15/03/2006

O actual feudalismo financeiro/democrático

Ou o esclavagismo de rosto humano

O sistema feudal, que caracterizou a sociedade durante a maior parte da Idade Média, sacralizava o poder dos proprietários da terra, estabelecendo uma relação de extrema dependência por parte daqueles que os serviam. Os senhores feudais detinham o principal «aparelho produtivo» da época – a propriedade rural – e as classes trabalhadoras de então estavam, em maior ou menor grau, dependentes dessa nova classe dominante. A forma mais dura de dependência era a dos servos (os trabalhadores por conta de outrem dos nossos dias), que estavam adstritos ao serviço do senhor e à própria terra. Eram obrigados a trabalhar na propriedade do seu amo, a cultivar as suas terras e a entregar-lhe parte substancial daquilo que eles e as respectivas famílias produzissem (não só produtos agrícolas como cereais, carne e criação, mas também artigos manufacturados, como tecidos e couros). Por outras palavras: o servo era obrigado não só a alimentar a família e os criados do seu senhor, mas também a vesti-los e a calçá-los.

Dado que tudo o que era necessário para a vida quotidiana era produzido em pequena escala – e que a base material de toda a cultura medieval era, sobretudo, o trabalho dos camponeses numa economia camponesa, em pequena propriedade arrendada – isso permitia uma relativa independência económica, dado que, trabalhando mais, os camponeses poderiam obter, para si próprios e para as suas famílias, um excedente sobre a produção mínima vital, para além do que era devido ao seu senhor. Nisto residiu o enorme progresso da ordem feudal em relação à sociedade que praticava a escravatura. De facto, os escravos trabalhavam a terra dos seus amos, a quem entregavam todos o fruto do seu trabalho, recebendo, em troca, apenas aquilo que era absolutamente necessário para a sua sobrevivência. O escravo odiava o seu trabalho, como facilmente se percebe, mas o servo medieval, porém, por mais dura que fosse a sua vida – e era – trabalhava na sua terra de forma praticamente independente e tinha interesse em aumentar a sua produtividade. Por isso, a sociedade feudal, embora construída sobre as ruínas do sistema esclavagista, foi, no entanto, em termos sociais, um passo positivo, embora curto e lento.

Aqui chegados – e à luz destes factos e ensinamentos históricos – saltemos sobre a chamada Revolução Industrial e toda a fase do Capitalismo Primitivo, para aterrarmos em Portugal, em pleno século XXI, e fazermos algumas – e interessantes – comparações.

Os senhores feudais de hoje chamam-se grandes empresários e os seus feudos deixaram de ter uma dimensão geográfica restrita: estendem-se por quase todo o país, chamam-se grandes empresas (ou grupos económicos) e subordinam milhares de servos, hoje designados por assalariados – ou trabalhadores por conta de outrem. A estes servos não se cobra renda, antes se paga (quando paga…) um salário, que corresponde a uma pequena parte da riqueza criada, mas não é dada (ao contrário do que acontecia no feudalismo) qualquer autonomia ou posse no feudo/empresa, do qual são frequentemente expulsos através de processos designados por despedimentos, ou caducidade do contrato de trabalho.

Apesar de não ser cobrada renda aos servos dos nossos dias, existem vários processos ainda mais eficazes para lhes serem extorquidos os excedentes que possam resultar da sua actividade. Um deles – e o mais eficaz – chama-se Fisco, ou política fiscal, outro chama-se contenção salarial, outro chama-se inflação (que é mais grave quando resulta do aumento dos bens de primeira necessidade), outro chama-se agravamento de taxas e tarifas, ou a invenção de taxas e tarifas novas, muitas vezes para pagar o que já devia estar pago pelos bens colectados pela política fiscal.

Neste aspecto, sucede um pouco o que sucedia na sociedade esclavagista, pois já existem, nos tempos que correm, milhões de pessoas em Portugal que, tal como os escravos de antigamente, só têm o indispensável para não caírem para o lado ao fim de cada dia. Não, meus amigos, nem estou a falar daqueles outros, dos que vivem em miséria absoluta, a chamada escória da sociedade, mas daqueles que, trabalhando todos os dias, apenas dispõem de recursos para o essencial, para iludir a fome, para se cobrirem com a roupa indispensável à decência, e para se abrigarem, à noite, sob um tecto precário.

Se estes não são os escravos do século XXI, o que é então esta gente que sobrevive sem esperança de um dia terem aquilo que a Declaração Universal dos Direitos Humanos diz serem seus direitos inalienáveis? Gente sem acesso a bens culturais, cujos filhos não sabem o sabor do leite ou da carne, e que são forçados a abandonar os estudos para tentarem contribuir para o rendimento familiar. Gente que se já não podiam recorrer a cuidados de saúde, agora menos pode, com as taxas moderadoras a custarem 400$00 nos Centros de Saúde e perto dos 1.600$00 mas urgências (não falo em euros, pois 2, ou mesmo 8 euros parecem pouco coisa, como é sabido, mas pesam nos bolsos daquelas famílias que têm os cêntimos contados. Gente que já dificilmente podia aviar uma receita médica, e que agora vê esse avio ainda mais dificultado, pois não cessam de sair da lista de medicamentos comparticipados cada vez mais medicamentos.

Na Idade Média, os senhores feudais com frequência se entregavam à guerra, tendo em vista conquistarem mais terras e bens. Nas batalhas, onde morria a arraia-miúda, arrebanhada para defender as barbas do seu senhor, salvava-se quase sempre o essencial, ou seja, o feudo e os seus recheios, embora mudassem de dono. Nas guerras de hoje, chamadas OPAS, os senhores feudais, agora ditos grandes empresários, fazem a coisa de forma menos violenta, mas as vítimas são sempre os mesmos, os que dependem do empresário vencido, pois arriscam-se a ficar sem emprego e sem futuro, ou sem parte do pouco que tinham. Depois da OPA, as coisas sempre se compõem para quem perdeu, pois nas mesas empresariais há sempre lugar para quem é da casta dominante.

Na Idade Média, o senhor feudal era, ao mesmo tempo, o poder económico, o poder político – logo, era também o poder legislativo – e o poder judiciário, isto é, fazia as leis e administrava a justiça. Nas sociedades capitalistas, mesmo naquelas que se dizem pais e mães da democracia, os senhores feudais de hoje – ditos grandes empresários, como já expliquei – preferem que as coisas pareçam separadas, para que possam exercer o seu poder mais tranquilamente. Por isso, sendo eles o poder económico, inventaram os políticos para lhes fazerem as leis convenientes, e o sistema judiciário para administrar a justiça, fazendo crer que era sua vontade que tal sistema fosse independente e sério. Isto é: desejando que parecesse que havia uma justiça igual para senhores e servos. Para ricos e pobres – ou para os mais ricos e para os menos ricos, se quisermos adoptar a linguagem cínica de José Sócrates.

Diga-se a verdade que, apesar de tudo, se os senhores empresários, os grandes empresários, são unha com carne com os senhores políticos – especialmente se os políticos são da marca PS e do modelo Sócrates – podendo dizer-se que são porcos do mesmo chiqueiro e da mesma gamela (é uma expressão metafórica, claro está), já o mesmo não se pode dizer do poder judicial, que, apesar de ter a sua marca de classe e nem sempre se honrar, faz, muitíssimas vezes, por ser realmente justo, algo que desagrada aos tais dois poderes em um: o económico e o político.

A prová-lo, meus queridos ouvintes, está o facto de o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (SMMP) ter aprovado há dias uma moção em que condena as «práticas de vários pesos e muitas medidas» da política criminal do Governo, nomeadamente por deixar que certos processos nunca cheguem a Tribunal. Dizem os magistrados que «há a vontade de retirar ou reduzir o papel do Ministério Público na área penal e no controlo da legalidade da investigação», e criticam os poderes político e económico por «quotidianamente» porem em causa a ideia de que a lei deve ser igual para todos. Disseram os magistrados, lá na sua, e com todas as letras, que o governo socialista quer evitar que a sua gente – e os tais senhores feudais que a sustenta – possam sujeitar-se às leis como a escumalha comum.

Uma coisa parecida com o que Bush e a administração norte-americana faz com a Tribunal Penal Internacional de Haia, que pode prender, julgar e, pelos vistos, matar toda a gente, menos os norte-americanos, façam eles o que fizerem.

Por tudo isto se pode dizer, sem esforço ou exagero, que as diferenças entre escravos e amos (na sociedade esclavagista), entre servos e senhores (na sociedade feudal), ou entre capitalistas e assalariados (nesta bendita sociedade capitalista), salvaguardadas as distâncias entre épocas e a evolução verificada aos diversos níveis, se não são iguais, são semelhantes. Resumindo: uns, os primeiros, têm tudo, até a capacidade de decidirem da vida e da morte dos outros. Aos outros, aos escravos, aos servos, ou aos trabalhadores, meus amigos, ontem como hoje – de há 1.500 anos a esta parte – nada resta a não ser trabalharem e sujeitarem-se à única coisa por que trabalha a sério o poder político. O bem-estar, a opulência da classe dominante, que muda de nome e de métodos, mas que nunca muda de apetites nem de privilégios.

Democracia, dizem eles. Feudalismo financeiro/democrático, ou um autêntico esclavagismo de rosto humano, digo eu, e penso que tenho razões para tal.

«Ah!», exclama aquele senhor que nunca telefona, porque não gostando do que aqui se diz, também não tem argumentos para contradizer. «Ah!. Agora, apanhei-te, meu espertalhão. Então é o voto? O povo é que decide, pelo voto, como quer viver, como quer ser governado: bem ou mal, somos nós que escolhemos».

Bem, se foi você que escolheu pagar mais pelos medicamentos e pelas taxas moderadoras; se foi você que escolheu ver o seu ordenado cada vez mais pequeno num mês cada vez maior; se foi você que escolheu o desemprego galopante, os contratos a prazo, e o Código do Trabalho; se foi você que escolheu uma política que faz os ricos cada vez mais ricos, ao fazer os pobres cada vez mais pobres – e todos os dias acrescentar mais pobres à lista –; se foi você que escolheu pagar impostos sobre tudo o que ganha, enquanto os muito ricos só pagam sobre uma parte da sua riqueza; se foi você que escolheu ver-lhe negados ou reduzidos direitos que até a ditadura lhe garantia, enquanto os ricos acumulam empregos com ordenados e reformas escandalosamente altos e, por isso, imorais: se foi você que escolheu vender o país ao estrangeiro e destruir as nossas pescas, a nossa agricultura, a nossa indústria, enfim se você escolheu isto tudo e ainda não é um deles, um dos ricos, então, meu caro amigo, só lhe posso dizer que se a estupidez pagasse imposto, você – sozinho – resolvia o problema do défice público.

Mas não se acanhe. Telefone na mesma. Afinal, na Idade Média também havia gente assim, sempre pronta a lamber as botas dos senhores do castelo. Já na altura lhes chamavam lacaios. Você não é uma novidade.

(Crónica de João Carlos Pereira - Lida aos microfones da Rádio Baía em 15/03/2006)

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