29/11/2006

QUANDO A FOME É DEMOCRÁTICA

Numa altura em que o país discute, entusiasmado, o «Caso Veiga», e a comunicação social não se cansa, em todos os serviços noticiosos, de a ele se referir, caiu logo num conveniente esquecimento o caso do Hospital Amadora / Sintra. E, contudo, o que ali se passou é, em termos económicos, fiscais, legais e políticos imensamente mais grave. É, na minha opinião, a falência do Estado Democrático e do poder judicial, para além de ser a prova absoluta da impunidade com que, nas altas esferas, se pode delapidar o Estado em favor do poder económico.

Na verdade, caros ouvintes, morreu o processo contra os antigos dirigentes da Administração Regional de Saúde de Lisboa, encarregues de fiscalizar as contas do Hospital Amadora / Sintra, consumando-se assim, a arrecadação, pelo Grupo Mello, de 75 milhões de euros (15 milhões de contos) por actos não praticados, já que o MP arquivou a investigação às contas daquele hospital, onde estavam em causa despesas não efectuadas que lesaram o Estado nos tais 15 milhões de contos. O relatório da Inspecção-Geral das Finanças, de 2002, chegou à conclusão que o Estado tinha pago à sociedade gestora do Hospital Amadora Sintra aquele valor por actos que nunca tinham sido praticados, acrescentando que o hospital não tinha cumprido com as obrigações para com a Segurança Social, nomeadamente a Caixa Geral de Aposentações.

Portanto, em 2002, o Inspector-geral das Finanças não teve dúvidas em acusar 26 antigos dirigentes da Administração Regional de Saúde de Lisboa, que tinham a responsabilidade de fiscalizar as contas do hospital, mas agora o Ministério Público decide arquivar o processo-crime contra os antigos altos funcionários do Ministério da Saúde, dizendo que a sua conduta não acautelou os interesses do Estado, mas acrescentando que nenhum deles teve intenção de o fazer. Pelo meio, o despacho de arquivamento não deixa, no entanto, de fazer críticas à forma como o Estado fiscalizou o contrato feito com o grupo que gere o hospital. Diz que «a par de práticas burocráticas incorrectas, faltaram os meios e os conhecimentos técnicos aos que tinham que avaliar a gestão do hospital».

Isto é: o Grupo Mello meteu ao bolso 15 milhões de contos limpinhos, resultantes de actos clínicos que nunca foram praticados, o Estado perdeu esse dinheiro, mas tudo ficou em águas de bacalhau. Não houve crime, não houve responsáveis, não houve reposição de verbas – e siga tudo na paz do Senhor. Não sei porquê, lembrei-me do filme “A Golpada”.

De resto, como estamos em democracia, se golpe tivesse havido, tratar-se-ia, é bom de ver, de golpe democrático.

Na última crónica, chamei vampiro a Sócrates – e esqueci-me de pedir desculpa aos vampiros. Tanto bastou para um ouvinte me chamar malcriado, mas a isso já lá vamos. Agora chamo-lhe, a Sócrates, mentiroso empedernido, pois continua a dizer que o desemprego está a baixar em Portugal. Não sei como é que o homem se arranja para mentir assim, mas está bem. O que eu digo é que o desemprego está a subir, mas será, também ela, uma subida democrática, porque vivemos em democracia. E em democracia, como sabemos, o desemprego é sempre bom…

E já que Sócrates não conta a verdade aos portugueses, deixem que seja eu a contá-la. É que, contrariamente àquilo que o Governo tem afirmado, o desemprego não está a diminuir. É certo que os dados oficiais sobre o desemprego revelam uma redução, embora pequena (menos 13 mil desempregados entre o 3.º trimestre de 2005 e o 3.º trimestre de 2006), mas estes dados não dão uma ideia completa da dimensão do desemprego no nosso País, já que não incluem, pelo menos, dois grupos de desempregados de facto – "Inactivos Disponíveis" e "Sub emprego Visível" – que têm um peso cada vez maior neste quadro. Se calcularmos aquilo a que chamamos o desemprego corrigido, com base em dados também publicados pelo INE, e que está muito mais próximo do desemprego real, concluímos que o desemprego continua a aumentar em Portugal. O desemprego corrigido passou de 549 mil no 1.º trimestre de 2005 (fim do governo de Santana de Lopes), para 567 mil no 3.º trimestre de 2005, e para 572 mil no 3.º trimestre de 2006. Assim, entre o 1.º trimestre de 2005 (fim dos governos PSD/CDS) e o 3.º trimestre de 2006 (pleno governo de Sócrates), o desemprego corrigido aumentou em 23 mil indivíduos, tendo crescido no último trimestre em mais 5 mil desempregados.

Se analisarmos a variação da taxa de desemprego oficial e da taxa de desemprego corrigido, observamos igual evolução. Assim, a taxa de desemprego oficial diminuiu de 7,7% para 7,4% entre o 3.º trimestre de 2005 e o 3.º trimestre de 2006, mas a taxa de desemprego corrigido manteve-se constante no mesmo período – 10,2% – apesar da população activa, que é base de cálculo da taxa de desemprego, ter aumentado em 45 mil.

O que Sócrates também esconde dos portugueses é o que os dados referentes ao desemprego oficial e ao desemprego corrigido revelam um fenómeno preocupante em Portugal, que é o seguinte: um número crescente de portugueses está a deixar de procurar emprego (90 mil no 3.º trimestre de 2006), entrando muitos deles na categoria de "desencorajados" (os que pensam que já não vale a pena procurar emprego, porque o não conseguem arranjar), caminhando desta forma rapidamente para a exclusão social total.

Pelo facto de não procurarem emprego nas 3 semanas anteriores ao inquérito do INE, não são considerados no cálculo do desemprego oficial. O mesmo sucede com o "sub emprego visível", que são os portugueses que querem trabalhar, que fazem biscates para sobreviver, mas que não conseguem arranjar um emprego, e que também não são considerados no cálculo do desemprego oficial (e estes eram «só» 65 mil no 3.º trimestre de 2006).

Mas o título da crónica de hoje não me foi sugerido só por isto. Foi-o, essencialmente, pelas palavras de um ouvinte que telefonou há oito dias, dizendo ele, entre outras coisas, que a nossa democracia está bem e recomenda-se. Aliás, segundo a criatura – que lê o jornal “The Economist”, jornal que, como quase todos sabemos, é uma espécie de bíblia produzida e impressa pelo grande capital financeiro, onde confessou ter bebido a informação – estaria (a nossa democracia) cada vez melhor.

Afirma-se esse ouvinte um homem de direita, com bom emprego e largos proventos. E embora diga que as classes sociais não existem, é, ele próprio, a prova provada da sua existência. Defende as deslocalizações e os baixos salários, numa óptica de defesa dos interesses das empresas e do patronato em geral, mesmo que isso signifique desemprego, fome e desespero para milhares de famílias; diz, com toda a calma e em voz maviosa e cuidada – a voz que tem o charme discreto da burguesia (ou dos homens que constam na sua folha de salários, conhecidos, no vulgo, por lacaios) – que os ordenados dos trabalhadores por conta de outrem devem ser congelados ou, como defendeu um dos patrões do «Bando do Beato», reduzidos ainda mais; acha naturalíssimo e muito saudável para a economia, que o governo, através dos cortes orçamentais, restrinja o direito à saúde e à educação à generalidade da população (que, por acaso, nem foge aos impostos e que, pelo simples facto de os pagar, lhe deveria dar direito à saúde e à educação em termos gratuitos); acha, o referido senhor, que o desemprego, o trabalho precário, a perda de direitos – sejam esses direitos quais forem – são coisas absolutamente naturais e às quais nos devemos sujeitar sem contestação; considera, em resumo, que o povo existe para trabalhar e produzir a riqueza que as classes altas, depois, gerem a seu bel-prazer, pagando o que quiserem, quando quiserem – e se quiserem.

Trocado isto por miúdos, o nosso ouvinte de direita defende algo semelhante à sociedade feudal, razão por que se tornou um fã do engenheiro Sócrates e do governo socialista, do qual só discorda por não ir mais longe, fustigando ainda mais os trabalhadores e os reformados.

Ah! É verdade! Deve privatizar-se tudo o que resta, transformar tudo num enorme negócio, do ar à água, dos correios à saúde, da educação aos transportes. Ou seja: isto deixaria de ser um país, e passaria a ser uma enorme empresa, dividida por meia dúzia de capitalistas, e nós, em vez de cidadãos, passaríamos a trabalhadores (certamente a prazo) ao serviço desses distintos empresários que, tal como os senhores feudais – ou pior do que eles – teriam sobre nós o poder absoluto de manobrar a nossa vida desde o berço até à morte. Seria o Portugal, SA, como aqui já disse certa vez. Ou o Portugal roça, comparação que também já fiz.

Mas, segundo o cavalheiro – porque só um cavalheiro fala assim, com tanta clareza e com tão distintos requebros – isto é uma das melhores democracias que há, porque, por exemplo, eu ainda posso falar, aqui na rádio e, principalmente, porque o poder económico já arrebanhou quase tudo o que havia para arrebanhar. Mas exaltou-se sua excelência – e de forma delicada, mas severa, me repreendeu – quando eu caracterizei Sócrates como «vampiro», já que outra coisa não faz que sugar o sangue de milhões de portugueses. Sua excelência não gosta de palavras agressivas, de algazarras, de indignações, de protestos. Detesta a contestação ao que está. Treme, só de pensar que a paz podre que lhe convém, possa ser posta em causa, ou que o “status” onde se abriga possa, por força do esclarecimento e da luta, desfazer-se e se conclua que há, por aí, parasitas a mais.

É claro que não me vou calar nem – muito menos – censurar os meus textos para não ferir os ouvidos de sua excelência. Sem poder comparar-me a nenhum deles, sempre recordo ao tal ouvinte que também os poemas e os textos ou as músicas de José Afonso, Lopes Graça, Ary dos Santos, António Gedeão, Manuel da Fonseca, Alexandre O’Neil ou José Gomes Ferreira, irritavam e descompunham os severos senhores do outro regime. Contudo, “Os Vampiros”, do Zeca, aplicam-se, na íntegra, aos dias de hoje. Mas o ouvinte não gostou que eu chamasse vampiro a Sócrates, apesar de Sócrates e o seu governo socialista vampirizarem o povo deste país (e tudo isto sem ofensa para ninguém – já que de metáfora se trata – e muito menos para os vampiros, bem entendido, pois são animais respeitáveis, que apenas seguem as leis da natureza e não bebem o sangue dos da sua espécie).

E ele, que defende uma sociedade estratificada em duas classes (a dos senhores oligarcas e a da ralé, dos «reles» trabalhadores, seus serventuários) semelhante em tudo à sociedade feudal – ou, para sermos mais benévolos, à sociedade capitalista dos primórdios da revolução industrial – considera-se moderno e “a la page”, e eu, que defendo uma sociedade solidária, humana e fraterna, baseada no respeito pelo ser humano e onde ninguém explore ninguém, estou, na sua doutoral opinião, fora de moda e ultrapassado.

A sociedade que ele defende – velha de séculos – violenta, opressiva, injusta, desigual e, por isso mesmo desumana, que tem conduzido a humanidade a morticínios incontáveis, pois baseia-se no saque, na lei do mais forte e na rapinagem sem barreiras, é, segundo diz, o nosso futuro. O inverso disto, a sociedade socialista, cujos fundamentos são, em termos históricos, nossos contemporâneos, seria, para o ilustre cavalheiro, coisa do passado.

Para ele, vivemos em democracia porque podemos falar, embora as palavras fortes, as metáforas que ilustram a ideia, como «vampiro», ou outras, e que definam as canalhices que o povo sofre, sejam palavras impróprias num contexto democrático. A isso eu respondo que não vivemos em democracia, porque impróprio e antidemocrático é a fome, o desemprego, a miséria, o desespero de quem precisa de uma consulta ou de um medicamento e, antes de ir ao médico ou à farmácia, deita contas à vida e vê que não pode ser.

Impróprio, antidemocrático, desumano, indigno e infame, é haver centenas de milhares de crianças com fome, para quem o leite ou a carne são um luxo ou uma miragem, ou portugueses que vivem em condições infra-humanas, produto de uma sociedade imoral, onde os lucros de uns poucos se sobrepõem aos interesses colectivos. Aos interesses do povo e do País.

O tal ouvinte – e todos os que como ele pensam, sem terem, contudo, a soberba lata de assumir o seu reaccionarismo cavernícola – pode continuar a manifestar o seu ódio a todos os que trabalham, pode insistir em demonstrar que é um inimigo declarado das classes trabalhadoras, as quais, bem vistas as coisas, o sustentam. Pode fazê-lo, porque não somos, nesta rádio, como os actuais mandantes de uma outra rádio onde costumava masturbar-se com as suas próprias baboseiras (desculpem-me a linguagem, mas é a que me parece mais adequada ao caso), rádio essa onde já não deixam os seus ouvintes dizer de sua justiça, pois eles eram, maioritariamente, contrários ao actual poder político. Aqui, pode sempre falar, até porque, quanto mais o faz, mais compreendemos todos quem são e o que pensam os nossos inimigos. É que – e desculpe-me dizê-lo – sobra-lhe em descaramento o que lhe falta em subtileza. E, principalmente, em valores humanos, éticos, e democráticos.

Por isso, por muito que se repita o que diz “The Economist”, nunca será democrática uma sociedade onde alastrem a fome, o desemprego, a injustiça, as desigualdades sociais e todas as outras chagas típicas do capitalismo selvagem que hoje nos governa.

Porém, para os vampiros – e só para esses – a fome (a fome dos outros, entenda-se) é a coisa mais democrática que pode haver.

Pudera! É com o sangue alheio que os vampiros engordam.


Crónica de: João Carlos Pereira
Lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 29/11/2006.
(Não deixe de ouvir e participar todas as quartas-feiras entre as 09H00 e as 10H00, em 98.7 Mhz)

22/11/2006

CRÓNICA DE UMA FOME ANUNCIADA

O ano de 2007 vai ser, para milhões de portugueses, pior do que o de 2006. É isso – e não outra coisa qualquer – que o OGE para o ano que vem provocará. Nesta crónica, eu vou tentar explicar algumas coisas que parece não terem sido ainda percebidas por muitos portugueses. E provarei – julgo eu – que, em 2007, devido ao OGE que o PS aprovou na AR, vai acontecer o seguinte:

- Os portugueses vão pagar mais impostos, sejam eles trabalhadores no activo, reformados ou deficientes;

- Os cuidados na área da Saúde vão piorar;

- A Educação vai degradar-se ainda mais;

- A Segurança Social vai ser menos e pior;

- Os problemas da Habitação vão agravar-se;

- Os portugueses vão ter piores serviços públicos – e mais caros;

- O acesso à Cultura será, cada vez mais, um privilégio dos ricos;

- O poder de compra de milhões de famílias cairá drasticamente;

- Milhares de portugueses deixarão de poder honrar os seus compromissos, entre eles o pagamento das amortizações dos empréstimos para a compra de habitação.

Mas, antes disso, os habituais parabéns. E os primeiros parabéns desta semana vão, mais uma vez, para os EUA. Há oito dias, denunciámos aqui a institucionalização da prática da tortura pelas autoridades norte-americanas. Dissemos que, a partir de agora, qualquer cidadão que caia nas mãos dos esbirros da CIA, FBI ou de outro dos muitos serviços secretos que os EUA possuem, pode ser torturado e levado a confessar tudo o que dê jeito. Também dissemos que, com base nesse testemunho, outros cidadãos podem ser detidos e, até, condenados à morte. Nada de novo, afinal, a não ser reconhecer-se – e dar-se cobertura – em letra legal, a uma velha prática imperial.

Também já aqui disse, há tempos, que no país que gosta de ser tratado pelo pai e a mãe da democracia e da liberdade, andavam a acontecer coisas muito estranhas. Por exemplo: as bibliotecas serem obrigadas a informar o FBI da identidade de quem ler determinados livros. Agora, tive acesso a um vídeo que mostra um estudante da Universidade da Califórnia a ser alvejado pela polícia com uma pistola Taser, de electro-choques, no recinto da biblioteca. A agressão verificou-se em 14 de Novembro e os disparos com Taser continuaram várias vezes, mesmo depois de o estudante ter sido imobilizado. A cena de violência dura vários minutos. O seu crime? Não apresentou o cartão de identificação ao deixar a biblioteca. Quem quiser «deliciar-se» com este brutal e exuberante exemplo de «democracia» e «liberdade», faça o favor de consultar o site http://youtube.com/watch?v=W3CdNgoC0cE, ou vá a www.resistir.info e procure, na coluna da esquerda, o texto intitulado «No país das amplas liberdades», no site que referi anteriormente.

Depois, não menos merecidos parabéns para o nosso cliente do costume, José Sócrates, já que o abandono escolar, que constitui um dos problemas mais graves que enfrenta o País (ao contribuir para a perpetuação do baixo nível de escolaridade – mesmo em idades mais jovens – estando ainda associado a um baixo nível de qualificação profissional, para o qual, aliás, é determinante), continua a não ter solução. Que rica notícia, não é verdade?

De facto, no terceiro trimestre de 2006, segundo dados constantes da «Estatísticas de Emprego» do INE, dos 5.187.300 que tinham um emprego, ou seja, 71,3% de toda a população empregada, tinha apenas o ensino básico ou menos. A associação destes dois factores – baixa escolaridade e baixa qualificação profissional – constitui uma das causas estruturais mais importantes do atraso do País e da grave crise económica e social em que nos encontramos mergulhados.

Agora, dados publicados pelo Eurostat, referentes já a 2006, revelam que o abandono escolar se agravou com o governo do PS. Entre 1996 e 2006, portanto nos últimos 10 anos, o abandono escolar praticamente não diminuiu em Portugal, pois passou de 40,1% para 40%, enquanto a média comunitária desceu de 21,6% para 17%. Mas ainda mais grave é que o abandono escolar, entre 2005 e 2006, aumentou em Portugal pois passou de 38,6% para 40%, enquanto a média comunitária continuou a descer. Confrontada na AR com esta evolução, a ministra da Educação desvalorizou-a, o que mostra a forma como este governo trata a educação.

Apanhado na curva, veio a alma gémea de Sócrates, o ministro Pedro da Silva Pereira, arranjar à pressa uns milhões para ajudar alguns milhares de crianças «desfavorecidas». É a esmola do costume. É a habitual ajuda à pobreza, em vez de medidas políticas sérias e humanas que acabem, de uma vez por todas, com a pobreza. Ao invés disso, aí está o OGE para 2007 com tudo o que é preciso para continuar a fazer mais pobres.

Passemos, então, já para a questão de fundo de hoje, ou seja, o OGE para 2007, inspirador do título desta crónica, um quase plágio de um dos mais célebres livros de García Márquez. Diz Sócrates que este OGE será já um OGE de recuperação, de equilíbrio financeiro e de justiça social. Digo eu, que não será nada disso, mas será, principalmente, um OGE de fome e estrangulamento das classes menos protegidas e, também, de uma classe média cada menos média e cada vez mais próxima das que «habitam» os patamares mais baixos da pirâmide social. Os portugueses irão viver pior em 2007.

O que Sócrates não disse, porque é mentiroso ou ignorante – mas que qualquer economista sério lhe diria – é que o ridículo crescimento que referiu, como sendo a grande boa-nova, está, por um lado, a determinar que Portugal continue a se afastar cada vez mais da União Europeia e, por outro lado, que ele está associado a um conjunto de situações que não garantem um crescimento económico sustentado e elevado. E o que é que lhe diria um economista sério? Isto:

1 - O aumento das exportações, de que Sócrates tanto fala, verificou-se com uma degradação dos preços e dos termos de troca, como consta da pág. 75 do próprio Relatório do OE 2005. Isto é: estamos a vender mal;

2 - A taxa de crescimento do PIB potencial é, actualmente, em Portugal, inferior a 2%, o que torna no futuro praticamente impossível qualquer crescimento sustentado elevado. Ou seja: é a falências das políticas económicas e sociais tão de agrado do Governo;

3 - A experiência portuguesa mostra que não é possível uma redução sustentada da taxa de desemprego enquanto o PIB não crescer a uma taxa superior a 2%, o que ainda não sucede – e nem se prevê que venha a acontecer em breve, dada a política de obsessão no défice;

4 - Os problemas estruturais do nosso País – grave desigualdade na repartição da riqueza e rendimento, baixo nível de escolaridade e de qualificação profissional, insuficiente investimento, nomeadamente de qualidade, etc. – e que são as causas da crise actual continuam por resolver, vão agravar-se com este orçamento. Ou seja: ele insiste no rumo que conduziu ao ponto onde estamos;

5 - O fraco crescimento económico verificado no segundo trimestre de 2006 (apenas 0,9%) foi conseguido, não através do aumento da produtividade (que até diminuiu – 0,5%), mas por meio da utilização de mais trabalhadores, pois a quebra do investimento em cerca de – 7% contribuiu para que se verificasse uma quebra na produtividade.

Mas, muito convicto (por mentir bem, ou por ser muito ignorante na matéria) o primeiro-ministro afirmou que o «seu» orçamento é amigo do crescimento económico e vai estimular esse crescimento. No entanto, a análise do OE 2007, mesmo por um leigo como eu, mostra precisamente o contrário. Em consequência, como já disse, vêm aí carências de toda a ordem, com muita fome pelo meio.

De facto, Sócrates – sem se rir – garantiu na AR que o «seu» orçamento era um orçamento com preocupações sociais e que defendia a coesão social. Ora o que acontece é que, pela primeira vez em muitos anos, neste aborto que o governo socialista pariu, o peso das despesas com as funções sociais na despesa total do Estado descerá 1,7%, pois, entre 2006 e 2007, passará de 61,7% para 60%, bastando olhar a página 106 do respectivo Relatório. Esta diminuição significa uma redução de 780 milhões de euros na Educação, Saúde, Segurança Social, Habitação e Cultura. Em vez de manter ou aumentar, acompanhando, pelo menos a inflação, reduz!

Logo – e tal como eu disse no início – vamos ter pior Educação, pior Saúde, menos e pior Segurança Social, e as políticas de habitação e culturais piorarão em relação ao que já temos. A menos que Sócrates e o seu truculento ministro das finanças tenham descoberto como fazer uma omoleta maior com menos ovos…

A juntar a isto, verifica-se também uma redução, relativamente a 2006, de 446 milhões de euros nas «remunerações certas e permanentes» de 11 ministérios (no ministério da Educação e redução é de 355,5 milhões de euros), e a diminuição de 120 milhões nas despesas de funcionamento das Universidades e Institutos Politécnicos o que, a concretizar-se, determinará ou o despedimento de dezenas de milhares de trabalhadores da Administração Pública ou a colocação de mais de 100.000 no quadro dos «supranumerários», agora chamado «situação de mobilidade especial», com vencimentos reduzidos, o que contribuirá para agravar a qualidade e a quantidade dos serviços públicos prestados à população.

Depois, com base numa taxa de inflação fictícia de 2,1% – ainda mais mentirosa que o primeiro-ministro – os escalões de IRS e os abatimentos que beneficiam os trabalhadores vão ser actualizados apenas naquela percentagem, o que vai determinar que em 2007, para salários reais idênticos aos de 2006, os trabalhadores terão de pagar mais IRS. Igualmente, o abatimento específico que beneficia os reformados sofrerá uma nova redução agora de – 18,7%, pois passará de 7.500 euros para 6.100 euros, o que determinará que todos os que recebam pensões superiores a 435 euros terão de pagar mais IRS em 2007 (em 2006, foram as pensões superiores a 536 euros que sofreram um aumento da carga fiscal). O mesmo sucede com milhares de deficientes, que verão a carga fiscal aumentar mais em 2007, como consequência da revogação de todas as normas fiscais que reduziam o rendimento sujeito a IRS, ou seja, de todos os benefícios fiscais que tinham, e a sua substituição por uma norma que permite apenas reduzir o corresponde até três salários mínimos no imposto que têm de pagar. Os trabalhadores com recibo verde, mesmo que não tenham aumento de rendimento, vão sofrer um aumento de IRS, pois o rendimento sujeito a imposto passará de 65% para 70%, o que significa um aumento da carga fiscal em 7,7%

Relativamente à luta contra a pobreza, se se analisar o Orçamento da Segurança Social (página 124 do Relatório do OE 2007) conclui-se que, em 2007, para pagar subsídios de desemprego existe apenas mais 2,7% do que em 2006, quando o crescimento das despesas com subsidio de desemprego foi, em 2006, de 6,1%; em 2007, ter-se-á mais 1,1% para pagar o Rendimento Social de Inserção quando, em 2006, esta despesa cresceu em 16,2%; finalmente, o aumento em 2007, relativamente ao ano anterior, da despesa com a Acção Social é de apenas de 2,2%, quando em 2006 esta despesa cresceu em 18,1%.

Ora, meus amigos, aquilo que eu aqui disse não resultou de ter acordado hoje mal disposto e disposto a desancar um governo do qual não gosto. Se é verdade que não gosto dele, a maior verdade é que todos os números que aqui deixei foram retirados do próprio OGE para 2007, da sua comparação com o OGE de 2006, ou retirados de documentos do INE e do Eurostat. Fontes mais insuspeitas, meus amigos, não sei onde encontrá-las.

E no dia 1 de Janeiro, para entrarmos bem o ano, aí estarão os aumentos da electricidade, das portagens e dos transportes públicos – e todos eles acima da inflação. Entretanto, continuará a subida das taxas de juro (que sobem mais para os empréstimos do que para os depósitos), e continuarão jovens casais e ver as suas casas penhoradas, enquanto as empresas manterão o ritmo de encerramento, mandando para o desemprego – e para o desespero – famílias inteiras.

Parafraseando um velho anúncio de há uns anos atrás, não resisto a perguntar:

- Foi você que pediu um governo do Partido Socialista?


Crónica de: João Carlos Pereira
Lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 22/11/2006.
(Não deixe de ouvir e participar todas as quartas-feiras entre as 09H00 e as 10H00, em 98.7 Mhz)

15/11/2006

ASSIM VAI A “DEMOCRACIA”…

Para abrir as nossas «hostilidades», fica bem dar os parabéns ao senhor Sócrates. Ganhou o congresso dos boys e das girls, e só teve um voto contra. E os parabéns são devidos porque, se fosse no PCP, tal unanimidade seria logo classificada de estalinista e antidemocrática. Assim, o voto de Roseta sabe a ramalhete democrático na prateleira de iniquidade, prepotência e absolutismo que é o PS, e o querido líder saiu de Santarém ainda mais impado do que quando lá chegou.

Não interessa que, hoje, existam milhões de portugueses a viver no pavor do que será o dia de amanhã. O desemprego ameaça centenas de milhares de pessoas, dos professores a outros trabalhadores da função pública, dos pescadores aos empregados dos serviços, passando pelos lanifícios, cablagem, metalurgia, construção civil, e por aí fora. As relações laborais transformaram-se num imenso contrato precário, e Portugal caminha para ser, em absoluto e a passos largos, um Portugal, SA.

O aumento selvático do custo de vida e a contenção salarial agravam a fome que já há, e atiram para uma situação de carência outros milhares de portugueses. Mas eles, os senhores do PS, tratam o país como se ele fosse uma coisa abstracta. O país é, porém, acima de tudo, dez milhões de pessoas que precisam de comer e educar os seus filhos, de terem acesso a cuidados médicos, de viverem em casas dignas. Mas com o PS, isto já deixou de ser um país, e passou a ser uma roça. Trabalha-se para se deixar tudo o que se ganha nos cofres do Fisco, dos Belmiros e dos banqueiros. Mas o senhor engenheiro ganhou o congresso, não lhe cabe uma palhinha em lado nenhum, e pensa que pode continuar a ser um Zé do Telhado ao contrário.

Agora, análises, radiografias e todos os outros meios auxiliares de diagnóstico vão ser mais caros e mais difíceis para milhões de portugueses, por acaso – e só por acaso… – os que vivem pior e mais precisam. Dizer «é fartar, vilanagem» já não chega. E se isto não é atentar contra os direitos humanos, das duas, uma: ou o direito à saúde não é um direito humano, ou os portugueses, na óptica do governo, deixaram de ser seres humanos.

Parabéns, ainda, ao governo judaico. Há cerca de oito dias, as tropas sionistas assassinaram 18 palestinianos civis, entre eles várias mulheres e crianças. A carnificina – mais uma – foi de tal ordem, que até os norte-americanos e a União Europeia, tradicionais amigos, protectores e financiadores dos nazis que espalham a opressão e a morte, há mais de meio século, na Palestina e arredores, condenaram, em palavras, o massacre.

Os media deram a notícia… e ala, que se faz tarde. Ninguém falou em crimes contra a humanidade, em direitos humanos espezinhados, ninguém exigiu que os criminosos fossem levados a um qualquer tribunal internacional. Dias depois, a Assembleia-Geral da ONU condenou o massacre. Porém, no Conselho de Segurança, o veto norte-americano impediu que fosse aprovada uma resolução prática no mesmo sentido. Se já não soubéssemos, ficávamos a saber que criminosos de guerra e culpados de genocídio só o podem ser quem não for aliado ou lacaio dos norte-americanos.

E, contudo, um povo inteiro – o povo palestiniano – está a ser vítima, na sua própria terra, de um genocídio hediondo, só comparável ao que ficou conhecido por holocausto, no século passado. Os neonazis de Israel estão a exterminar, meticulosamente, o povo palestiniano, perante a condescendência cúmplice e hipócrita das democracias ocidentais. Pode não servir de nada, mas ao dizer isto estou a dizer, também, que não quero ser confundido com esta gente – com esta sociedade – que, por acção ou omissão, executa ou suporta uma das mais ignominiosas acções racistas e de extermínio de que há memória.

Falando em democracia, faz amanhã um mês que o presidente Bush assinou um diploma a legalizar a tortura e o rapto e, efectivamente, revogou a Carta de Direitos (Bill of Rights) e o “habeas corpus”. Agora, a CIA e outros serviços mais ou menos secretos podem, legalmente, sequestrar pessoas e transportá-las para prisões onde elas sejam torturadas. Dentro ou fora dos EUA. A «prova» extraída sob tortura é agora admissível em «comissões militares»; isto é, qualquer pessoa pode ser sentenciada à morte com base no testemunho de pessoas espancadas ou torturadas de qualquer forma. Agora, é-se culpado antes mesmo de a culpa ser confirmada. E você é um «terrorista» se cometer o que George Orwell, em «1984», chamou «crimes de pensamento». Bush ressuscitou as prerrogativas dos monarcas Tudor e Stuart: o poder da ilegalidade irrestrita.

«A um nível ideológico mais profundo», escreveu o historiador americano Alfred McCoy, «o que está a acontecer é uma competição do poder contra a justiça. Encarado historicamente, é um combate sobre princípios fundamentais que remontam a aproximadamente 400 anos». Não há muito tempo, Dianna Ortiz, uma freira americana torturada, anos atrás, por um esquadrão da morte guatemalteco, declarou numa entrevista a Jonh Pilger, que o líder desse esquadrão era um compatriota americano. Isto aconteceu no tempo de Ronald Reagan, que foi tão assassino na América Central quanto Bush o é no Médio Oriente. «Você não pode chamar ao seu país uma democracia, se nele se pratica ou se tolera a tortura», afirmou ela.

De facto, sob Reagan, perversamente, foi restaurada a mitologia da democracia americana e do seu «orgulho», quando o seu governo corrupto ateou uma guerra ilegal na empobrecida América Central, provocando centenas de milhares de mortes, classificada nas Nações Unidas como genocídio. Os Estados Unidos tornaram-se o único país, desde sempre, a ter sido condenado pelo Tribunal Internacional de Justiça por terrorismo (contra a Nicarágua). Não serviu de nada. Os EUA são intocáveis.

«Segurança nacional» é a expressão que esconde a palavra certa – imperialismo – cujo poder despótico e sangrento se acelerou com George W. Bush. A verdade é que os EUA são hoje, dentro de si, uma extensão do totalitarismo que há muito procura impor no exterior. Mas apesar das suas actuais «dificuldades» no Iraque, a propaganda informativa continua afinada. Podem produzir-se notícias impossíveis de esconder, mas o saque deliberado e sistemático de milhares de milhões de dólares dos recursos do Iraque tem sido tranquilamente cumprido, com o petróleo a encher os cofres do Tesouro norte-americano, depauperados por políticas de saque dos recursos nacionais a favor dos potentados económicos e pela própria guerra. No entanto, ainda em Janeiro último, 25 mil pessoas candidatavam-se a 325 empregos oferecidos em Chicago.

Mas o papão da guerra à democracia, que se diz que o terrorismo desenvolve, tem sido usado com êxito, internamente, e exportado com igual sucesso. Esta é a mensagem dos industriais / instigadores liberais da guerra, que quanto mais o mundo arder, mais ganham. Entre outras coisas, eles escondem que a al-Qaeda é minúscula em comparação com o terrorismo de estado que mata e mutila em escala industrial, e cujo custo pagamos através, por exemplo, do aumento do preço do petróleo. São as nossas vidas – o nosso quotidiano, a nossa segurança e felicidade – que estão em causa.

Grita-se, agora, que Bush perdeu as eleições porque os norte-americanos acordaram para a verdade e se fartaram das mentiras e dos crimes do presidente. Grita-se que a democracia funcionou, e que, portanto, tudo está bem. Fala-se como se este desaire limpasse os crimes de guerra, devolvesse a vida a 650 mil iraquianos mortos e a mais de 3 mil soldados ianques já caídos no campo de batalha. Como se isso trouxesse de volta as pernas, os braços, os olhos ou a saúde mental a dezenas de milhares de soldados norte-americanos estropiados e incapacitados para o resto das suas vidas. Como se isso voltasse a repor o património histórico destruído ou rapinado pelo invasor no Museu de Bagdad e noutros locais.

O que não se diz é que os norte-americanos só votaram contra Bush e os republicanos porque esta guerra não está a ser a guerra que eles queriam – e aquela que Bush lhes prometeu: limpa, rápida e decisiva. Se os soldados norte-americanos não estivessem a cair como tordos; se o Iraque estivesse reduzido a um monte de escombros e dos iraquianos só restassem os colaboracionistas, os assalariados e os fantoches; se o urânio empobrecido só matasse de cancro homens e mulheres, crianças e velhos iraquianos, em vez de também apodrecer, com doenças «indeterminadas», milhares de soldados que combateram nas guerras do Golfo, então Bush e os republicanos teriam ganha as eleições e seriam louvados como heróis.

Não foi, portanto, por questões morais, legais, humanitárias ou outras igualmente válidas e justas, que o eleitorado norte-americano mudou tanto em apenas dois anos. Que se desiludam, pois, os optimistas. Os norte-americanos não votaram contra a guerra. Votaram – o que é diferente – contra a forma desfavorável como está a decorrer a guerra, coisa que, se fossem, como povo, minimamente lúcidos (isto é: se não fossem tão formados – e deformados – por uma propaganda que os convence de serem cidadãos de um país a que todos os outros devem obediência e tributo) teriam «adivinhado» já nessa altura. E Bush não teria sido reeleito.

Agora, porque a guerra lhes dói, como nunca pensaram que lhes pudesse doer – e o fantasma do Vietname já é um fantasma encarnado na resistência iraquiana – aprenderam o que aprende o matulão cobarde quando encontra quem lhe ponha o nariz a sangrar.

A propósito disto tudo, queridos amigos, leio-vos, a terminar, o que disse José Saramago numa entrevista recente ao CM:

«No momento em que nascemos é como se tivéssemos firmado um pacto de aceitação de tudo o que nos rodeia e que ainda não sabemos o que é. Depois, vamos crescendo, cada vez mais condicionados, até ao dia em que nos perguntamos: Quem é que assinou isto por mim? Costumo dizer que é nesse dia que pode começar a liberdade. E aí passamos à contestação e, se necessário, à radicalização. Nada me obriga, a não ser o respeito humano, a aceitar sistemas que da democracia só nos dão um papel na urna de quatro em quatro anos. Vivemos numa plutocracia: o governo dos ricos. Os governos são hoje, brutalmente, os comissários políticos do poder económico – e a democracia é uma mentira!».

E eu clarifico: a democracia é uma mentira em Portugal, nos EUA e em quase todo o mundo.


Crónica de: João Carlos Pereira
Lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 15/11/2006.
(Não deixe de ouvir e participar todas as quartas-feiras entre as 09H00 e as 10H00, em 98.7 Mhz)

12/11/2006

ESTA SEMANA

Por motivos profissionais estive ausente do país durante algum tempo e por isso longe das más notícias e das trafulhices deste desgoverno socialista que ainda temos.

Foi, posso garantir-lhes, um período em que não me preocupei se o ministro A ou o ministro B retirou mais uma carta da manga para nos sacar mais dinheiro ou restringir algum dos poucos direitos que ainda temos, passando duas semanas sem saber das novidades cá do burgo. O pior foi quando cheguei e me deparei com a realidade, passando a dormir mal e a sentir-me intranquilo com medo do que nos possa acontecer no dia de amanhã. E o medo não é de bombas ou atentados – é muito pior que isso – é o de um desgoverno que nos faz a vida negra e cada vez mais difícil, empurrando-nos para um abismo de que não há retorno.
Mal por mal, prefiro as bombas.

Mas vamos ao que interessa e ao que me levou a escrever estas despretensiosas linhas.

Para além de outros locais por onde deambulei, terminei o meu périplo no Egipto, país que não me canso de revisitar e admirar, encontrando sempre coisas novas e pormenores interessantes sobre a sua história e cultura secular.

Tive a oportunidade de me “perder” pelo Cairo, uma cidade com cerca de 19 milhões de habitantes e misturar-me com os temíveis “terroristas” muçulmanos que fizeram o favor de não me molestar. Não fui raptado injuriado ou ofendido, mas sim convidado a tomar uns “nánás” (chá de menta) e a fumar nos seus célebres cachimbos de água.

Será que me confundiram com algum membro radical da Al-Qaeda e tiveram medo que eu andasse por ali a colocar bombas ?

É uma dúvida que persiste no meu espírito, pois andei por onde queria e me apetecia, sem qualquer receio ou temor de que me pudesse acontecer fosse o que fosse.

No Egipto são professadas várias religiões, incluindo a Cristã, existindo um total respeito pela de cada um, pois a fé não se apregoa, pratica-se, e cada crente é livre para a seguir com mais ou menos rigor, de acordo com a sua consciência.

Quando os meios de comunicação social fazem eco do paranóico Bush e nos tentam impingir a sua única “verdade” de que o Islão é o causador de todos os males deste mundo, basta ir até ao Cairo e verificar como isso é uma grande mentira e que eles são muito mais pacíficos do que o chamado mundo ocidental.

Por casualidade, tive oportunidade de conviver em simultâneo com Muçulmanos e Cristãos, baseando-se as conversas na discussão de temas sociais, políticos e religiosos, sem que tivesse havido qualquer altercação verbal ou atitude menos correcta, embora nalguns pontos não estivéssemos totalmente de acordo.

O Egipto, país maioritariamente islâmico é pacífico e seguro, sendo o seu povo de uma extrema simpatia e amabilidade, deixando-nos sempre com vontade de voltar.

Pela minha parte não demorarei muito para rever os meus amigos e continuar a descobrir os mil e um recantos de um Cairo com o Nilo a seus pés que lhe dá uma cor e beleza especial.

E se alguém me quiser acompanhar, é só dizer, pois terei todo o prazer em servir de cicerone.

08/11/2006

A REPÚBLICA DAS CASTANHAS

Portugal tem vários cheiros e cores. As cores são sombrias, pesadas, lembrando nuvens de tempestade. O cheiro também não é bom. Olhando à nossa volta, de olhos bem abertos e a pituitária afinada, o que vemos e cheiramos faz lembrar, a um só tempo, a Camorra napolitana (ou a Cosa Nostra siciliana, tanto faz), a solidão esquelética e os ventres inchados da África a sul do Sara e, para rematar o quadro, a prepotência acéfala e simiesca dos «coronéis» sul-americanos. Dos que ainda mandam (a mando dos gringos, entenda-se) em certas repúblicas das bananas da América Latina, como o México, de Fox, ou a Colômbia, de Uribe. Portugal é – ou esta quase a ser – esse tenebroso três em um.

É. Portugal está escuro, enegrecido, enevoado. E o ar pesa, fede, asfixia. Pode ser de ser tempo da castanha assada, altura em que o fumo das brasas, espalhado pelo vento, leva, de braço dado com o odor dos frutos, um cheiro a esgoto, a latrina e – bem pior – um hálito siciliano, que a água benta ministerial transforma em mofo sepulcral, um mofo dos tempos em que um homem de escuro, de botas calçado, de nariz afilado e dedo em riste desenhava, num gabinete sombrio, ali para os lados de S. Bento, um país à sua imagem.

Um (mau) hálito siciliano, cariado, mas não de cáries, propriamente ditas, (porque gente de muitas posses essa é, que de si bem cuida e, para tanto, tem sempre onde ir aforrar o que aos outros mingua) mas das cáries mais cavernais, que são as da alma. Se alma têm os desalmados que exalam tais odores.

República das castanhas, assim te baptizo eu hoje, ó Portugal dos Pequeninos, pois pequeninos são tanto os mandantes miseráveis, como os miseráveis seres que ao poder os erguem – e no poder os mantêm e sustentam.

Aqui chegados, falemos de 38 milhões de euros.

Trinta milhões de euros!? O que são 38 milhões de euros?

São mais de sete milhões e seiscentos mil contos!

E para que serve tanto dinheiro? Para aumentar as reformas mais baixas? Para construir creches ou centros de acolhimento para idosos ou cidadãos carentes? Para melhorar as instalações de centros de saúde? Para fazer obras em escolas que estejam por aí a cair de podres?

Não, aqui, nesta república das castanhas, os sete milhões e meios de contos são para o Governo fazer publicidade da sua política, o que pode muito bem acontecer em luxuosas revistas estrangeiras, como a Paris Match ou a Fortune. Quanto, destes mais de sete milhões e meio de contos, vai ser propaganda em vez de publicidade? Ou por outra: porquê foguetório, se as bocas estão secas e os estômagos lisos? Ah! Já sei! Dê-se-lhes pão e circo, não é? Diga-se que tudo vai bem, que eles acreditam.

E se me volto para outro lado, logo me doem os olhos e a alma, porque embato em notícias que me falam de outras desgraças. Então não é que o Estado não deve apenas aos fornecedores de secos e molhados ao nosso Exército? Pois não! Deve também à Galp. Digamos que se trata «apenas» de dois milhões de euros, coisa de nada, uns litritos de combustíveis que estão na lista dos calotes desde Janeiro deste ano.

Estão lisos os cofres do Estado. E eu que não compreendia a razão que leva o Governo a retirar mais medicamentos da lista dos comparticipados. É para a tropa não morrer à fome, meus senhores. É para o senhor general ter sempre o Mercedes às ordens, com o depósito bem atestado. É para os tanques não pararem e poderem mostrar, à NATO e ao Bush, que somos uns meninos bem mandados. Estão a ver como tudo tem sempre uma explicação?

Aparte isso, o país está bem. A economia recupera. O povo gosta destes seus «coronéis». A castanha estala na brasa, e o fumo esconde a desgraça. Mas qual desgraça? Se alguém fala em fome, nas listas de espera que engordam, em desemprego, logo um ministro vem desmentir os alegados factos. Mesmo que essas coisas fossem verdade – o que se nega peremptoriamente – o que seria isso comparado com a necessidade de reduzir o défice?

O défice é tudo. O défice é que é. Morra o povo, mas viva o défice!

Por outro lado, os principais clubes portugueses ainda estão nas competições europeias. Estão a ver como isto está a melhorar? Só as telenovelas altamente edificantes, ainda não apanham todo o horário televisivo, mas lá chegaremos. É preciso não falhar nesse grande objectivo de educar o povo. Vivam a Floribela e os Morangos! Viva o futebol e o senhor Scolari. E viva – é claro – a castanha assada!

E, depois, há a liberdade. A santa liberdade. O «coronel» Sócrates defende a liberdade até às últimas consequências. Um jornalista fez uma reportagem de que ele não gostou? Ponha-se a liberdade a funcionar. Como? Ora essa! Ligue-se para o chefe de redacção do jornalista impertinentemente livre e diga-se: «Daqui fala o «coronel» Sócrates. Como governante livre e responsável, não gostei do trabalho desse senhor. A partir de agora, não quero vê-lo mais à minha frente. Caso me apareça de micro em punho, tomarei a liberdade de não lhe prestar quaisquer declarações. Percebeu, ou quer ser discriminado? Em completa liberdade, claro!».

Mas a liberdade, na versão «coronel» Sócrates, já chegou à Madeira. Veja-se o que aconteceu ao senhor Alberto, também João e Jardim (mas do Jardim não se sabe se é apelido ou alcunha nascida de no «jardim» que a Madeira é, ele há tanto tempo mandar). Veja-se como – logo ele, que sempre gostou de erguer sobre os demais a sua voz tonitruante – não logrou, desta vez, fazer-se ouvir, como queria, pois a jornalista levava o recado bem estudado. Está tudo a mudar, não está senhor Alberto? Já lhe cortam o pio sem contemplações, tal como costumam fazer quando o entrevistado é da esquerda, especialmente do PCP.

E bem tentou o senhor Alberto desdobrar-se em números e dados, na tentativa de desmontar e demonstrar as maldades e as mentiras do Poder Central (de Lisboa, como ele gosta de afirmar). O que a jornalista queria era falar de abstracções, de coisinhas simpáticas, como solidariedade e espírito de sacrifício. Ela não queria ouvir – nem que nós ouvíssemos – os números do senhor Alberto, com os quais o dito cujo pretendia demonstrar que os «coronéis» de Lisboa andam a dizer aldrabices atrás de aldrabices.

Aflita, a Judite, sabendo como as coisas são – e qual a cor e o calibre dos «coronéis» que estão no poleiro – só queria falar em solidariedade, não queria dados que pusessem em causa a verdade oficial. Dados que, afinal, sempre ouvimos, embora a custo, pois a senhora entrevistadora sobrepunha a sua voz à do seu entrevistado, quando o senhor Alberto, pela linguagem dos números, demonstrava que em Lisboa se governa pior do que no Funchal.

E podem-me dizer que os números não são aqueles, que todos os políticos aldrabam e usam os números como lhes convém. Que até podia ser que fosse tudo mentira, pois o senhor Alberto é homem de muitos engenhos. Mas querem saber porque razão eu sei que ele falou verdade? Porque não veio nenhum «coronel» desmenti-lo. Porque engoliram em seco. Porque comeram (com os números) e calaram.

E só me espantou que à Juditezinha, que estava tão preocupada com o facto de a Madeira não querer abdicar das suas verbas em favor dos Açores, não tivesse o senhor Alberto sugerido que, por maioria de razão, também ela abdicasse de parte do seu ordenado a favor de alguém mais desfavorecido. Tinha lógica, não tinha?

Castanha assada. Quentes e boas! República das castanhas. Sem ofensa, sem desprimor, também república dos coronéis Ramiros, e dos seus émulos e sucedâneos, os doutores Mundinhos, que Jorge Amado tão bem descreveu na sua Gabriela, Cravo e Canela. Aprendemos isso no tempo em que as telenovelas eram obras de arte e veículos de cultura, em vez das boçalidades multicores que hoje são.

É isso. Mudam os coronéis, mas não muda o chicote, nem a bota, nem a bala, nem a forca, mesmo que seja para o grande amigo de outros tempos, cujos crimes porque está ser julgado (se aquilo é um julgamento) não tivessem sido todos cometidos com a bênção e a palmadinha nas costas do ex-amigo americano. Uma pergunta ingénua: Quando será George Bush julgado e condenado pelas centenas de milhares de mortos que já provocou, com base em mentiras tão grandes que, até ele, já não as pode sustentar? E vejam lá como Blair já está a voltar o bico ao prego.

Voltando à castanha (Castanha SA, obviamente, porque o SA é a solução mágica para tudo), voltando, então, à castanha, diz o insuspeito Tribunal de Contas que, afinal de… contas, os hospitais SA foram pior emenda que o soneto. Não se conteve o endividamento, nem os défices e (olha a grande novidade!) o grau de satisfação dos utentes baixou. Conclusão: está tudo bem encaminhado para a solução final: privatizar tudo e, quem não tiver dinheiro, morre à porta das urgências, como dizia, entusiasmado, um nosso ouvinte, por sinal grande fã do engenheiro Sócrates.

República das castanhas, que quer assar lixos tóxicos na Arrábida. Para já, os testes estão suspensos, em resultado da acção cautelar interposta nesse sentido pelas câmaras de Setúbal, Sesimbra e Palmela. Mas outra acção, visando defender a saúde pública e a segurança de pessoas e bens, face aos perigos para o meio ambiente que a co-incineração provoca, também deu entrada e, portanto, para o «coronel» Sócrates, a coisa ainda não é favas contadas.

A propósito disto, o advogado Castanheira Barros, que conduz estas acções, enviou-me as seguintes palavras, dirigidas também à Rádio Baía e ao seu auditório, como prova de confiança na Justiça e na Razão e, principalmente, como estímulo para que não baixemos os braços nesta luta pela defesa da Vida.

«Reacende-se a luta entre a Bela e o Monstro. Na Arrábida temos A Bela e o Monstro.
A Serra, com todo o seu esplendor, volta a atacar o Monstro que nasceu ali, junto ao mar, e se foi expandindo serra dentro, enfraquecendo a sua seiva e roendo a sua pedra.
Ao contrário da fábula dos irmãos Grimmm, a Bela nunca conseguirá apaixonar-se pelo Monstro e irão viver para sempre em conflito».

Estas curtas – mas significativas – palavras enviou-as, como disse, Castanheira Barros, o advogado que tem a responsabilidade de defender a Bela Arrábida do Monstro Sócrates – e da monstruosa co-incineração.

Nesta república das castanhas, como acabámos de perceber, nem tudo se perdeu. Há os Sócrates, os Diogos, os Corleonne e seus afins, mas também há aqueles que resistem, os que dizem não – e sabem porque o dizem.

Até de hoje a oito dias.


Crónica de: João Carlos Pereira
Lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 08/11/2006.
(Não deixe de ouvir e participar todas as quartas-feiras entre as 09H00 e as 10H00, em 98.7 Mhz)

03/11/2006

UM BORDEL À BEIRA-MAR

ou o bacanal socialista

As nossas «provocações» de hoje não são, na sua quase totalidade, mérito meu. Devo-as ao professor Santana Castilho, a quem faço a devida vénia, e a quem tiraria o chapéu, se por acaso o usasse. Na verdade, caros ouvintes, vou ler-vos, daqui a nada, uma carta aberta que este professor do Ensino Superior enviou ao engenheiro José Sócrates, pessoa que, como dolorosamente sabemos, ocupa o cadeirão de primeiro-ministro.

Porém – e antes de mais – quero deixar aqui uma boa notícia. Uma notícia que encherá de esperança todos aqueles que defendem uma Arrábida, a nossa Serra-Mãe, livre do crime da co-incineração, essa fixação psicopática do engenheiro José Sócrates. Vamos a ela: as Câmaras de Setúbal, Sesimbra e Palmela vão recorrer aos tribunais para impugnar o despacho do ministro do Ambiente que visa avançar com a co-incineração na Arrábida sem a realização da respectiva avaliação de impacto ambiental. Ao mesmo tempo, será também instaurada uma acção cautelar para travar o início dos testes. As duas acções serão conduzidas por Castanheira Barros, advogado de Coimbra, e uma das figuras proeminentes no combate legal à co-incineração em Souselas. Ou eu me engano muito, ou ainda não será desta que o homem a quem o país vai conhecendo pelo cognome de «O Mentiroso», levará a dele avante.

Posto isto, vamos a umas notas soltas – os habituais parabéns – a propósito de desenvolvimentos recentes da nossa vida neste bordel à beira-mar situado. E vem o termo bordel a propósito da prostituição que se pratica por todo o lado, principalmente nos mais altos patamares do aparelho do Estado. Estou a falar, como compreenderão, em sentido figurado, pois não me refiro às prostitutas – nem à prostituição – propriamente ditas, coitadas delas, merecedoras muito mais de respeito e compreensão do que certas meretrizes de fatinho e gravata que por aí existem, cujo triste ofício é mercadejar corpo e alma – principalmente a alma – comprando e vendendo muito mais do que uns minutos de prazer. E se o país se assemelha a um bordel, a governação mais não é do que um enorme bacanal.

Parabéns, então – e a começar – ao pesado ministro das Obras Públicas e ao seu secretário de Estado, um tal Paulo Campos, que encomendou à empresa F9 Consulting, fundada por um seu assessor, o estudo técnico que sustentou a decisão do Governo de colocar portagens nas SCUTs do Norte Litoral. Tendo em atenção que o estudo custou 275 mil euros (mais de 55 mil contos), até se pode dizer que foi um preço de amigos. Mas é mesmo para isso que servem os amigos.

Claro que tudo não passou de uma infeliz coincidência. Nem o convite para o empresário passar a assessor, nem o convite para a sua empresa elaborar o estudo, nem as conclusões do estudo irem de encontro aos desejos do governo podem ser imaginados como manhas e artimanhas da democracia na versão PS. Ná! Isto é tudo gente séria, umas autênticas virgens, tão puras como a maior das santas. Mesmo assim, prefiro as prostitutas verdadeiras. Essas, ao menos, não enganam ninguém, não se escondem, não disfarçam e, principalmente, só vivem do dinheiro dos seus clientes. As outras, as «prostitutas sérias», essas, vivem do dinheiro de todos nós. E ainda nos tratam como se não passássemos de uma cambada de imbecis. Que, se calhar, até somos…

Parabéns, também, à patibular ministra da Educação. De cada que vez que abre a boca ou toma uma medida, sai asneira e estoira bronca. Agora, queria obrigar os professores a cumprirem horários de oito horas, nas escolas, e a ali permanecerem nas pausas do Natal e da Páscoa. Responderam-lhe os sindicatos que uma medida destas só podia sair de quem das escolas não percebe nada, ou porque nunca lá esteve, ou porque, estando, nada viu nem percebeu. Os professores preparam as matérias fora dos seus horários escolares, tal como é fora do seu actual horário corrigem pontos e realizam outras tarefas de âmbito profissional. Nas pausas do Natal e da Páscoa estão, em permanência, disponíveis para as actividades necessárias à concretização dos projectos curriculares e extracurriculares, pelo que, com frequência, agem no espaço físico da escola nesses períodos, que apenas são de pausa efectiva e real para os alunos.

Tão disparatada era a medida, que, mais tarde, lá veio emendar a mão e dar o dito por não dito. Entretanto, alastra a contestação nas escolas face à inutilidade das chamadas aulas de substituição.

Parabéns, também, ao senhor ministro da Defesa, pelo calote de centenas de milhares de euros a fornecedores de géneros alimentares à Manutenção Militar, entidade que abastece os quartéis do Exército português. Isto é: a tropa anda a comer fiado, porque o governo diz que não tem verba para a alimentar. Mas tem para mandar militares para a Bósnia, para o Kosovo, para o Afeganistão, para o Líbano e para qualquer outro sítio onde seja necessária carne para canhão.

A verdade é que há 28 meses que o governo não paga a quem, a tempo e horas, lhe fornece a paparoca para a tropa. Um desses fornecedores, já atolado em dívidas a familiares e a bancos, recebeu pela última vez em 2004. Mas tem de continuar a pagar IVA e demais impostos, se não vai para a lista de caloteiros que o Ministério das Finanças tem na Internet e, muito pior, deixa de poder continuar a ser fornecedor do Estado. Estado que é mau pagador, mas que está isento de fazer parte da lista de caloteiros.

E é assim. Esgotado, ao governo, já sem coelhos na cartola para iludir os portugueses, apenas resta a política do atarraxa. Corta nos pagamentos, corta nos salários, corta nas pensões, corta nos direitos sociais, ataca, como pittbull enraivecido a função pública, enfim, morde a torto e a direito em tudo o que lhe cheire a Zé Povinho. Por isso, vou ler-vos a tal carta aberta a José Sócrates, escrita há já uns tempos pelo professor universitário Santana Castilho, que demonstra e prova como este governo e o seu primeiro-ministro não passam de um grupo de inquietantes mentirosos e inaptos.

«Esta é a terceira carta que lhe dirijo. As duas primeiras motivadas por um convite que formulou mas não honrou, ficaram descortesmente sem resposta. A forma escolhida para a presente é obviamente retórica e assenta num direito que o senhor ainda não eliminou: o de manifestar publicamente indignação perante a mentira e as opções injustas e erradas da governação.

Por acção e omissão, o Senhor deu uma boa achega à ideia, que ultimamente ganhou forma na sociedade portuguesa, segundo a qual os funcionários públicos seriam os responsáveis primeiros pelo descalabro das contas do Estado e pelos malefícios da nossa economia. Sendo a administração pública a própria imagem do Estado junto do cidadão comum, é quase masoquista o seu comportamento.

Desminta, se puder, o que passo a afirmar:

1.º Do Statics in Focus n.º 41/2004, produzido pelo departamento oficial de estatísticas da União Europeia, retira-se que a despesa portuguesa com os salários e benefícios sociais dos funcionários públicos é inferior à mesma despesa média dos restantes países da Zona Euro.

2.º Outra publicação da Comissão Europeia, L´Emploi en Europe 2003, permite comparar a percentagem dos empregados do Estado em relação à totalidade dos empregados de cada país da Europa dos 12. E o que vemos? Que em média nessa Europa 25,6 por cento dos empregados são empregados do Estado, enquanto em Portugal essa percentagem é de apenas 18 por cento. Ou seja, a mais baixa dos 12 países, com excepção da Espanha.

As ricas Dinamarca e Suécia têm quase o dobro, respectivamente 32 e 32,6 por cento. Se fosse directa a relação entre o peso da administração pública e o défice, como estaria o défice destes dois países?

3º. Um dos slogans mais usados é do peso das despesas da saúde. A insuspeita OCDE diz que na Europa dos 15 o gasto médio por habitante é de 1.458. Em Portugal esse gasto é 758. Todos os restantes países, com excepção da Grécia, gastam mais que nós. A França 2.730, a Áustria 2.139, a Irlanda 1.688, a Finlândia 1.539, a Dinamarca 1.799, etc.

Com o anterior não pretendo dizer que a administração pública é um poço de virtudes. Não é. Presta serviços que não justificam o dinheiro que consome. Particularmente na saúde, na educação e na justiça. É um santuário de burocracia, de ineficiência e de ineficácia. Mas infelizmente os mesmos paradigmas são transferíveis para o sector privado. Donde a questão não reside no maniqueísmo em que o Senhor e o seu ministro das Finanças caíram, lançando um perigoso anátema sobre o funcionalismo público. A questão reside em corrigir o que está mal, seja público, seja privado. A questão reside em fazer escolhas acertadas. O Senhor optou pelas piores. De entre muitas razões que o espaço não permite, deixe-me que lhe aponte duas:

1.º Sobre o sistema de reformas dos funcionários públicos têm-se dito barbaridades. Como é sabido, a taxa social sobre os salários cifra-se em 34,75 por cento (11 por cento pagos pelo trabalhador, 23,75 por cento pagos pelo patrão).

Os funcionários públicos pagam os seus 11 por cento!

Mas o seu patrão Estado não entrega mensalmente à Caixa Geral de Aposentações, como lhe competia (e exige aos demais empregadores), os seus 23,75 por cento. E é assim que as "transferências" orçamentais assumem perante a opinião pública não esclarecida o odioso de serem formas de sugar os dinheiros públicos.

Por outro lado, todos os funcionários públicos que entraram ao serviço em Setembro de 1993 já verão a sua reforma ser calculada segundo os critérios aplicados aos restantes portugueses. Estamos a falar de quase metade dos activos. E o sistema estabilizará nessa base em pouco mais de uma década.

Mas o seu pior erro, Senhor Engenheiro, foi ter escolhido para artífice das iniquidades que subjazem à sua política o ministro Campos e Cunha, que não teve pruridos políticos, morais ou éticos por acumular aos seus 7.000 Euros de salário, os 8.000 de uma reforma conseguida aos 49 anos de idade e com 6 anos de serviço. E com a agravante de a obscena decisão legal que a suporta ter origem numa proposta de um colégio de que o próprio fazia parte.

2.º Quando escolheu aumentar os impostos, viu o défice e ignorou a economia. Foi ao arrepio do que se passa na Europa. A Finlândia dos seus encantos, baixou-os em 4 pontos percentuais, a Suécia em 3,3 e a Alemanha em 3,2.

3.º Por outro lado, fala em austeridade de cátedra, e é apologista juntamente com o presidente da Câmara Municipal de Viana do Castelo, da implosão de uma torre (Prédio Coutinho) onde vivem mais de 300 pessoas. Quanto vão custar essas indemnizações, mais a indemnização milionária que pede o arquitecto que a construiu, além do derrube em si?

4.º Por que não defende V. Exa. a mesma implosão de uma outra torre, na Covilhã (ver ' Correio da Manhã ' de 17/10/2005), em tempos defendida pela Câmara, e que agora já não vai abaixo? Será porque o autor do projecto é o Arquitecto Fernando Pinto de Sousa, por acaso pai do Senhor Engenheiro, primeiro-ministro deste país?

• Por que não optou por cobrar os 3,2 mil milhões de Euros que as empresas privadas devem à Segurança Social?

• Por que não pôs em prática um plano para fazer a execução das dívidas fiscais pendentes nos tribunais Tributários e que somam 20 mil milhões de Euros?

• Por que não actuou do lado dos benefícios fiscais que em 2004 significaram 1.000 milhões de Euros?

• Por que não modificou o quadro legal que permite aos bancos, que duplicaram lucros em época recessiva, pagar apenas 13 por cento de impostos?

• Por que não renovou a famigerada Reserva Fiscal de Investimento que permitiu à PT não pagar impostos pelos prejuízos que teve no Brasil, o que, por junto, representará cerca de 6.500 milhões de Euros de receita perdida?

A Verdade e a Coragem foram atributos que Vossa Excelência invocou para se diferenciar dos seus opositores.

Quando subiu os impostos, que perante milhões de portugueses garantiu que não subiria, ficámos todos esclarecidos sobre a sua verdade.

Quando elegeu os desempregados, os reformados e os funcionários públicos como principais instrumentos do combate ao défice, percebemos de que teor é a sua coragem».

Subscreve esta carta aberta, como disse, o professor universitário Santana Castilho.

E depois destas sábias palavras, tudo o que eu acrescentar não faz sentido.


Crónica de: João Carlos Pereira
Lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 01/11/2006.
(Não deixe de ouvir e participar todas as quartas-feiras entre as 09H00 e as 10H00, em 98.7 Mhz)

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