29/03/2006

Notícias do desencanto

Durante seis longos anos dirigi um jornal regional, o Outra Banda, quinzenário que tentava, esforçadamente, cobrir a realidade social, económica e política da Península de Setúbal. Pensava, no entanto – e continuo a pensar – que tudo o que acontecia em Portugal e no mundo, resultante das grandes orientações da política nacional e internacional, se reflectia, directa ou indirectamente, nesta laboriosa região que o Tejo e o Sado limitam geograficamente, mas não isolam do resto do país e do planeta. Assim, questões de âmbito mundial, como a guerra, ou de dimensão nacional, como as políticas de emprego, educação ou saúde, sempre tiveram espaço e destaque nas páginas do Outra Banda de então. Nunca pretendi, por outro lado, que o jornal fosse um jornal independente, (ou falsamente independente, como são todos os outros) mas, sim, um jornal que tomasse partido ao lado daqueles que mais precisam de voz e de apoio na luta quotidiana pela sobrevivência, ou seja, a grande maioria dos quase 800 mil seres humanos que habitam ou labutam nesta península.

Por isso, não me limitava, por exemplo, a noticiar o encerramento de uma empresa e o despedimento de 400 trabalhadores, sem enquadrar isso na respectiva moldura política, isto é, como reflexo das orientações políticas e económicas que encaram os trabalhadores – pessoas de carne e osso, sabiam? – como peças sacrificáveis no processo económico.

Penso que quem me lia – e lia, então, o Outra Banda – tal como aqueles que hoje têm a paciência de me escutar na Rádio Baía, perceberam logo que defendo ideais e valores de justiça social, que escolhi o meu campo há muito tempo, e que mantenho esta atitude de forma livre e independente, não criticando ou aplaudindo de acordo com conveniências de grupos ou aparelhos de qualquer natureza. Ora se isto agrada ao cidadão comum, certamente não agrada àqueles que, detendo uma parcela de poder, dele abusam – ou com ele não fazem aquilo que deviam fazer – traindo ou defraudando quem o poder lhes confiou, seja a força política pela qual concorreram, sejam os eleitores que neles votaram.

Como devem calcular, esta atitude não me tornou a vida fácil, pois havia quem pensasse que eu não só deveria dizer aquilo que lhes conviesse, como – e principalmente – deveria ignorar os podres que ia vendo à sua volta. Pressões, ameaças, chantagens e boicotes, de tudo me posso gabar de ter sofrido (não, não me enganei, quis mesmo dizer gabar), e depressa percebi que certos valores democráticos, como liberdade de imprensa e de opinião (de crítica ou auto-crítica nem é bom falar…) são, para certos democratas, como as pastilhas elásticas: servem para lhes andar na boca, mas nada de as engolir. Havia quem pensasse que o anúnciozito colocado no jornal (e pago sempre tarde e a más horas) lhe dava o direito de definir a linha editorial do jornal e decidir o que podia ou não ser publicado. Pensavam, com isso, comprar o silêncio cúmplice naquilo que pretendessem esconder, e as trombetas triunfais que glorificassem o pouco ou nada que faziam. E é por estas – e por outras – que certas pessoas ditas de esquerda se equivalem às ditas de direita e, em muitos casos, até as ultrapassam em défice democrático. E noutras práticas…

Por exemplo: soube, há dias, que a Câmara Municipal do Seixal resolveu comprar seis Toyotas Prius para serem colocados ao serviço do presidente da Câmara e de mais cinco vereadores. Para além disso, o senhor presidente também viu o seu Mercedes ceder lugar a um novo BMW de gama alta. Nada de mais, dirá o ouvinte, o que são para aí quarenta e tal mil contos num orçamento municipal? Pois é. Mas a verdade é que eu tenho alinhado aqui – e muito bem – na censura pública que tem sido feita, por exemplo, ao senhor governador do Banco de Portugal, por ter gasto um balúrdio na remodelação da frota automóvel da administração e dos quadros daquela instituição, enquanto manda apertar o cinto aos portugueses. E, seguramente, pesam menos os novos automóveis no orçamento do Banco de Portugal, do que os seis Toyotas e o BMW presidencial pesam no orçamento do Câmara do Seixal. E se não pesam assim tanto, é questão para perguntar, então, porque está em curso uma severa política de contenção a todos os níveis e o investimento é nulo – ou quase – não havendo notícia de uma única obra municipal digna desse nome lançada nos últimos anos? (Não quero falar do famoso Parque Oficinal, porque isso são outras contas e outros trocos).

Porque estão, por exemplo, o Parque Lopes Graça e o seu monumento ao compositor, literalmente desprezados, precisamente no ano do centenário desse grande vulto da nossa cultura e da resistência anti-fascista? Porque se degrada o espaço público, mesmo nos aspectos mais simples, com caldeiras viúvas de árvores há anos, e com o mobiliário urbano sem a necessária manutenção? Porque morreram o Cantigas do Maio e outras iniciativas emblemáticas, o Seixal Jazz está reduzido a uma tristonha amostra do que foi (só para que não se diga que também morreu), a Seixalíada é um pálido arrastar daquelas seixalíadas que ensinaram ao país o que queria dizer Desporto para Todos? Como está o famoso Moinho de Maré, ex-libris do concelho, desactivado há anos, sofrendo as obras de Santa Engrácia? Como estão os edifícios e os espaços envolventes de alguns dos mais recentes equipamentos culturais e desportivos, como o Fórum Cultural do Seixal e as Piscinas de Amora, onde os sinais do tempo e da incúria me fazem olhar para o lado de vergonha?

Não há dinheiro, dizem-nos. Tudo bem, não há dinheiro. Mas se não há dinheiro, então que não se gaste o dinheiro que não há em belíssimos carros para o senhor presidente e para os senhores vereadores, que devem ser, antes e acima de todos, os primeiros a dar o exemplo de contenção e austeridade. Consciente do que significa a aquisição destas viaturas neste contexto, diz a administração da Câmara, cinicamente, que se trata de uma aposta na preservação ambiental, pois os Toyotas Prius são carros ecológicos. Pior a emenda que o soneto. Francamente, mais valera não terem dito nada. Só faltou dizer que trocar de carro foi um gesto altruísta e um sacrifício enorme para os contemplados que, coitados, até se sujeitam às críticas e ao escárnio de trabalhadores e da população, em nome da política ambiental. Assim como quem diz: «A malta até nem queria os carros, mas como estes poluem menos do que outros, olha… lá teve de ser…». A isto, meus amigos, chama-se deitar poeira para os olhos do Zé Pagode, o que acaba por me doer ainda mais do que a acção em si própria.

Mas é disto que trata a nossa conversa de hoje, ou isto é só um pretexto para outras conversas? Para ser sincero, é as duas coisas ao mesmo tempo. Quer se trate dos Toyotas e do BMW, ou, por exemplo, do saco sem fundo que é a Fundação Mário Soares, à qual o ministério dos Negócios Estrangeiros atribuiu, em finais de 2005, mais uma ajudinha de 16 mil euros (deve ser para ordenados ou ajudas de custo…), mas só agora o despacho de Freitas do Amaral foi publicado em Diário da República. Aliás, ainda no Verão passado o ministério da Defesa também havia atribuído uma verba da ordem dos 20 mil euros à instituição liderada pelo ex-chefe de Estado.

É comovente esta solidariedade partidária, embora eu desconfie que, para além das afinidades partidárias, andem por ali outros – e grossos – interesses em jogo, pois desde 2002 que a fundação já arrecadou qualquer coisa como 885 mil euros. Mas – e é bom não o esquecer – o prédio onde está instalada foi-lhe entregue pelo filho do patrono, João Soares, quando era presidente da Câmara Municipal de Lisboa e, logo a seguir à instalação, o governo de então, só de uma pazada, lá enfiou meio milhão de contos.

Entretanto, neste quadro de regabofe, onde uns regam os bofes e outros os deitam pela boca, como é próprio de uma sociedade democrática e, sobretudo, moderna, o governo volta a atacar os desempregados, reduzindo os subsídios e o seu tempo de duração. Compreende-se: o dinheiro não pode chegar para tudo.

Mas as «boas» notícias não se ficaram por aqui. O Dia Mundial da Tuberculose foi assinalado com uma «excelente» novidade: em 2005, a tuberculose atingiu 31 em cada cem mil portugueses, mantendo Portugal com uma taxa de novos casos superior ao dobro da média na União Europeia. Claro que nada disto tem a ver com os baixos salários, ou com o desemprego, com as condições terceiro-mundistas em que vivem milhares de famílias, ou com outras maravilhas decorrentes dos excelentes governos que temos e tivemos, como sejam as dificuldades cada vez maiores que as pessoas encontram para ter acesso a cuidados médicos e de saúde. Deve ser apenas do clima. É isso, com certeza… Do mau uso que se dá aos dinheiros públicos, seja para comprar automóveis de luxo, seja para encher o baú dos amigos, seja para aliviar o capital financeiro e económico da carga fiscal, é que não é…

Já que estamos em maré de boas novas, terminemos com mais uma, que prova como somos um povo sereno, cordeirinho, manso, cordato, paciente e «lúcido». Ei-la: Os portugueses pagam, em média, mais 33% de energia eléctrica por dia que os espanhóis, pois uma factura média de electricidade de um cliente doméstico espanhol ronda os 360 euros anuais, cerca de 1 euro por dia, enquanto que, em Portugal, a factura média anual de um cliente doméstico português ronda os 480 euros, ou seja, uma factura mensal de 40 euros, e cerca de 1,33 euros por dia, um valor 33% superior ao pago pelos espanhóis.

Quer isto dizer que gastamos mais energia? Não. Quer dizer que a pagamos tão cara que, mesmo consumindo menos, a factura é 33% mais pesada do que a dos nossos vizinhos espanhóis.

Mas haja dinheiro para simpósios, colóquios, encontros, seminários (com pausas para café e refeições por conta da organização), que tudo o resto se há-de resolver a seu tempo. Aliás, é mesmo para isso – para se resolverem os nossos problemas – que eles organizam simpósios, colóquios, seminários e encontros. Com almoços e jantares grátis, pois então!

O que eles se esforçam por nós! Pensando bem, até merecem uns carritos novos…


(Crónica de João Carlos Pereira - Lida aos microfones da Rádio Baía em 29/03/2006)

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