26/10/2005

Um piquinho a azedo

José Sócrates começou a apodrecer – ou a azedar – mais depressa do que seria imaginável, principalmente se pensarmos no que por aí se disse e pensou no dia a seguir às eleições que lhe deram a maioria absoluta, e no que se diz e pensa agora. O seu estilo afectado e, simultaneamente, arrogante, a dificuldade em esconder a sua tendência para o descontrolo emocional e, por conseguinte, a facilidade com que perde as estribeiras sempre que se vê confrontado com críticas próprias do debate democrático – o que, aliás, é característico de pessoas que padecem de uma qualquer debilidade que as singulariza em relação ao comum dos mortais – a evidente contradição entre o gozo que lhe dá a detenção do poder e essa incapacidade para lidar com as contrariedades que o mesmo poder comporta, são coisas que têm contribuído para que seja cada vez mais negativa a opinião que os portugueses têm desta parda e sinistra figura que o PS se viu obrigado a promover a seu secretário-geral.

De cada vez que fala, em cada esgar ou tique que lhe fogem, nas resposta que dá – e como as dá – na entoação ligeiramente aflautada com que julga embelezar o discurso, enfim, sempre que se vê obrigado a representar a rábula do homem de Estado a quem foi confiada a missão de salvar o país, nada mais faz do que desnudar-se e ostentar a verdadeira natureza do seu carácter e do seu temperamento. Ao fim de poucos meses, já todos percebemos que, debaixo do invólucro, nada há que caucione o homem público. Este Sócrates, hoje, não só não teria a maioria absoluta, como dificilmente ganharia as eleições. Cansou-nos depressa. Quase enoja.

Estas considerações de carácter pessoal, que alguns ouvintes julgarão despropositadas e, por conseguinte, desnecessárias ao debate ou aos comentários políticos, parecem-me, no entanto, pertinentes, pois, para além de se dizer – e com razão – que um homem é o seu estilo, é quanto a mim indispensável que percebamos a qualidade humana de quem tem nas mãos o poder de decidir sobre a nossa vida – o nosso presente e o nosso futuro. Aliás, essa necessidade de conhecer o outro é indispensável – e lícita, até – em variadas situações da nossa vida. Por isso, se avalia a personalidade de um candidato a um emprego, não bastando as suas qualificações técnicas ou académicas. Por isso, também, não basta a um jogador de futebol ser exímio técnica e fisicamente, se a cabeça não souber responder às exigências da sua profissão – e disso temos exemplos famosos e tristíssimos. Quanto maior for a responsabilidade do cargo, mais importante é saber-se quem é, por dentro e por fora, o indivíduo que o desempenha ou vai desempenhar.

Lembro-me de certo autarca me ter confidenciado, a propósito de Sócrates, que viera assustado da reunião que acabara de ter com o então ministro do Ambiente. «Perigoso» e «sinistro» foram alguns dos adjectivos utilizados. Pretendia Sócrates, então, espalhar pelo Distrito de Setúbal uma série de equipamentos destinados à queima de resíduos industriais, onde se incluía a famigerada co-incineração na Arrábida. Face à recusa que o autarca manteve, o ministro deixou que a reunião acabasse e, numa conversa de reposteiro, tentou aliciá-lo para a aceitação, prometendo, em troca, a realização de obras no concelho em causa, as quais, de outra maneira nunca seriam feitas.

É pois, este homem que governa Portugal. Um homem que prometeu não aumentar os impostos, mas que os aumentou. Um homem que prometeu referendar a questão do aborto, mas que se prepara para dar o dito por não dito. Um homem que prometeu 150 mil novos postos de trabalho, mas que tem deixado o desemprego tomar o freio nos dentes e atirar milhares de famílias para o beco da angústia e do desespero. Um homem que prometeu transparência e dignificar a governação, mas que tratou logo de encaixar amigos e correligionários em todos os degraus do aparelho do Estado, na linha socialista do infame “jobs for the boys”. Um homem que prometeu justiça social, mas que descarrega sobre os extractos mais débeis da população a factura da crise, deixando intocáveis as grandes fortunas e os grandes rendimentos, que todos os dias engordam e se acrescentam.

É este homem que enviou para a Assembleia da República uma proposta designada por Lei das Águas – que foi aprovada pelo PS, PSD e CDS – e que permite ao Governo vender aos privados toda a água existente em Portugal, dos rios às albufeiras, das praias aos portos, das nascentes aos lagos, dos lençóis freáticos (ou seja, a água que existe debaixo do chão, e onde se abastecem muitas autarquias para servir as populações) até ao mais simples fontanário. O que o socialista Sócrates quer, como quer qualquer ditador de uma qualquer república das bananas, é transformar a água pública, um bem indispensável à vida, num bem privado, numa simples mercadoria destinada a aumentar as fortunas que já fazem de Portugal, nos dias que correm, o país mais injusto da Europa, e onde são maiores as desigualdades entre ricos e pobres.

Pela mão do PS e de Sócrates, os portugueses estão a ficar totalmente nas mãos do poder económico, e só falta saber quando e como será privatizado o ar, a última fronteira da fúria neo-liberal.

Entretanto, numa manobra de diversão tão estúpida como inócua, o Governo arremete contra certas camadas da classe média, a pretexto de moralizar o país. Tirando aos juízes e aos militares, aos magistrados do MP e aos polícias, por exemplo (ou dizendo que o quer fazer), Sócrates apenas pretende dar um ar democrático à sangria que está a impor aos trabalhadores em geral, e assim legitimá-la. Por outro lado, não são os polícias, ou os militares, ou os juízes ou outras profissões com regimes especiais que têm privilégios ou regalias imorais, como agora tanto insistem os comentadores e analistas em afirmar. São os que ainda não beneficiam dessas condições de assistência social que estão mal. A diferença entre o que tem um simples funcionário público ou um vulgar trabalhador por conta de outrem e, por exemplo, um juiz, sendo grande, será sempre menor do que entre aquilo que tem o mesmo juiz e as tais 100 maiores fortunas portuguesas, de que falámos há 8 dias, e que representam 17% do Produto Interno Bruto, ou os tais 20% dos mais ricos, que controlam 45,9% do rendimento nacional (quase metade da riqueza produzida). Aí é que mora a imoralidade, a infâmia, a vergonha – ou a falta dela.

Mas nestas águas dos verdadeiramente ricos não quer pescar José Sócrates, para aí não lhe dá a veneta moralizadora. Entretanto, vai-se chamando privilégios e regalias a tudo o que são direitos – e direitos alguns classificados, até, como Direitos Humanos. E quem o diz, regra geral, é gente com vários e largos tachos, eles, sim, bem regalados nos seus incontáveis privilégios.

Como as coisas se estão a pôr, nada me espanta que, um dia destes, o mais simples e elementar direito, como o de alguém (das classes baixas, note-se) se alimentar convenientemente, ter trabalho e a respectiva remuneração, mandar os filhos à escola ou só pagar uma taxa moderadora para ser visto durante cinco minutos por um médico, passe a ser considerado um privilégio imoral, ou uma regalia incompatível com a situação de crise em que o país está mergulhado.

É o cinismo no seu esplendor. Mas que a isto chegássemos num consulado socialista, só espanta a quem não os conhecer.

Ou fingir que não conhece.

Crónica de João Carlos Pereira - Lida aos microfones da Rádio Baía em 26/10/2005

22/10/2005

Os ricos, os pobres e os camelos

Na segunda-feira passada, foi assinalado o Dia Mundial para a Erradicação da Pobreza. Como acontece sempre que se assinala um dia de qualquer chaga social, toda a gente descarrega a consciência debitando as mais angélicas intenções. Todos têm, para resolver o problema, receitas milagrosas, projectos infalíveis, panaceias fantásticas e, acima de tudo, todos têm a certeza de que ninguém tem culpa do estado a que as coisas chegaram. E assim foi agora. No caso da pobreza e da fome, parece considerar-se que elas são uma fatalidade, uma espécie de cataclismo natural, sem quaisquer responsáveis, por acção ou omissão. Há ricos e pobres, e acabou-se. Talvez umas acções beneméritas, um esforçozinho aqui e acolá, duas mesas redondas, um simpósio, um chilrear de passarões, duas declarações de princípios… e já está. No dia a seguir, já ninguém se lembra de nada… e a vida continua no seu ritmo triturador.

Por estas alturas, também é hábito divulgarem-se estatísticas sobre o tema em questão, verificando nós que, no ano seguinte, nem um só dos problemas focados foi resolvido, como todos eles se agravaram. É assim, também, com a pobreza e a fome que lhe está sempre associada.

Recordo, por isso, alguns dados vindos a lume a propósito do tal Dia Mundial para a Erradicação da Pobreza.

Primeiro (e horripilante): Morrem de fome por dia, em todo o mundo, mais de 2 milhões de seres humanos;

Segundo: Em 2003, morreram de fome 841 milhões de pessoas e, em 2004, esse número subiu para 852 milhões;

Terceiro: No entanto, a ONU garante que o planeta tem recursos suficientes para produzir alimentos para o dobro da população actualmente existente;

Quarto: Portugal é o país da União Europeia onde é maior a desigualdade entre ricos e pobres;

Quinto: No nosso país, por cada cinco habitantes, há um que vive no limiar da miséria, o que dá a vergonhosa cifra de dois milhões de compatriotas nossos que vivem em condições verdadeiramente aviltantes;

Sexto: Esta situação, de acordo com os parâmetros de avaliação internacionais, coloca-nos na condição de um país em vias de desenvolvimento. E contra este facto não há argumentos, mesmo que sejam 10 novos estádios de futebol e outras fantasias absurdas e criminosas;

Sétimo: As 100 maiores fortunas portuguesas representam 17% do Produto Interno Bruto (PIB) e 20% dos mais ricos controlam 45,9% do rendimento nacional (quase metade da riqueza produzida); Se sobre isto se pagasse imposto, o problema do défice já tinha sido resolvido;

«E o Governo não faz nada para atenuar esta situação?», pergunta, entre inquieto e escandalizado, o amigo ouvinte. Claro que faz! Então, não sabemos todos que o PS é um partido socialista, dos trabalhadores, e que está, naturalmente, atento a estes problemas? Então, fique a saber que para combater este vergonhosa situação, o Governo de Sócrates tomou medidas extraordinárias, de largo alcance social, que serão definitivas para erradicar a miséria que avassala o país. «E Quais são?». Quer saber, quer?

Então, oiça: no Dia Mundial da Erradicação da Pobreza, o Governo do engenheiro Sócrates decidiu:

1 - Que o ministro do Trabalho e da Solidariedade Social, Viera da Silva, visitasse a Associação Cais e as instalações da "Escola das Profissões", onde assistiu à evolução de vários projectos de combate à pobreza e à exclusão social na Área Metropolitana de Lisboa;

2 – Que o mesmo ministro presidisse à abertura da sessão de trabalho "Contratos de Desenvolvimento Social – um instrumento contra a pobreza e exclusão social".

E pronto! Uma visita do senhor ministro a uma instituição de solidariedade social e a uma escola de profissões, para além de assentar o traseiro na cadeira central da mesa onde presidiu a uma conversa da treta, chegam para deixarmos de ser um país em vias de desenvolvimento (ou em vias de deslizamento para o Terceiro Mundo), para passarmos logo a país desenvolvido. Um país do pelotão da frente…

Mas como o Governo PS está seriamente empenhado em combater a pobreza, por esta mesma altura, um grupo de doutores e engenheiros, por sinal todos colegas ou camaradas do senhor ministro, fechados numa sala a cheirar a passado, com salazarentas poeiras e mofos marcelistas, decidiu que as tarifas dos transportes públicos deveriam subir quase 4%, atirando para perto dos 8% os aumentos desde o início do ano.

Esta inteligente maneira de motivar os portugueses para o investimento – isto é: para adquirirem transporte privado, no qual passa a ser mais barato um tipo deslocar-se para o emprego ou para a escola, ou para passar a andar a pé, que é porreiro para baixar o colesterol – foi logo acompanhada de mais uma medida de largo alcance social e económico, como foi essa de aumentar o gás e a electricidade em mais 3,7%.

Entretanto, nada de aumentos salariais, antes pelo contrário. Tire-se aos trabalhadores tudo o que puder ser tirado, sem que se corra o risco de eles caírem para o lado de fome e desespero. (Então, depois, quem é trabalhava neste país e produzia, ou transportava, ou distribuía aquilo que os ricos, a tal meia dúzia de pessoas gostam e precisam de comprar e consumir, até mesmo o simples papel higiénico?)

Obrigue-se a malta a trabalhar até aos limites. Pague-se-lhe o mínimo possível, retire-se-lhe, pelos impostos e pela inflação, o último cêntimo perdido no forro do casaco, pois só assim se salvará esta república feudal do descalabro anunciado. Deixe-se aos ricos o problema de não entrarem no reino dos céus, que os camelos passarão pelo fundo de uma agulha, o qual fundo, face à magreza patriótica que nos é imposta, mais parece o arco da Rua Augusta.

«Mas quem são os culpados disto?», oiço alguém murmurar, encostado ao rádio. Apetece-me dizer-lhe que somos nós, os camelos. Mas não digo. Os meus quase trinta e dois anos desta ditadura enfeitada de democracia, permitem-me identificar os principais criminosos – e se houver alguém que não concorde e saiba de mais culpados, ou de outros culpados, que não estes, faça o favor de me informar. Basta ligar para os números do costume.

Até lá, meus amigos, os responsáveis pela nossa fome, pelo nosso atraso, pela nossa apagada e vil tristeza, chamam-se Mário Soares, Pinto Balsemão, Cavaco Silva, António Guterres, Durão Barroso, Santana Lopes e José Sócrates. Têm cúmplices, sim, senhor: todos os ministros e secretários de Estado dos governos que lideraram. Eles tiveram o poder absoluto nas mãos ao longo destes últimos 30 anos. Se aqui – a isto – chegámos, a eles – e só a eles – o devemos.

Deste ponto de vista, podemos chamar aos respectivos partidos, verdadeiras associações criminosas. Mas o ouvinte quer saber mais: «E a quem lucrou o crime?», pergunta. Ao poder económico, pois claro. A sua curiosidade é insaciável: «E quais foram as armas do crime?». O decreto, o decreto-lei, a portaria, o despacho, respondo eu.

«E o voto? Não é também uma arma?», volta a perguntar você.

Devia ser, devia… Mas você não sabe que os camelos são animais que aguentam tudo – até a fome e a sede extrema – sem se queixarem?

E depois, quando é que se viu um camelo aos tiros?

Crónica de João Carlos Pereira - Lida aos microfones da Rádio Baía em 19/10/2005

12/10/2005

Repugnância e satisfação

Tinha prometido a mim mesmo que poria de lado as eleições autárquicas mal elas se realizassem. Mas como isto de promessas, à boa maneira da classe política, não é coisa para levar a sério, deixei-me apanhar pelo vírus, e lá vou eu falar das eleições de domingo.

Antes disso – ou a propósito disso – trago para esta conversa outro enorme coice desse grande democrata, republicano, laico e socialista (salvo seja, claro…), de seu nome Mário Soares, candidato às presidenciais de Janeiro, que resolveu, em local e dia para tal interditos, apelar ao voto no seu querido e rechonchudo menino, que concorria à presidência da Câmara Municipal de Sintra. Olhando o país e as leis da República como coisa sua, de que pode fazer gato-sapato a seu bel-prazer – o que, aliás, faz escola e doutrina no Partido Socialista, de que também é progenitor – o futuro grande derrotado nas eleições presidenciais não percebeu que essa atitude, de tão leviana e estúpida, iria ter consequências desastrosas para a sua imperfeita réplica. É claro que João Soares, o grande amigo de Jonas Savimbi, já tinha o destino traçado em Sintra, mas este apelo do papá, ridículo e desesperado, deve ter retirado mais umas boas centenas de votos ao assimétrico infante, bem como ao seu amigo, o troglodita Jorge Coelho, que também concorria à Assembleia Municipal. Não resisto, a este propósito, a ler parte dum e-mail que uma ouvinte do Barreiro me enviou. Diz ela:

«Fiquei muito contente pelos resultados aqui no Barreiro, e porque dei uma ajuda para tirar daqui os socialistas. Eu fiz o chamado voto útil, mas ajudou o facto de me terem esclarecido sobre o candidato da CDU. Assim, fiquei muito mais à vontade. Também adorei ver o Carmona ganhar em Lisboa e derrotar o snob do Carrilho, mas acima de tudo gostei de ver o Rui Rio pôr KO o mafioso do Pinto da Costa. Este fracasso eleitoral do Assis, que Pinto da Costa veio apoiar publicamente, deve-lhe ter sido mais penoso do que uma qualquer derrota do seu FCP, sabendo-se que estavam interesses em jogo que, com a derrota do Assis, se comprometeram e o devem ter deixado completamente vencido, no tapete. Também acho que o Mário Soares deu a estocada final na sua candidatura: um autêntico balázio no próprio pé. Se alguém tinha dúvidas de que ele está senil, com aquela estupidez de pedir votos para o filho ficou mais que demonstrado que o homem não tem carácter, nem lucidez, nem discernimento. Adorei vê-lo derrapar na sua própria porcaria».

Mas vamos lá às autárquicas e deixemos a família real em paz, a matutar na sua adivinhada decadência, com a cacetada final prevista para daqui a mais ou menos três meses, quando Soares – o velho – perceber que afinal, como ele disse antes, ter voltado à política foi um «erro brutal».

As eleições de Domingo provocaram-me dois sentimentos opostos: de repugnância e de serena satisfação.

De repugnância, quando vi e ouvi a raiva boçal de Fátima Felgueiras, Valentim Loureiro e Avelino Ferreira Torres. Já Isaltino, embora eu considere que, tal como os outros três, não deveria ter-se candidatado enquanto a Justiça não esclarecesse o que deve ser esclarecido, adoptou, no momento da vitória, uma postura bastante mais civilizada e inteligente. Todos eles, no entanto, provaram a força que o caciquismo e a manipulação têm na nossa esfarrapada e decadente democracia. Todos eles, afinal, demonstraram que conhecem bem o país em que vivem e afirmaram, implícita ou explicitamente, que não foram proscritos pelos seus partidos por aquilo que fizeram, mas porque deixaram de ser úteis quando caíram nas malhas da lei.

De repugnância, ainda, quando José Sócrates e outros dirigentes socialistas pretenderam negar duas coisas: negar que o PS sofrera uma derrota estrondosa (ainda maior do que a de 2001); e negar que estes resultados estavam relacionados com o descontentamento dos portugueses em relação à sua governação.

De repugnância, também, quando alguns comentadores políticos se apressaram a seguir a mesma tese, tentando com isso branquear a governação socialista, como se ela, com os seus inúmeros malefícios, não passasse de um mal necessário. Uma fatalidade.

De repugnância, mais uma vez, quando Marques Mendes e Ribeiro e Castro se apressaram a proclamar que, embora a derrota do PS seja um reflexo da sua governação, que é nociva para os portugueses, não pode estar em causa a continuidade do governo nem a sua estabilidade. Então, meus amigos, em que ficamos? Ficamos nisto: para eles, se alguém tem de esfolar os trabalhadores e aplicar políticas desumanas e anti-sociais, então que seja o PS a fazê-lo. Ou seja: não é a natureza da política em curso que preocupa o PSD e o PP. Pelo contrário. Com o PS a governar assim, a direita mata dois coelhos de uma cajadada: vê a sua política concretizada sem custos, porque eles são todos debitados ao Partido Socialista.

Mas, também, um sentimento de serena satisfação… porquê? Porque vi e ouvi Rui Rio, depois de saudar Francisco Assis, voltar-se ostensivamente para as câmaras de televisão e dizer, martelando bem as palavras, que destacava a campanha da CDU, porque tinha sido a única força política sua adversária que não recorreu à mentira nem a manobras sujas durante a campanha.

Serena satisfação, porque ouvi Fernando Seara dizer que ninguém espere que o facto de ter sido reeleito – e por margem ainda mais confortável – possa amolecê-lo e embalá-lo para um mandato pouco exigente ou preocupado com os interesses de Sintra. Ao demonstrar saber os perigos que a habituação ao poder traz consigo, as palavras de Fernando Seara devem ser interiorizadas pelos eleitos de todas as forças políticas.

Serena satisfação, quando Jerónimo de Sousa esclareceu, mais uma vez, que a CDU preferiu perder a Câmara de Redondo, do que apoiar um candidato que valorizou os seus interesses pessoais em prejuízo dos interesses da população e dos princípios do PCP. Para os comunistas, a água não é um bem comercializável, nem deve ser negócio para ninguém, muito menos para quem se diz de esquerda e comunista.

Serena satisfação, porque, contrariando ventos e marés, furacões ideológicos e tsunamis desinformativos, como única força política que não depende do poder económico nem se amanha à mesa do orçamento, que não está na política para se governar em vez de governar, que coloca o país e os seres humanos que o habitam como sua preocupação central, a CDU conseguiu, apesar de várias vezes dada como agonizante e até defunta, mostrar a sua enorme vitalidade e espírito combativo, com a conquista ou reconquista de mais câmaras e mandatos.

Serena satisfação, porque, muito para além das simpatias meramente partidárias, este facto significa que, como disse o poeta, «há sempre alguém que resiste, há sempre alguém que diz NÃO!». Significa que a esperança nunca morre e que, a par dos corruptos e dos oportunistas, dos traidores e dos ambiciosos, dos ladrões e dos mentirosos, há homens e mulheres dispostos a construir uma vida melhor para os seus semelhantes, principalmente para aqueles que mais necessitam. E sem nada quererem em troca.

Serena satisfação, porque sei que se abriu, no passado Domingo, uma janela maior sobre os políticos de todos os partidos. Os autarcas agora eleitos vão estar sujeitos a uma outra atenção das populações e dos seus próprios aparelhos partidários. Se outro mérito não tiveram Fátimas e Valentins, tiveram, pelo menos, o de fazer incidir sobre os detentores de cargos públicos um novo e mais atento olhar.

Na CDU, para além da exigência contínua de trabalho, honestidade e competência, importará, certamente, verificar-se se o trabalho desenvolvido emerge dos princípios ideológicos do PCP e dos seus aliados. Não basta ser-se trabalhador, honesto e competente. Julgo que o que tem mantido vivo e vigoroso o PCP, é ter sabido ser diferente e estar do lado de cá da barricada: do lado das pessoas, dos trabalhadores, dos que mais precisam. Autarca comunista que não entenda assim, autarca da CDU que se deixe desviar pelo sabor do cargo – e que veja nele um fim e não um meio para servir – autarca que envaideça ou se limite a aplicar ou defender medidas neo-liberais, como fazem Sócrates e o resto da direita, não pode merecer a confiança de ninguém, muito menos a do PCP. Que se vá. E vá depressa.

Acabo esta conversa lendo parte de texto de Miguel Urbano Rodrigues, publicado no site http://resistir.info, precisamente a propósito disto:
«Afinal, no Barreiro, como em Serpa, em Peniche como em Moura, ao derrotarmos os responsáveis pela transformação do Portugal de Abril num país imperializado e parasitário, estamos também lutando pelos povos do Iraque, da Venezuela Bolivariana, da Cuba socialista. Por quantos na Terra enfrentam com heroísmo uma engrenagem medonha que ameaça a continuidade da vida».

Crónica de João Carlos Pereira - Lida aos microfones da Rádio Baía em 12/10/2005

06/10/2005

Essa enorme e possante besta

Foi o holandês Erasmo que um dia caracterizou, com cruel ironia, o povo como sendo «essa enorme e possante besta». A sua obra mais importante, o “Elogio da Loucura”, onde critica a sociedade da época, incluindo a Igreja, da qual era parte, desanca os poderosos de então, ridicularizando-os e expondo a podridão dos poderes instituídos – os poderes do costume: o político, o económico e o eclesiástico.

Sendo o humanista mais célebre do séc. XVI, não espanta sabermos que, apesar de conviver com as mais altas personalidades do seu tempo, não teve a vida fácil. Por exemplo: em 1524 afasta-se das posições de Lutero e vê-se coagido a procurar refúgio em Friburgo, durante alguns anos É aí que escreve os seus “Colloquia”, nos quais as polémicas anti-medieval e anti-monástica, para além da excelente forma literária que a obra assume, resultam da sua visão social bastante avançada para a época.

Mas tudo isto vem a propósito da excelente expressão «enorme e possante besta», que, ainda hoje, quase quinhentos anos depois, muitíssimo bem, na minha modestíssima opinião, nos caracteriza. Hoje, como há meio milénio atrás, poucos são os que sabem – e, sabendo-o, se atrevem a dizê-lo – que o mundo é território de uns quantos – muito poucos – que conseguem, por artes, manhas e artimanhas (ou pela força bruta, se necessário) pôr esta «enorme e possante besta» a encher-lhes as arcas e as panças. Enorme e possante besta e – acrescento eu – quase sempre mansa que nem cordeiro pascal.

Não é assim?! Então, oiçam: há dias, dentro da maior legalidade, se reformou Santana Lopes, com cerca de 600 continhos (e este é dos mais baratuchos). É também dentro da mais estrita legalidade, como não podia deixar de ser, que o socialista Vítor Constâncio se amanha com um ordenado de tal modo indecente (com a garantia de reforma ao fim de cinco anitos de função) que o Governo PS se recusa a dizer a um deputado da AR quanto pagamos nós, com os nossos impostos, ao seu camarada. Consta que é quase o dobro do que aufere o seu homólogo norte-americano. É também dentro da mais absoluta legalidade que a Galp se parece, no dizer da voz do povo – e de um texto que anda por aí a circular, via Internet – com um albergue de parasitas e uma toca de incompetentes.

Tome nota do que diz o povo e diz o texto:

«Um quadro superior da GALP, admitido em 2002, saiu com uma indemnização de 290.000 euros, em 2004. Tinha entrado na GALP pela mão de António Mexia, e saiu de lá para a REFER, quando Mexia passou a ser Ministro das O.P. e Transportes do governo PSD. O filho de Miguel Horta e Costa, recém-licenciado, entrou para a Galp com 28 anos e a receber, desde logo, 6.600 euros mensais. Freitas do Amaral foi consultor da empresa, entre 2003 e 2005, por 6.350 euros/mês, além de gabinete e seguro de vida no valor de 70 meses de ordenado. Manuel Queiró, do PP, era administrador da área de imobiliário, com 8.000 euros/mês.

A contratação de um administrador espanhol incluiu 15 anos de antiguidade, pagamento da casa e do colégio dos filhos, entre outras regalias. Guido Albuquerque, cunhado de Morais Sarmento, foi sacado da ESSO para a GALP. Custo: 17 anos de antiguidade, ordenado de 17.400 euros e seguro de vida igual a 70 meses de ordenado. Ferreira do Amaral, presidente do Conselho de Administração, um cargo não executivo, era remunerado de forma simbólica: três mil euros por mês, pelas presenças. Mas, pouco depois da nomeação, passou a receber PPRs no valor de 10.000 euros, o que dá um ordenado "simbólico" de 13.000 euros. E da badalada reforma de Mira Amaral, já nem vale a pena falarmos…

Outros exemplos: um engenheiro agrónomo, que foi trabalhar para a área financeira a 10.000 euros por mês; uma especialista em Finanças, que foi para o Marketing por 9.800 euros/mês. Neste momento, o presidente da Comissão executiva ganha 30.000 euros e os vogais 17.500. Fernando Gomes, entrou para a administração. Com a nova situação e os novos aumentos, Murteira Nabo passa de 15.000 para 20.000 euros mensais».

É tudo isto que nos faz dizer que o clássico «é fartar, vilanagem», já perdeu cor e força perante este banquete feudal, feito nas barbas e à conta da enorme e possante besta de que falava Erasmo. Do povo. De você, de mim, de todos nós.

Mas enquanto o regabofe decorre, e suas excelências, sempre dentro da maior legalidade, determinam os seus ordenados e as suas reformas ao fim de escassos anos, o PS prepara-se para golpear ainda mais a enorme e possante besta que nós somos. Agora, são quase 2 milhões os trabalhadores que poderão ver as suas reformas futuras reduzidas, se o ministro do Trabalho e da Segurança Social, Vieira da Silva, conseguir fazer acelerar o sistema de transição para a nova fórmula de cálculo das pensões. Os prejudicados pela redução do período de transição defendido pelo governante, são todos os contribuintes para a Segurança Social que têm actualmente entre 30 e 50 anos, isto é, aqueles que começaram a descontar antes de 2001 e que deixarão de ver as suas pensões calculadas com base na média dos últimos dez anos, para passar a ser calculada como a média de todos os anos de contribuições.

Diz o Governo que esta alteração é para garantir a sustentabilidade da Segurança Social. Mas não diz que há milhões de euros que não entram na Segurança Social, porque milhares de empresas não só não pagam o que devem, como ainda ficam com o valor das contribuições que descontaram aos trabalhadores. E dessas empresas, muitas há que faliram ou estão à beira disso, porque as políticas governamentais as têm asfixiado e conduzido à destruição de grande parte do aparelho produtivo.

O que o Governo não diz, para não se desmascarar, é que obedece a Bruxelas nas pescas, na agricultura, na indústria siderúrgica e metalomecânica pesado, e vende a nossa capacidade produtiva a troco de subsídios que, por azar nosso, vão parar sempre aos bolsos dos mesmos, directamente ou através do betão e das obras megalómanas. O que o Governo não diz, é que por cada fábrica que fecha ou que, criminosamente, se deslocaliza para o estrangeiro, são centenas de pessoas que ficam sem emprego, e por isso deixam de contribuir para a Segurança Social, mas vão aumentar a conta do subsídio de desemprego que é pago. Que perdem poder de compra, que deixam de consumir e, por consequência, aumentam o círculo vicioso da redução de vendas / queda de produção / despedimentos / encerramento de empresas / diminuição dos impostos e contribuições / aumento das importações / mais subsídio de desemprego. Tudo isto é igual a crise, a recessão, a descrença, a desespero, a raiva, a vontade de explodir e pôr esta canalha toda com dono.

E o que o Governo esconde, é que foi o governo socialista do engenheiro Guterres que decretou esta medida em 2001, fixando um período de transição, e que é outro governo socialista, este do engenheiro Sócrates, a tentar antecipar a sangria das reformas ainda mais baixas. O que o Governo também esconde, é que, de acordo com um estudo do economista Eugénio Rosa, elaborado a partir de dados oficiais, os lucros líquidos das 500 maiores empresas não financeiras em Portugal somaram, em 2004, 3.111 milhões de euros (623,7 milhões de contos), tendo aumentado neste mesmo ano 42,1% relativamente a 2003. Se considerarmos o período 2001-2004, o aumento dos lucros destas empresas atingiu 86,7%. Estes dados mostram que a crise económica não está a afectar as maiores empresas, revelando-se até como anos dourados, contrariamente ao que sucede com as pequenas e médias empresas.

Diz o economista que aquele crescimento dos lucros parece ter sido conseguido fundamentalmente pela redução da percentagem do VAB (valor da riqueza criada) destinada ao pagamento de impostos ao Estado e ao pagamento de remunerações aos trabalhadores, já que as vendas não registaram o correspondente crescimento.

Um povo que aguenta isto e – pior ainda – alimenta isto com sangue, suor lágrimas e votos, bem pode, como se disse há quinhentos anos, ser considerado uma enorme e possante besta.

É como dizem, perguntando, alguns ouvintes que nos telefonam: «Mas esta gente não abre os olhos?».

Pois não! E nós, os mais lúcidos, os mais esclarecidos? Porque não seremos capazes de lhos abrir?

Crónica de João Carlos Pereira - Lida aos microfones da Rádio Baía em 05/10/2005

03/10/2005

Não vou escrever nada.

Tenho feito um esforço enorme para não escrever nada sobre as eleições autárquicas que se realizam no próximo domingo e tenho a certeza que vou conseguir resistir.

Por isso não escrevo nada porque senão teria de dizer alguma coisa sobre Felgueiras, Amarante, Gondomar e Oeiras, para além de outros casos menos mediáticos mas que não deixam de nos fazer reflectir.

Não escrevo nada porque senão teria de dizer que acho piada a todos os manifestos eleitorais (de norte a sul) contemplarem o importante papel do turismo – sem nada disso perceberem - como se o turismo fosse agora a grande cartada que se tira da manga e bastasse meia dúzia de esplanadas e umas quantas marinas.

Não escrevo nada porque senão teria de falar sobre o compromisso de construir um novo hospital em Vila Franca e a falta de compromisso para a construção de uma unidade no Seixal que sirva mais de 200.000 habitantes.

Não escrevo nada porque senão teria de falar em candidatos à Câmara do Seixal que não sabem o número de eleitores do Concelho e querem urbanizações na Ponta dos Corvos.

Não escrevo nada porque senão teria de falar em gente que quer à viva força dividir o Concelho criando mais um Município e umas quantas Freguesias.

Não escrevo nada porque senão teria de falar em gente séria que não desvia computadores nem utiliza os carros e os telemóveis da Câmara para as suas actividades pessoais.

Não escrevo nada porque senão teria de dizer alguma coisa sobre mandatários que não têm ideias e ainda por cima escrevem mal, quando, pela profissão que têm, outra coisa se esperaria.

Não escrevo nada mas gostaria que todos pensassem como é importante votar no próximo domingo.

... Independentemente da opção de cada um !

1997, 2007 © Guia do Seixal

Visões do Seixal Blog Directório Informações Quem Somos Índice