15/04/2009

PROFISSÃO: DEMOCRATA

O rapaz era um galdério, um piolhoso, uma coisa asquerosa, o desgosto permanente da família, uma das mais benquistas do Estado Novo. O Senhor Doutor bem gastava fortunas para meter o fedelho na ordem ou, pelo menos, dentro das aparências, mas o maldito não tinha amanho. Uma vez, veio o terrível recado, pior do que se da morte do fedelho se tratasse: O senhor inspector Barbieri telefonou e diz que tem muita urgência em dar-lhe uma palavrinha.

Suando frio, o Senhor Doutor disse à secretária que adiasse a reunião do conselho de administração do banco, mandou vir o carro e ordenou ao motorista que seguisse para a António Maria Cardoso, que era mesmo ali, ao virar de duas esquinas. A notícia caiu, brutal, da boca fria e severa do pide: O seu rapaz, caro doutor, anda por maus caminhos. Péssimos, se mo permite. Sabemos que tem contactos, lá na universidade, com organizações subversivas, e só ao facto de ser filho de quem é se deve agradecer a circunstância de ainda não ter sido detido. Como é que vamos lidar com isto, meu amigo?

O Senhor Doutor suou mais um bocadinho, enquanto mudava de cores. Primeiro, o pálido; depois, o vermelho, finalmente, o roxo. Não duvidava da eficácia da PIDE (na altura já alcunhada de DGS), é claro, mas não haveria ali qualquer confusão? Nenhuma, garantiu o outro, gélido. Olhe, senhor inspector, eu vou tomar medidas, eu vou fazer, por minhas mãos, aquilo que nem os senhores seriam capazes de fazer. O Senhor Doutor, na ocasião, não foi capaz de perceber o meio sorriso irónico do interlocutor, e lá continuou: Vou trazer-lho aqui e, com ele, tudo o que for necessário saber. Não é um favor que lhe faço. É o meu dever de português e patriota. É, também, a paga pela sua generosa amizade.

E foi mais ou menos assim. O Zézito aguentou-se a um valente par de estaladas que, de surpresa, o progenitor lhe aplicou no focinho sebento, enquanto relinchava um catálogo inteiro de impropérios. E naquela mesma noite lá foi, pela paternal arreata, até à António Maria Cardoso, onde passou dois dias e duas noites numa das suas «salas de estar», naquilo que ele supôs ser uma terrível provação, mas que se resumiu a uma tosca encenação de um interrogatório e tortura, previamente combinada entre o progenitor e o inspector Barbieri. Quando se borrou todo, já no fim do segundo dia, estavam salvas a honra da família e a segurança do estado.

Seguiu-se o desterro nos Estados Unidos, o aclarar das ideias, o perceber das vantagens de se pertencer a uma família que vivia numa casa-forte e paredes meias com o poder e, principalmente, a oportunidade de olhar a guerra colonial em curso como uma coisa distante, só para os outros, para os totós, para a escumalha. Depois, as americanas eram loucas por latinos, e abriam-lhe as pernas mais depressa do que abriam garrafas de coca-cola ou devoravam cachorros quentes…

Já curado da sua doença esquerdista, o Zézito regressa a Portugal e vai para o banco do papá, o ainda Senhor Doutor, claro, onde tinha à sua espera, para começar, um cargo na direcção. É aí que acontece o 25 de Abril, coisa que o nosso rapaz encara com alguma tranquilidade, convencido de que não vai ser nada de grave, mas apenas o fim da época da «brigada do caruncho», que iria ceder o espaço aos jovens generais da finança. Bem lhe resmungava o pai que não, que a coisa fiava mais fino do que isso, mas foi algo de que só se convenceu em 14 de Março de 1975, após o golpe falhado de Spínola e a consequente nacionalização da banca.

Aí, pregou o segundo susto (e desgosto) ao Senhor Doutor, filiando-se no PPD. O velho banqueiro considerava que todos os partidos eram à esquerda, uns mais, outros menos. E o Zézito lá foi andando, maria-vai-com-as-outras, mas sempre tendo o cuidado de espetar os dedinhos em «V» e gritar PPD! PPD! PPD! sempre que era preciso fazê-lo.

Fosse por intuição, fosse porque pela primeira vez na vida teve um ataque de inteligência, um dia decidiu que não tinha futuro no partido de Sá Carneiro e, olhando em volta, percebeu que o Partido Socialista era mesmo o que lhe convinha. Perguntou ao pai o que pensava da sua ideia, esperando uma explosão do velho, sabida que era a sua aversão por tudo o que estivesse ligado ao regime saído do 25 de Abril e, principalmente, se fosse coisa chamada comunista, socialista, democrática ou popular. Curiosamente, o Senhor Doutor, em vez de explodir, sorriu e disse: Parece que começas a ter juízo, finalmente. Fazes bem, rapaz. Junta-te a esses, que vão ser mesmo esses a devolver-nos os bancos e o poder que tivemos.

E lá foi o Zézito inscrever-se no PS. Ali, aprendeu o bê-á-bá da política, como utilizar os rins e os punhais, os venenos e os sorrisos, os meandros da linguagem que diz o que não diz, os reposteiros das intrigas, os corredores, os armários e as gavetas das traições mais rasteiras. Aprendeu a juntar-se à facção certa e, como prémio, foi colocado no conselho de gestão do banco que fora do papá, entretanto privatizado e entregue pelo PS a outro grupo económico. Mas não gostou do ambiente. Não havia o charme de outros tempos. Esgravatou e, passados uns meses, quando houve eleições para a Assembleia da República, arranjaram-lhe um lugar na lista do partido, uma coisinha cá para baixo. Devido às várias renúncias, ainda assentou o traseiro, cada vez mais arredondado, na bancada socialista, onde teve tempo e méritos para fazer ouvir os seus «bravos» a «apoiados» aos correligionários oradores.

Daí para cá, meus amigos, o Zézito não parou. Foi director-geral, secretário de Estado, assessor, outra vez deputado, administrador em três ou quatro empresas (entre públicas e privadas), autarca, comentador e analista em estações de televisão, rádio e jornais. E por aí fora. Enfim, o costume.

E foi um dia destes que o reencontrei, à saída da SIC. Fazendo-me de parvo, exclamei: Olha o Zé! Tás bom, pá? E dei-lhe um abraço, de surpresa. E ele, meio aparvalhado: Conheço-o? Sou o Pereira, pá, da faculdade, não te lembras? Pois és, disse ele, reconhecendo-me. O que é que fazes?, perguntou-me. Escrevo, puxo pela cabeça, remo contra a maré. E tu?, perguntei-lhe, como se dele nada soubesse.

O tipo embatucou, sorriu, tentou perceber se eu estava a sério ou no gozo, mas eu mantive a pose. Sim, o que é que fazes? Ou não tens profissão?, insisti, rindo-me.

A minha profissão? Olha, sou democrata, disse-me ele, com o ar mais sincero deste mundo.


PS – Agora, façam-me o favor de não matar a cabeça a tentar ligar o nome – Zézito – a qualquer figura real. Estivemos no campo da ficção e, meus amigos, o Zézito é como os chapéus: há muitos! Francamente, nem sei como a nossa democracia consegue sustentar tantos Zézitos…


Lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 15/04/2009.
(Não deixe de ouvir em 98.7 Mhz e participar pelos telefones 212277046 ou 212277047 todas as quartas-feiras entre as 09H00 e as 10H00).

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Pensava eu que o final seria:

A minha profissão?

Olha, não faço nada! Sou deputado.

CV

15/4/09 9:17 da manhã  

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