08/03/2006

Enojado até ao vómito

As nossas conversas das quartas-feiras têm um efeito benéfico na minha estabilidade emocional. Vendo a televisão ou lendo jornais, por imperiosa necessidade de ir tentando perceber o que acontece (e nunca – ou raramente – por prazer), vou acumulando um desgaste nervoso resultante de não poder, no preciso momento em que as mentiras e outras alavancas manipulatórias se abatem sobre mim – e, naturalmente, sobre milhões de portugueses – desmascarar tanto os embusteiros como o embuste, e descodificar a perfídia de tão insinuantes e doutorais conversas. Vou, por isso, contendo e acumulando a minha indignação, à qual nem os desabafos domésticos, mais ou menos violentos, servem de lenitivo. Chego aqui, às quartas-feiras, e faço a minha psicoterapia, desabafo e deixo que os ouvintes desabafem, sempre na esperança que a semente dê flor e fruto e, um dia, quando houver outro 25 de Abril, se possa dizer que também nós, aqui na Rádio Baía, demos um pequeno contributo para ele.

Há muito – desde antes do 25 de Abril – que aprendi a decifrar a linguagem dos políticos e dos seus papagaios na comunicação social, uns e outros, como sabemos, bem pagos pelo poder económico, em cuja folha de férias se digladiam por figurar. Lembro-me dos discursos de dedo em riste de Salazar e das Conversas em Família, de Marcelo Caetano. Talvez por não precisarem disso, pouco mentiam, dado que, para impor ao povo a sua vontade dispunham de outros meios mais directos, tais como a polícia política, a Censura, as restantes forças da ordem, ou a possibilidade legal, assumida, de despedir um cidadão pelas suas opções ideológicas ou, simplesmente, por reclamar por Pão e Liberdade. E não mentiam tanto, também, porque assumiam naturalmente e sem vergonha os seus princípios ideológicos, sinceramente convencidos de que eles eram o único caminho para se viver em sociedade. Dizendo isto, estou a dizer que estes, os salazares e marcelos de hoje, porque em democracia se diz que vivemos, cuidam de evitar o que nela, democracia, mal parece. Por isso, em vez do discurso e da prática autoritários (o que, no caso de Sócrates, nem é bem verdade, já que de autoritário e arrogante não lhe falta nada) – e no lugar das pides, tarrafais, aljubes, peniches ou caxias, que se encarregavam de convencer os renitentes – valem-se do discurso manipulador, da promessa alantejoulada, da partidarite facciosa, que arregimenta e ilude, e de uma cortina de artifícios maquiavélicos, com os quais vão levando no engano, como diestros encartados, essa «enorme e possante besta» que nós somos, e de que já aqui falei certa vez, citando Erasmo de Roterdão, o autor da metáfora. Mas vamos a factos.

Esta semana que passou, queridos ouvintes, foi demais! As taxas moderadoras vão sofrer um aumento brutal, mais de dez vezes a taxa da inflação. Não, não é para subsidiar o Serviço Nacional de Saúde, dizem eles, é só para moderar o acesso àqueles serviços, pois há, segundo parece, pessoas que se divertem passando umas horas nas urgências dos hospitais ou nas filas doentias dos centros de saúde. Este cinismo atroz, este atestado de atrasados mentais que o governo de Sócrates nos está a passar, este desprezo pela nossa dignidade dói mais, posso garanti-lo, que as cacetadas da polícia de choque salazarista ou as torturas infligidas nas salas sombrias da PIDE.

Só um governante sem escrúpulos – e os socialistas são indivíduos mais descarados e sem escrúpulos do que os outros políticos todos juntos – é que pode, sem rir, dizer alarvidades desta natureza para explicar a sangria. É preciso, além disso, nunca ter passado pelas urgências dos hospitais ou pelas portas dos centros de saúde às tantas da madrugada, para poder sequer admitir que alguém, no seu perfeito juízo, para ali vá por gosto ou só para passar o tempo. O que está em marcha é um assalto selvagem aos portugueses de menos recursos, que são esses, coitados, que recorrem às urgências hospitalares e aos centros de saúde, e não a ministralhada, os belmiros ou os senhores administradores disto e daquilo. «Combater as falsas urgências», argumentam eles, esses energúmenos que o povo, descuidadamente, levou ao poder, sugerindo, implicitamente, que alguém, ao sentir-se mal, saiba avaliar se está à beira de um enfarte ou de um AVC, ou se não passa tudo de uma indisposição passageira, um susto e nada mais.

Medida assassina, chamo-lhe eu, enojado por ser governado por estes algozes, capazes de atentar mais contra a saúde e a vida dos portugueses do que algum ditador alguma vez se atreveu a fazer.

Enquanto se preparavam estas medidas, o algoz-mor, José Sócrates, foi até à Finlândia na busca de argumentos para dar ânimo ao seu agonizante Plano Tecnológico, um fracasso há muito anunciado. Um facto político criado à pressão, que, para além de consumir mais uns milhares de euros aos cofres do Estado, lhe serviu também para arrazoar contra os professores portugueses, em particular, e os trabalhadores, em geral.

Ao ver os meninos finlandeses nas suas salas de aula impecáveis, todos eles com computador na carteira, a eminência parda soltou a voz para insinuar que, se as coisas cá não são bem assim, é porque os professores não querem trabalhar mais. (E, já agora, de borla, acrescento eu). Mas a preclara figura foi mais longe. Disse, sem que a voz delicodoce alterasse o registo maviosamente ondulado, que a Finlândia dedica especiais cuidados à área social, sendo um exemplo nesse aspecto, insinuando assim, matreiramente, que, para lá chegarmos, só precisamos de nos sujeitarmos à política do PS sem tugir nem mugir. A ida à Finlândia ficava deste modo explicada por Sócrates: «É isto que eu quero para Portugal, e para isso estou a governar. Sujeitem-se, então, à minha governação, obedeçam-me… e em breve viveremos como os finlandeses».

Ora, acontece que os professores finlandeses não são tratados, nem pagos, pelo seu governo como os professores portugueses são tratados, e pagos, pelos governos que por cá temos – e tivemos – nem ficam aos milhares no desemprego ou são atirados anos a fio para os Cus de Judas lá do sítio, como se passa por cá. Ora, acontece que as crianças finlandesas não vão para a escola com frio e fome, apesar do clima rigoroso da Finlândia, nem têm pais com salários em atraso, ou com ordenados miseráveis, ou no desemprego não remunerado. Ora, acontece que as escolas finlandesas são escolas dignas desse nome, e não barracões degradados, como sucede em milhares de escolas em Portugal. Ora, acontece que os finlandeses não construíram Expôs’98 ou dez estádios de futebol, em vez de escolas e centros de saúde ou hospitais. Ora, acontece que os políticos finlandeses não têm a fama de corruptos, incompetentes e oportunistas como acontece por cá, nem consta que se amanhem com belos ordenados e acumulem reformas e vários tachos, como sucede nesta república das bananas chamada Portugal. Ora, acontece, para abreviar, que a grande distância entre a Finlândia e Portugal resulta, acima de tudo, da diferença que há entre honestidade e sentido de Estado – lá – e desonestidade, incompetência e pura ladroagem – cá. É a distância que vai da decência à pouca-vergonha absoluta.

Na Finlândia, as obras públicas não derrapam, porque não é normal escorrerem dinheiros por fora para todo o bicho careta que se mete no esquema, sem esquecer os partidos políticos e os seus homens de mão, os Senhores 5% que acossam os empreiteiros sempre que o governo lhes adjudica uma obra. Na Finlândia é impensável uma Fundação Vara, ou um Vara com tachos atrás uns dos outros (CGD e, agora, também a PT), um político como Jorge Coelho, ou uma autarca como Fátima Felgueiras. Na Finlândia não existe um fosso abismal entre os mais ricos e menos ricos, porque não existem, como cá, 2 milhões de pessoas pobres, sendo mais de duzentas mil delas a viver em miséria extrema. E se lá se pode falar em mais ricos e menos ricos, cá só podemos falar em indecentemente ricos, ricalhaços e, depois, em mais pobres e menos pobres.

Entretanto, o INE confirmou aquilo que os nossos bolsos e estômagos já sabiam: os bens alimentares estão a subir todos os dias. A desculpa, desta vez, é a seca. Só o azeite subiu 45%! Mas o aumento dos combustíveis, para pagar a guerra no Iraque, também é apontado, envergonhadamente, como outra das razões. Notícias de Espanha, onde a seca foi igualmente severa, dizem-me que, por lá, não há novidades destas. Explicações para isto? É fácil: enquanto os espanhóis têm uma consciência cívica altamente desenvolvida e exercem a sua cidadania sem quaisquer hesitações, pondo, por isso, os seus interesses acima das fidelidades partidárias, os portugueses não cultivam nenhuma dessas virtudes. Deixámos de pensar e de agir. Rendemo-nos. Abdicámos de ser um povo dono do seu destino. E quando assim é, os crápulas não perdem a oportunidade, como agora se prova.

É por tudo isto que eu, quando me forço a ver o a ouvir o primeiro-ministro tocando a flauta das nossas futuras bem-aventuranças, sinto algo que nunca, em tempo algum, um político me provocou: uma repulsa instintiva, uma náusea enorme.

É irracional, eu sei, tanto mais que, afinal, a culpa é mais nossa do que dele. Mas não há nada a fazer: Sócrates enoja-me até ao vómito.

(Crónica de João Carlos Pereira - Lida aos microfones da Rádio Baía em 08/03/2006)

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