras.

Outra coisa que convém denunciar é a farsa de uma tal Comissão Científica Independente (CCI), nomeada e paga pelo Governo socialista para decidir e acompanhar todo o processo de implantação e funcionamento da co-incineração. Independente, nunca foi, nem seria, caso ainda legalmente existisse, por duas razões principais. Em primeiro lugar, não se tratava de uma comissão de cientistas que procurassem a melhor solução para a queima de RIP, mas uma comissão de pessoas que, à partida, já defendiam a co-incineração – e por isso foram escolhidas e para isso eram pagas. Em segundo lugar, porque essas pessoas seriam pagas – e muito bem pagas, para cima de seiscentos contos mensais – para acompanhar o processo enquanto ele funcionasse, ou seja: sabendo dizer «Sim, senhor ministro», arranjavam um tacho vitalício. Mas que rica independência!

Talvez isso explique porque o relatório da CCI contém erros de tal modo grosseiros, que não se vê outra explicação para eles que não seja a de, a qualquer custo, “levar a carta a Garcia”, ou seja, fazer o frete ao Governo. Por exemplo: para demonstrar que uma cimenteira em regime de co-incineração emite poucas dioxinas, a CCI comparou as emissões de uma cimenteira com as emissões de fogões de sala, concluindo que a co-incineração numa cimenteira corresponde às emissões de dioxinas/furanos de 170 fogões de sala a queimar 4 toneladas de lenha por ano.

Mas como foram feitos os cálculos? A CCI estimou que uma cimenteira emite 0.41g de dioxinas/furanos por ano, dizendo, sem explicar como aí chegou, que, no máximo, 1/3 desse valor corresponde à co-incineração. Seguidamente, estimou as emissões de um fogão de sala, que queima 4 toneladas de madeira por ano (considerado que esta situação é representativa do caso português), citando um relatório dinamarquês que supostamente dizia que cada quilograma de lenha emite 200 nanogramas (ng) de dioxinas/furanos. Porém, quando se verifica o relatório dinamarquês citado, observa-se que o valor 200 ng / kg não aparece em lado nenhum. Apenas aparece o valor 200 ng / tonelada, ou seja, 1.000 vezes menor do que o valor usado pela CCI. Do relatório dinamarquês tira-se também que os 200 ng / tonelada não se referem a fogões de sala ("wood stoves") mas sim a um outro tipo de queima, mais industrial ("wood furnaces"). O valor para fogões de sala aparece numa outra secção do relatório dinamarquês, e é 1.9 ng / kg, ou seja, mais de 100 vezes menor do que o valor que a CCI usou nos seus cálculos.

Ou seja, o relatório mostra que houve um duplo erro por parte da CCI: por um lado, trocou toneladas por quilos. Por outro, utilizou um valor de uma secção de queima industrial, em vez de usar o valor da queima em fogões de sala.

Não há dúvida de que o valor 200 ng/kg usado pela CCI para queima residencial de madeira está errado. A bibliografia científica demonstra-o e a CCI sabia disso, uma vez que viu essa bibliografia. No entanto, a CCI nunca aceitou o erro e, mesmo assim, é neste tipo de argumentação que o governo de Sócrates se baseia para voltar a atentar contra a nossa saúde.

Chegados aqui, alguns ouvintes perguntarão: «Mas para o Governo insistir na co-incineração, não será que ela é a melhor solução para os RIP por aí produzidos e espalhados?». Só há uma resposta: «NÃO! NÃO É». E não é, por razões científicas e económicas internacionalmente aceites e valorizadas.

O que a comunidade científica internacional tem vindo a dizer – e que a Convenção de Estocolmo espelha e a União Europeia acompanha – é a aplicação da chamada regra dos Três Erres: Redução, Reutilização e Reciclagem de RIP.

Aliás, a Associação Nacional dos Médicos de Saúde Pública, que se pronunciou sobre a co-incineração, referiu, entre outras coisas, o seguinte:

«Quanto maior a quantidade de resíduos queimados, maior é a exposição humana a produtos tóxicos e, portanto, maior é o risco para a saúde pública. Apesar desta ser uma evidência unanimemente aceite, a CCI não fez recomendações no sentido de reduzir a produção de RIP, e ignorou a existência de experiências concretas em Portugal que demonstram a eficácia desta opção, como é o caso de 14 empresas de Setúbal orientadas por um programa do INETI» pois «a política dos três R deve sempre preceder a aplicação da incineração. Pelo contrário, a CCI insistiu numa atitude favorável à co-incineração dos óleos e solventes, esquecendo totalmente as prioridades da política de resíduos, não tendo sequer visitado a fábrica existente em Pombal para a regeneração de solventes halogenados e não halogenados. Também os óleos podem ser regenerados em Portugal e os resíduos finais inertizados, sem necessidade de incineração, o que a CCI nem sequer refere no relatório».

Mas ainda acrescentaram os Médicos de Saúde Pública:

«A defesa da Saúde Pública passa sempre por princípios, de que recordamos alguns:

Precaução - quando não conhecemos todos os efeitos sobre os humanos de uma determinada medida ou processo (como é caso da co-incineração) é melhor não os pôr em prática. Aliás, isso é prática corrente na UE (e Portugal soube-o quando foi atingido pelo embargo à carne de vaca por não ter totalmente controlada a "doença das vacas loucas"). E é certamente mais fácil controlar as vacas atingidas por BSE, do que os fumos das cimenteiras que não podemos estabular, nem abater.

Biodiversidade - como condição estrita para o normal desenvolvimento da vida e garante do equilíbrio da espécie humana com o ambiente que a rodeia. Defende-se a multiplicidade da vida, em particular as formas unicelulares como a matriz sustentadora da própria vida. Quando falamos de saúde humana, estamos a falar também da saúde dos microrganismos que co-determinam os ecossistemas onde vivemos. Além de poderem ser alteradas as espécies presentes nos ecossistemas atingidos pela poluição, os microrganismos concentram os poluentes e introduzem-nos na cadeia alimentar com graves riscos para a saúde humana.

(E meto um parênteses para dizer que nos locais onde ainda se pratica a co-incineração, é proibido, num raio de 30 km, desenvolver actividades agrícolas e agro-pecuárias).

A CCI propôs a co-incineração na cimenteira do Outão, em pleno Parque Natural da Arrábida, proposta que para além de legalidade duvidosa, carece de bom senso. A única proposta aceitável para o futuro daquela cimenteira, só pode ser o seu encerramento e a sua transferência do Parque para distância razoável, onde não possa pôr em risco o último santuário da flora mediterrânica primitiva».

Isto disseram os Médicos de Saúde Pública.

E é aqui chegados, ao Parque Natural da Arrábida, à Serra-Mãe de Sebastião da Gama, a essa pérola do nosso património natural, a esse santuário da fauna e, sobretudo, da flora, com espécies únicas no planeta – e que se encaminha para ser património natural da toda a Humanidade – que a fixação psicótica de Sócrates, a sua arrogância despótica – e, por isso mesmo, verdadeiramente imbecil – assume o aspecto de duplo crime: pelo que atrás ficou dito sobre a co-incineração, e pelo que representa enquanto atentado verdadeiramente terceiro-mundista a algo que só uma mente enviesada é capaz de não respeitar e defender – a Serra da Arrábida.

Hoje, uma única dúvida se me coloca: será apenas a psicose de um indivíduo a quem o exercício do poder descompensa gravemente, ou os negócios da China, com os seus opiáceos langores, terão levado o Partido Socialista a perder por completo a noção das mais elementares conveniências?

Dizendo de outro modo: será um caso clínico, ou um caso de polícia?


(Crónica de João Carlos Pereira - Lida aos microfones da Rádio Baía em 01/03/2006)

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