24/01/2007

POR ESTAS E POR OUTRAS…

Nas «Provocações» de há oito dias, um ouvinte que, pelas posições que aqui defendo, sempre me teceu rasgados elogios e – pelo que dizia – me tinha em grande apreço enquanto cidadão e homem de esquerda, não gostou que, na questão do aborto, eu tivesse manifestado uma posição diferente da sua. Por isso, aparentemente à laia de vingança, logo insinuou que eu seria pessoa de muitas posses, patriarca de uma grande prole, enfim – quem sabe? – um agente da direita reaccionária, insensível e desumano, incapaz de perceber o drama das mulheres que, deliberadamente, abortam – ou, como costuma dizer o povo – fazem os seus desmanchos.

Não vou, hoje, voltar ao tema do aborto – coisa que farei outro dia – principalmente porque a reacção desse ouvinte leva-me a abordar a questão do sectarismo na nossa vida colectiva. Por isso, é bom que diga algumas coisas que, apesar de simples e evidentes, não cabem, segundo parece, na cabeça de muita gente.

Uma delas – e resultado directo do 25 de Abril de 1974 – é que existe liberdade de expressão, direito de opinião e possibilidade de discussão aberta e frontal de qualquer tema. Outra, é que o debate, por mais acalorado, vigoroso e, até, violento que seja, não deve precisar de argumentos baixos ou insinuações mais ou menos torpes, cuja única vantagem é demonstrar que aqueles que desses processos se servem, não têm argumentos válidos para o que pretendem defender. Quem, à falta de melhor, opta pelo baixo ataque pessoal, dá uma péssima imagem de si e, principalmente, das causas pelas quais era suposto lutar.

Outra ainda – e já no que pessoalmente me respeita – é que calar-me ou dizer o contrário do que penso, só para não desagradar a terceiros, ou acompanhar pretensas modernidades, seria, antes de mais, um acto de profunda hipocrisia, para não dizer de enorme cobardia – embora pudesse ser muito simpático. Ou cómodo. Ora, eu não me tenho na conta de cobarde, de mentiroso ou de hipócrita. E acontece, também, que nunca tive medo – nem vergonha – das minhas opções de vida.

Postas as coisas neste pé (e voltando à tal insinuaçãozinha produzida pelo estimado ouvinte, tentando fazer passar a ideia de que eu seria homem de muitas posses) parece-me que houve aqui um tique argumentativo realmente pouco elevado – para não dizer: ligeiramente rasteiro – e que teria como único objectivo desvalorizar a minha opinião, porque contrária à sua. Quase que lhe notei – se os ouvidos e a intuição não me atraiçoaram – uma vontade incontrolável de ofender, de magoar, de me castigar pela minha «afoiteza». Assim como quem diz: «Pelo “Sim” ao aborto estão os pobres e injustiçados sociais, os desfavorecidos, as pessoas que têm dificuldades na vida, enfim, os democratas autênticos, os verdadeiros revolucionários; pelo “Não”, estão todos os outros: os ricalhaços, os indiferentes aos problemas sociais, enfim, a gente má e egoísta deste mundo». Ao pretender colocar-me, como castigo pela minha ousadia em obedecer à minha consciência, e só a ela, numa trincheira onde eu não estou – o que ele está farto de saber – o ouvinte deu mostras, pelo menos, de falta de espírito democrático e – bem pior – de uma evidente má-fé. Direi mesmo: de um sectarismo primário.

Gostaria, por isso, de ilustrar o que então lhe respondi, apenas para que ele possa compreender a dimensão da sua injustiça. Tenho uma vida modesta, igual à de milhões de portugueses, conseguida, apenas, com o meu trabalho e o da minha família, o que é público e notório. Vivo num andar de três assoalhadas, tenho um carro familiar e, como única extravagância, uma mota já com uns anitos, comprada a prestações, tal como o carro. Não viajo, não gozo férias no estrangeiro, e a última saída que fiz, digna desse nome, registou-se há cerca de um ano, quando acompanhei, por razões de saúde, um familiar a tratamento termal. Ah! É verdade: leio muito, oiço boa música. E vou, de vez em quando, assistir a jogos do meu clube.

Quanto ao resto, dei ao mundo quatro filhos – um deles, infelizmente, já não está entre nós – e tive, durante anos a fio, de fazer das tripas coração para os conseguir criar. Quando a minha mulher engravidou do segundo, estava eu na tropa – e numa especialidade e com uma classificação de curso que me levaria a ser dos últimos a ser mobilizado. A minha mulher era operária, ganhava a miséria que se calcula, e eu ganhava, então, apenas 90 escudos por mês, que era o que me pagava a tropa, como miliciano. Face à situação, resolvi antecipar a inevitável mobilização, oferecendo-me como voluntário. Decorria o ano de 1964.

Quando voltei e passei à vida civil, logo ficámos à espera do terceiro filho, que nasceu em 1968, tendo o quarto vindo ao mundo em Março de 1974. Apesar de não «virem nada a calhar», nunca pensei em recorrer ao aborto, porque, já nessa altura, me parecia um acto violento, sujo e, por conseguinte, indigno de um ser humano. Arranjei trabalhos em part-time, nunca fugi a uma hora extraordinária e, como disse, privei-me de muita coisa – comida incluída – para que aos meus filhos não faltasse o essencial. Tenho orgulho nisso e felicito-me, hoje, por não ter sido egoísta. Não tenho vergonha do que passei, mas sei que teria muita vergonha e muitos remorsos se, por pensar apenas no meu bem-estar pessoal, tivesse impedido os meus filhos de estarem cá.

Acrescento, a talhe de foice, que a minha mulher e um dos meus filhos têm ordenados em atraso do tempo em que trabalhavam na Mundet, o que também contribuiu para que alguns anos da nossa vida, já mais recentes, ainda tivessem sido mais difíceis. Por isso, quando oiço um ouvinte dizer-me, contrariado por, neste particular, eu não alinhar com os seus pontos de vista, que serei um homem de bastos rendimentos, bem na vida, e que só por isso sou contra o aborto, só me resta dar esta explicação e encolher os ombros com alguma piedade por tão fraca capacidade argumentativa. E por tão feios argumentos, se argumento se pode chamar a tão despropositada reacção.

Esclareço o mesmo ouvinte que, com pouco mais de dois anos de idade, a minha mãe se viu obrigada a entregar-me aos cuidados dos meus avós paternos, pois o meu pai abandonara-a mal ela ficou grávida de mim. Como a vida em casa dos meus avós não era farta, visto que só o meu avô trabalhava (era sapateiro de profissão), tive uma infância e juventude bastante complicadas, pois, apesar do carinho com que os meus avós sempre me trataram, a verdade é que fui criado sem saber o que era a presença efectiva de pai e mãe. Contudo – e olhando para trás – só posso agradecer à memória dos meus pais por, apesar dos trambolhões e das pancadas que a vida lhes deu – e que, certamente, eles deram na vida – não tenham optado por impedir o meu nascimento.

Assim, e apesar de ter comido, desde pequeno – e em grande parte da minha existência – o pão que o diabo amassou, ter podido vir ao mundo e fazer o meu caminho, é algo de tão bom, que não sei traduzi-lo em palavras. Ou sei dizer apenas: «Obrigado, mãe, por teres posto a minha vida à frente e acima da tua».

Não é fácil expor assim, publicamente, grande parte da minha vida. Talvez nem a necessidade de responder à insídia justifique esta auto-invasão da minha intimidade. Provavelmente, até alguns ouvintes acharão excessivo este relato, considerando que estas confissões são resposta desnecessária a comentários infelizes. Pode ser. Mas está feito.

Aliás, acho que combater o sectarismo e a intolerância exige e justifica esta quase imolação. Custa-me, acima de tudo, que, 33 anos após o 25 de Abril, nem todos nós tenhamos aprendido as regras democráticas essenciais e, principalmente, que se faça do insulto – ou da tentativa de insulto, porque não insulta nem ofende quem quer – uma das armas do debate democrático. Talvez por isso, certas ideias e certos ideais acabem incompreendidos e prejudicados, já que são defendidos por tão fracos defensores.

E é, também, por estas e por outras, que os cravos vão murchando, vão murchando, vão murchando…


Crónica de: João Carlos Pereira
Lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 24/01/2007.
(Não deixe de ouvir em 98.7 Mhz e participar pelos telefones 212277046 ou 212277047 todas as quartas-feiras entre as 09H00 e as 10H00).

17/01/2007

DEIXEM-ME RIR…

Intensificou-se a discussão sobre a liberalização do aborto até às dez semanas de gravidez, e já as mentiras, as meias verdades e os falsos moralismos, típicos das campanhas de caça ao voto, andam no ar. Ainda voltarei ao assunto, mas vou deixar, para já, uma nota suscitada pelos partidários do Sim.

Os que defendem que o aborto deve ser legal – melhor dizendo: livre e gratuito – até às dez semanas de gravidez, e crime a partir daí, continuam a esforçar-se por esconder (e, até, em negar) que apenas estão a pedir que o aborto seja mais uma medida contraceptiva, como a pílula, o preservativo ou qualquer outra. Ainda não me explicaram – e duvido que alguma vez o façam – em que milagrosa página da ciência aprenderam que o feto é natureza morta até às dez semanas (logo, uma coisa descartável, uma dispensável excrescência, algo inerte e sem sentido e, por isso, apto a ser atirado para um esgoto, forno crematório ou aterro sanitário, mas com toda a protecção e dignidade da lei) e, passa a ser, o mesmíssimo feto, coisa viva – e já humana – um segundo que seja após as dez semanas. Porque não gosto de mentiras, de meias verdades, ou de me sentir manipulado, tal bastaria, se outras razões não tivesse, para não votar como estes senhores e senhoras, que em nome da modernidade e dos avanços civilizacionais me pedem que faça.

E enquanto houver dinheiro no SNS para pagar o aborto, a quem, por razões económicas, sociais ou outras ainda mais íntimas e privadas (ou, até, pelo mais enternecedor desleixo ou bendita irresponsabilidade), enquanto houver dinheiro, dizia eu, para quem queira sujeitar-se ao tal «desmancho», ainda que se trate de grávidas absolutamente saudáveis, o Estado não tem dinheiro para pagar ou, sequer, comparticipar, uma vacina que evita uma doença que mata uma portuguesa por dia. Face à delícia do paradoxo, só peço que me deixem rir…

É isso mesmo. Comparticipar na prevenção do cancro do colo do útero, através de uma vacina que está a ser comercializada a 480 euros, é coisa que parece não caber nos horizontes do senhor ministro da Saúde, mais interessado em fechar urgências, maternidades e Serviços de Atendimento Permanente.

Como em tudo o que é mau, também Portugal mostra a mais alta taxa de incidência da Europa deste tipo de cancro, registando 900 novos casos por ano, sendo mais de 300 deles mortais. Veremos se o equilíbrio das contas públicas é mais importante do que a vida destas mulheres. E veremos se os grandes defensores da «dignidade» da mulher se organizam com a mesma força e o mesmo empenho pela gratuitidade desta vacina contra o cancro do colo do útero, esse, sim, um verdadeiro e dramático caso de saúde pública. Mas, sabendo eu como as coisas são, deixem-me rir…

E já que estamos a falar de questões de saúde, não podemos ignorar a morte de um homem de 54 anos, que teve a infelicidade de ser vítima de um acidente de viação, em Odemira, no distrito de Beja, num local que distava mais de cem quilómetros do hospital mais próximo e, em consequência, de uma Viatura Médica de Emergência e Reanimação que ali está sediada. A partir daqui, foram seis horas em bolandas, com o Centro de Orientação de Doentes Urgentes a decidir que bastava uma ambulância dos Bombeiros de Odemira para socorrer o sinistrado, quando o que estaria indicado era a Viatura Médica de Emergência e Reanimação. Levado para o SAP de Odemira, acabou por ter de esperar pela tal VMER. Ali, ao ser verificada a gravidade do caso, optou-se, só então, pela evacuação para Lisboa, com a respectiva espera pela chegada de um helicóptero e o longo voo até ao Hospital de Santa Maria, onde viria a falecer.

Como qualquer pessoa normal perceberá ao tomar conhecimento de um caso destes, estamos perante uma gritante situação de incúria, que se traduz, em última análise, num profundo desprezo pelas gentes deste país em geral e do Alentejo em particular.

É que, no caso que referimos, o serviço de neurocirurgia mais próximo de Odemira fica em… Lisboa! Aliás, não existem serviços de neurocirurgia a sul do Tejo, havendo apenas especialistas em alguns turnos nos hospitais de Faro e de Portimão.

E o senhor ministro da Saúde do governo do socialista Sócrates, tão rápido a encerrar maternidades, urgências e SAP’s, a atrasar a colocação de médicos, a aumentar as taxas moderadoras e a criar outras – e que, por estar absorvido em tão caritativas acções, ainda não teve tempo para se preocupar com esta gritante falta de meios numa das regiões mais desprezadas do país – vem agora prometer averiguações ao sucedido.

Deixem-me rir! Ó sôr ministro! O assunto está mais do que averiguado. Os factos falam por si. A assistência deficiente no distrito de Beja – e, de uma maneira geral, por esse país fora – só tem uma única causa: a política que V. Exa. e o seu governo – bem como os anteriores ministros da mesma pasta e respectivos governos – têm levado à prática. Por isso, averigue-se a si próprio, investigue-se, analise-se e, depois, se tiver uma estranha sensação de náusea, se lhe ocorrer um ou outro vómito, olhe, chame o INEM.

Mas onde o governo «trata da saúde» aos portugueses – e bem! – é quando lhes corrói o poder de compra. Tudo simples. Tudo sempre igual. Tudo muitíssimo eficaz, ano após ano. Decidem-se os aumentos salariais com base numa inflação ilusória, ficcional, que é sempre inferior à inflação que depois de verifica. Mecanismos de correcção que reponham o poder de compra assim perdido? Que corrijam a malandrice? Deixem-me rir…

E não sou eu que o digo, meus amigos, mas o INE, que confirma uma subida média dos preços, em 2006, de 3,1%. Como os aumentos salariais foram muito inferiores à subida dos preços para mais de 2 milhões de trabalhadores por conta de outrem (730 mil funcionários públicos, e mais de 1.300.000 empregados do sector privado), cujos aumentos salariais, nesse ano, oscilaram entre os 1,5%, no sector público, e os 2,5%, no sector privado, as contas são facílimas de fazer. Até Guterres as fazia!

Quem não dá por estes apertos no orçamento familiar é, entre outros, o senhor ministro da Defesa, que acaba de ser contemplado com um subsídio de 44,14 euros por dia, o que dá 1.324 euros por mês (ou seja: mais de 265 continhos) a juntar ao seu ordenado de 4.651 euros. Tudo junto, soma 5.971 euros, 1.200 contos, em números redondos na moeda antiga.

Parece que o senhor ministro declarou que a sua residência permanente é no Funchal, coisa de que não se duvida, mesmo sabendo-se que tem casa própria em Lisboa. Acontece, porém, que essa casa foi posta à venda em 2002, e que só em Fevereiro deste ano é que vai ser lavrada a escritura correspondente à venda.

Onde viveu – e vive – entretanto, o senhor ministro, é coisa que está num conveniente segredo, tanto mais que é ministro da Defesa, que sabe muito sobre os voos da CIA e outras questões melindrosas da política mundial, convindo, por isso, resguardá-lo da curiosidade do terrorismo internacional.

Seja como for, ainda bem que a lei prevê – muito bem previstas – estas situações, e nem sei se o tal subsídio mensal, equivalente a três salários mínimos, chega para compensar um abnegado servidor da Pátria por este cruel e sofrido afastamento da sua casinha no Funchal.

O que sofre um ministro, não é?

Mas, se não se importam, deixem-me rir, está bem?


Crónica de: João Carlos Pereira
Lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 17/01/2007.
(Não deixe de ouvir em 98.7 Mhz e participar pelos telefones 212277046 ou 212277047 todas as quartas-feiras entre as 09H00 e as 10H00).

11/01/2007

PAÍS MODERNO, COMPETITIVO E DESENVOLVIDO

Sempre que o nosso governo pretende explicar as medidas que asfixiam o bom povo português, vem dizer que elas são a única via para nos transformarmos num país, moderno, competitivo e desenvolvido. Assim como quem diz: «Para sermos felizes um dia que há-de vir, é preciso sermos muito infelizes nos dias que correm».

Transpondo esta ideia para a realidade do nosso dia-a-dia, devemos todos sentir uma enorme satisfação quando, por exemplo, sabemos de mais 533 despedimentos promovidos – em nome da nossa felicidade, pois então – por uma multinacional, a Yzaki Saltano. A empresa diz que talvez possa transferir cerca de 100 dos actuais despedidos para a sua fábrica de Vila Nova de Gaia, mas não diz que tem mais 400 despedimentos na calha, quando deixar de produzir as cablagens para o Toyota Avensis.

Seja como for, o que importa reter é que a preocupação dos trabalhadores despedidos em relação ao seu futuro, não tem qualquer razão de ser. Ouvimos os lamentos do costume, coisas do género: «Agora não sei o que vou fazer à minha vida. Tenho encargos para respeitar, como as prestações da casa e do carro, tenho um filho a estudar. Enfim, onde é que eu, com esta idade – e como está hoje o mercado de trabalho – vou arranjar emprego?». Ou como dizia outra: «Ficamos – eu e o meu marido – sem trabalho. Não sei como vai ser o futuro, mas vejo-o muito negro». Como se uma família fosse mais importante do que uma empresa ou, até, do que a própria economia. Gente ignorante, já se vê!

Ora, em vez destes lamentos parvos e nada patrióticos, os trabalhadores deveriam era juntar-se à porta da fábrica, erguerem bem alto bandeiras nacionais, enquanto entoavam, em coro emocionado, o hino nacional, assim como se faz quando joga a nossa querida selecção das quinas. Em suma: deveriam sentir-se orgulhosos por estarem a contribuir, com o seu singelo sacrifício, para a salvação da pátria e para sermos, no futuro, um país moderno, competitivo e desenvolvido.

E o mesmo deveriam fazer os cerca de 70 trabalhadores de uma fábrica de calçado, ali para os lados de Paços de Ferreira, que, para além irem engrossar o exército de desempregados, ainda não receberam os salários de Dezembro. Ou os mais de 200 contemplados com a mesma receita, de outra empresa de construção civil e obras públicas, que, lá para o Norte, resolveu fechar as portas, deixando o pessoal «a arder» com salários em atraso.

Protestam, refilam, lamentam-se. Mas esta gente não perceberá que o desemprego e os salários em atraso são situações absolutamente necessárias à construção de um país moderno, competitivo e, acima de tudo, desenvolvido? Onde está o patriotismo destes portugueses, que só pensam em regalias, privilégios, direitos e coisas absolutamente imorais, como emprego e salários, para depois desatarem por aí a comprar andares de 3 assoalhadas, mais um carro e, ainda por cima, porem os filhos a estudar?!

Novecentos médicos estão impedidos de iniciar o internato no Serviço Nacional de Saúde – e estas coisas acontecem mesmo no país do Choque Tecnológico – porque um erro informático está, há dois meses, a provocar o atraso nas colocações. Dizem as más-línguas – as línguas viperinas – que o erro não passa de um reles embuste para levar o Governo a poupar uns cobres, ainda que à custa de médicos e doentes, pois a colocação desses novos clínicos, se elaborada à mão, era coisa para um dia de trabalho. Este governo era lá capaz de uma pulhice dessas…

Sem nenhum sentido patriótico, nem compreensão pelas ciclópicas tarefas que os nossos governantes têm entre mãos, o presidente da Secção Regional da Ordem dos Médicos do Centro acusou o ministério de «desorganização e incapacidade» por este atraso na entrada ao serviço dos novos médicos internos. Cruel e insensível, acrescentou: «É inacreditável que num país europeu, no século XXI, numa colocação de internos que é feita da mesma forma todos os anos, possa haver uma justificação informática para tentar explicar um atraso de um mês no início da especialidade».

Não percebem os novos médicos, nem o responsável da Ordem, que, para sermos um país moderno, competitivo e desenvolvido, é imprescindível que se usem algumas artimanhas, pois o povo, bronco, ignorante e egoísta como é, não compreenderia as medidas tomadas, se elas não viessem embrulhadas numa desculpa qualquer.

Também as clínicas que fazem tratamentos de hemodiálise parecem não compreender as medidas governamentais para que sejamos, no futuro, o tal país, moderno, competitivo e desenvolvido de que vimos falando. Vejam lá, que querem receber a comparticipação correspondente a cada doente tratado, sem o que não aceitarão mais doentes enviados pelo SNS!

A coisa é muito simples – e explica-se assim: o governo decidiu não pagar, em 2007, às clínicas com quem tem acordos para tratamentos de hemodiálise feitos a doentes enviados pelo SNS, mais do que pagou em 2006. Assim, se – por exemplo – uma clínica, em 2006, tratou 100 doentes e, por isso, recebeu 5 mil euros, em 2007 não receberá nem mais um cêntimo, ainda que venha a tratar um número superior de doentes. É claro que o presidente da associação que representa estas clínicas já disse que, nesse caso, não serão aceites mais doentes, pois considera que, se «não há dinheiro, não há palhaços».

Que ingratidão! Anda o poder político há tantos anos – com justo destaque para o actual governo socialista – a encher a bolsa do sector privado que opera na área da Saúde, à custa dos utentes do serviço público, e agora, que se lhes pede um sacrificiozinho, voltam as costas desta maneira?

Ou será que sou eu que estou a ver mal a coisa, e a ideia é outra, ainda com mais alcance e maior visão política? Para sermos um país moderno, competitivo e desenvolvido não será conveniente despachar já para o jardim das tabuletas uma mão-cheia de doentes com insuficiência renal? Assim como quem vai limpando o país das coisas nefastas e incómodas, que só dão mau aspecto e custam dinheiro, muito dinheiro.

Mais! Não competiria, agora, aos doentes renais a necessitarem de hemodiálise, mostrarem o seu patriotismo e prescindirem, desde já, de todo e qualquer tratamento? Não estariam, assim, como bons portugueses, a aliviar o governo do peso que representam, imolando-se, patrioticamente, a um futuro de modernidade, competitividade e desenvolvimento? Que belo exemplo não seria esse para os restantes doentes crónicos, cujo egoísmo obriga o governo a não fechar tantos serviços como gostaria – e o nosso futuro como país moderno, competitivo e desenvolvido exige!

Queridos ouvintes! Portugueses que me escutam! Façamos, todos nós, um esforço nacional e patriótico em apoio às não menos patrióticas, justas e humaníssimas políticas do Governo PS, liderado pelo senhor engenheiro Sócrates. «A Bem da Nação», abdiquemos já de todo e qualquer direito – seja ele o direito ao trabalho, à remuneração, à educação, à saúde (ou outro qualquer direito) – para que os nossos queridos governantes, sem as forças do bloqueio que, pelo simples facto de estarmos vivos, representamos, possam, em finais deste século – ou, o mais tardar, em inícios do próximo – colocar Portugal entre os países mais modernos, competitivos e desenvolvidos da Europa.

Se ainda houver país, é claro.


Crónica de: João Carlos Pereira
Lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 10/01/2007.
(Não deixe de ouvir em 98.7 Mhz e participar pelos telefones 212277046 ou 212277047 todas as quartas-feiras entre as 09H00 e as 10H00).

03/01/2007

PAÍS NEGREIRO

Enquanto o primeiro-ministro já estava em gozo de umas merecidas férias no Brasil, a única unidade hospitalar capaz de efectuar transplantes hepáticos em crianças – localizada em Coimbra – encerrava por falta de meios humanos. O ministro da Saúde comprometeu-se a enviar os casos urgentes para o estrangeiro, talvez para as grávidas de Elvas que vão dar à luz a Badajoz, não se sentirem umas privilegiadas. E lá foi dizendo, pelo meio, que a coisa não é muito grave, porque os casos de transplante hepático nem sequer são muito elevados. Assim como quem diz: se morrerem alguns, também nem morrem muitos…

Na mesma altura, um português comum, residente em Pinhal de Frades, tinha alta do Hospital Garcia de Orta. Algumas horas depois – decorria a noite de sexta para sábado do último fim-de-semana, ou seja, estávamos praticamente nas vésperas da passagem de ano – esse português comum vem a falecer, apesar de, horas antes, os médicos do referido hospital terem decidido mandá-lo para casa, certamente porque consideraram que nada justificaria quaisquer cuidados clínicos – ou porque a cama era precisa para um caso mais grave. Já não viu 2007. Se Pinhal de Frades fosse perto de Badajoz, talvez ainda este nosso compatriota estivesse vivo. Assim…

Entretanto, seis pescadores morriam a cerca de 50 metros da praia, perto da Nazaré, alegadamente por terem tardado os meios de salvamento. Cinco dias depois, a pequena embarcação ainda ali está, na zona de rebentação, volteando ao sabor das ondas, faltando ainda recuperar dois corpos. Não sei porquê, mas parece que, em Portugal, as coisas mais simples se transformam sempre em coisas complicadas, e tudo resulta numa sucessão de falhanços, atrasos e infelizes coincidências. Ocorreu-me que se tivessem pedido ajuda a Espanha, talvez, apesar da distância, as operações de busca e salvamento tivessem sido eficazes. Por cá, dirá o governo, ter meios de salvamento em prontidão, 24 horas por dia, não se justifica, pois casos destes não acontecem todos os dias. «Também não morrem assim tantos pescadores, que justifique essa despesa, não é?», perguntará, iluminado, o pequenino ministro da Defesa. seguindo a mesma lógica do seu colega da Saúde.

Continuamos a olhar, distraidamente, para o ecrã da televisão, vendo uma sucessão de imagens sempre iguais, ano após ano, de Sidney a Tóquio, de Moscovo a Berlim, de Paris a Londres, de Lisboa e Porto ao Funchal, com gente, aparentemente feliz e esperançada, expressando os votos – e as vulgaridades – do costume, entre duas taças de espumante, e tendo, como pano de fundo, os vários espectáculos de fogo de artifício, algo a condizer com outros artifícios da época, como seja esse o de nos fazerem acreditar, todos os anos por esta altura, que é possível virem aí tempos melhores.

Este pensamento desperta-me para a dura realidade que vamos ter em 2007. A electricidade vai encarecer 6%. Como se este aumento não se repercutisse em vários outros preços, os transportes sobem 2,1% (só o bilhete simples vai subir mais de 8%). A água também não escapa aos fatídicos 2,1% da inflação prometida. Os combustíveis vão igualmente subir, mesmo que o preço do petróleo baixe, porque Sócrates ordenou que o imposto sobre combustíveis aumentasse. Arrastarão, na onda, tudo o que pudesse ter escapado à fúria «actualizadora». Os serviços postais subirão 1,8%. Quem tem empréstimos para compra de habitação, verá os seus encargos aumentarem mais de 6% (podendo ser muito maiores se, do estrangeiro, vierem indicações nesse sentido). Nos hospitais e centros de saúde entrarão em vigor novas taxas moderadoras (nas urgências e nos internamentos) e as taxas que já existem serão, também elas, aumentadas. Como se não bastasse tudo isto para infernizar a nossa vida, até o pão, meus amigos – até o pãozinho! – vai subir 20%.

Contas feitas, uma família composta por casal com dois filhos em idade escolar, com um rendimento mensal de 1.200 euros – e há muitas com este rendimento de apenas 240 contitos – vai gastar, em média, mais 62 euros do que em 2006, para comprar exactamente o mesmo. Porém, o seu rendimento só subirá 15 euros. Resultado: o seu poder de compra, que já era ridículo, leva um golpe de 47 euros, ou seja, 9.400$00.

Meticulosamente – impiedosamente – o governo fecha o cerco. Os ordenados não aumentam – ou aumentam abaixo da inflação. Aos míseros 1,5% dados aos funcionários públicos, há que retirar o aumento da contribuição para a ADSE (para já, 0,5%). E até os reformados serão afectados por esta medida. Milhões de portugueses vão ter um 2007 muito pior do que 2006. Os dois milhões de pobres que já existem ficarão ainda pior, e a esses outros se acrescentarão. Mas, meus amigos, esta é a passagem de ano habitual dos últimos 32 anos, só que bastante mais violenta e desumana.

Foi com estes pensamentos redemoinhando na cabeça que, nessa noite de 31 de Dezembro para 1 de Janeiro me fui deitar – e com eles adormeci. E sonhei.

Sonhei que, fartos disto tudo, milhões de portugueses, de trouxa às costas, seguiam, em largas e longas filas, a caminho da fronteira com Espanha. Eram, bem vistas as coisas, os émulos daqueles que, oriundos da África subsariana, se fazem ao mar em frágeis embarcações, rumando às Canárias ou, até, ao sul de Espanha, na busca de uma vida melhor. Também nós, fartos de sermos maltratados pelo poder político e económico, tínhamos decidido «dar o salto», aproveitando, aliás, uma das poucas vantagens (em teoria, claro) que a integração europeia nos trouxe: a livre circulação de pessoas e bens.

Não sei como acabou o sonho, mas sei que, de manhã, ainda estava sob a sua influência. E como também gosto de sonhar acordado, pus-me a pensar no que se passaria se acontecesse, realmente, algo semelhante. Que fariam Sócrates e Belmiros, Cavacos e Amorins, todos os Pachecos e Espíritos Santos se, de um dia para o outro, milhões de portugueses decidissem fazer-lhes um enorme manguito e partir à procura, no estrangeiro, de uma vida mais segura e menos indigna? Assim como quem diz: «Já que o país é quase todo vosso, olhem, fiquem com o resto. Desenrasquem-se!». Se todos nós pudéssemos, de facto – e não, apenas, em teoria – sair deste barco negreiro em que Portugal se está a transformar (a passos largos, e não «passo-a-passo») e procurarmos noutras paragens uma sociedade mais justa e decente – ou, dizendo melhor, menos injusta e indecente – como se governariam os políticos e aqueles que vivem do trabalho dos outros?

Fariam o que sabem fazer melhor. Usariam a força, ignorariam (ou alterariam) os tratados e, consequentemente, fechariam as fronteiras. Proibiriam a emigração. Porque sem a força do trabalho, meus amigos, a «parasitagem» emagrece, definha e morre.

Claro que estamos no campo da pura utopia. Os grandes senhores do capital financeiro, os grandes capitalistas, os donos dos grandes grupos económicos, os magnatas, ou os gajos da «massa» (fica à vossa escolha a designação que considerem menos esgotada), esses, se as coisas não correrem a seu gosto, podem mandar o país às malvas e assentar arraiais noutro país qualquer. Aliás, é isso que se passa com as deslocalizações. Foi por isso, de resto, que Belmiro de Azevedo disse, ainda não há muito tempo, que estava a pensar deixar de investir em Portugal, para o fazer no estrangeiro. (Ameaçou e colheu, como sabemos).

Mas esta democracia é mesmo assim. Enquanto Sócrates gozava uns dias no Brasil, seis pescadores morriam na Nazaré; e um português comum morria por falta da devida assistência médica; e o único serviço de transplantes hepáticos para crianças era encerrado; e a comunicação social anunciava os novos aumentos, como quem anuncia o tempo que vai fazer; e eu sonhava que os portugueses despertavam da sua crónica letargia e abalavam para Espanha à procura de uma vida decente, já que não sabem fazer algo muito mais fácil, que é unirem-se aqui, no seu país, e dizer, a uma única voz: BASTA!

E enquanto o não fizerem, este rectângulo de terra, que o mar todos os dias rói um pouco, não passará de um desprezível país negreiro.


Crónica de: João Carlos Pereira
Lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 03/01/2007.
(Não deixe de ouvir em 98.7 Mhz e participar pelos telefones 212277046 ou 212277047 todas as quartas-feiras entre as 09H00 e as 10H00).

1997, 2007 © Guia do Seixal

Visões do Seixal Blog Directório Informações Quem Somos Índice