30/11/2005

O Natal dos pobrezinhos

«Ordinariamente, todos os ministros são inteligentes, escrevem bem, discursam com cortesia e pura dicção, vão a faustosas inaugurações e são excelentes convivas. Porém, são nulos a resolver crises. Não têm a austeridade nem a concepção, nem o instinto político, nem a experiência que faz o estadista. É assim que há muito tempo, em Portugal, são regidos os destinos políticos. Política de acaso, política de compadrio, política de expediente. País governado ao acaso, governado por vaidades e por interesses, por especulação e corrupção, por privilégio e influência de camarilha, será possível conservar a sua independência?»

Isto não é prosa minha. É prosa de Eça de Queiroz, publicada em 1867 no jornal O Distrito de Évora. Por estar, 138 anos depois, tão actual como se tivesse sido escrita ontem, serve perfeitamente para dar o mote à nossa conversa de hoje. Vamos a isso.

Uma nossa ouvinte, que não é capaz de entrar em directo e expor publicamente os seus problemas neste espaço que a RB corajosamente abriu para esse fim, contactou-me há dias para que eu aqui denunciasse a difícil situação que está a viver. Trata-se de uma portuguesa reformada, com a «espantosa» pensão de 259 euros e 29 cêntimos (Vá lá, que há piores…). Com estes cerca de 52 contos, que a tanto não chega, faz face ao seu dia-a-dia, da forma que se calcula. Há tempos, sentiu que outro problema se estava a acrescentar aos muitos que a saúde e a idade – e a vida, bastante ingrata – já lhe acarretam, e lá foi ela à sua médica de família, que achou conveniente fazer-se uma ecografia ginecológica. De posse dos resultados do exame, marcou nova consulta e as notícias não foram as melhores. Havia, de facto, por ali «qualquer coisita», pelo que seria necessário aprofundar a questão. Foi-lhe, então, passada a credencial para a realização de nova ecografia ginecológica, mas desta vez com sonda vaginal.

Preocupada, foi de imediato marcar o exame, mas aí foi confrontada com uma notícia chocante. «Estes exames não são comparticipados. Podemos marcar, mas só se pagar 65 euros». Não marcou. Com as lágrimas nos olhos, disse-me que parte da pensão deste mês já foi para pagar uns «atrasados» na farmácia, e que os 13 contos que lhe custará o exame, só poderá arranjá-los quando receber o subsídio de Natal. Mas isso requer tempo de espera e a obtenção de nova credencial, através de nova consulta e, claro está, mais um mês de restrições e dificuldades E de medos. Ainda por cima, no mês do Natal, lamentou-se.

Perguntei-lhe porque não telefonava para o programa, porque não queria pôr o problema de viva-voz. Que não. Que se enervava. Depois, até poderiam pensar que estava a pedir ajuda, e isso ela não queria. Também não queria expor assim a sua vida. O que ela queria – e quer – é que se saiba bem que país é este, onde os governantes se enchem e se esgatanham para ocupar os poleiros, conseguem bons ordenados e reformas para si próprios, mas deixam as pessoas, como ela, sem condições para tratarem decentemente da sua saúde. Não quer esmolas. Quer justiça. Trabalhou desde os 14 anos, e de uma das firmas onde trabalhou, a Mundet, ainda lhe devem mais de 200 contos, mas o caso nunca mais se resolve em Tribunal, já vai para 20 anos. Qualquer dia morro, como outros já morreram, e o dinheiro fica lá. Mas que nem o seu nome eu dissesse, apenas que denunciasse o caso. E assim o faço.

Ao falar com esta mulher, lembrei-me que foi notícia, há dias, o facto de o Banco Alimentar Contra a Fome estar muito satisfeito por ter conseguido angariar 1.470 toneladas de alimentos para atenuar a fome aos portugueses mais carenciados. Tratava-se de um novo recorde, diziam os locutores, entusiasmados. Segundo os responsáveis pela instituição de caridadezinha, os alimentos vão ser distribuídos por 203.000 pessoas esfomeadas. Que bom! Que alegria! Que os pobres cresçam e se multipliquem, que as boas e caridosas almas que por aí há se encarregarão de cravar à populaça, para o ano, mais umas arrobas de comidinha. Mas… como há mais de 2 milhões de portugueses a viver em situação de pobreza extrema, a verdade nua e crua é a seguinte.

1.º – Que desses 2 milhões de portugueses com fome, 1.797.000 deles vão ficar a chuchar no dedo este Natal, salvo se houver por aí mais uma campanha de boas vontades;

2.º – Que 203 mil portugueses vão receber (se nada se perder pelo caminho) cerca de 7 quilos de alimentos. Uma fartura;

3.º – Que os portugueses carenciados fazem parte da paisagem, são uma coisa natural. Existem, e pronto. O que importa é atenuar-lhes a fome de vez em quando. Ficamos todos felizes. Eles, porque comem um bocadito menos mal uma vez por ano. A restante sociedade, porque é muito boazinha e até arranja forma de ajudar os desgraçadinhos;

4.º – Que a solução para combater a pobreza não passa por justiça social e por o Estado se preocupar com todos. Basta que, de vez em quando, se dêem uns quilitos de arroz aos pobres, assim como quem deita umas migalhitas aos pardais.

A piorar tudo isto, lembrei-me que a cidadã portuguesa que precisa de fazer uma ecografia ginecológica, com sonda vaginal, mas não tem dinheiro para a fazer, nem sequer é considerada pobre. Ganha a fortuna de 52 contos por mês! Não faz, por isso, aumentar a estatísticas da pobreza em Portugal. Deve ser rica – ou, quando muito, remediada – na óptica dos vários governos, sejam eles do PS ou do PSD.

É face a situações destas, reais, inquestionáveis – e, para mim, dolorosas e revoltantes – que me apetece perguntar ao senhor primeiro-ministro, ao senhor presidente da República, a todos os que, por muito ou pouco tempo, já assolaparam as nádegas nas cadeiras do poder nestes últimos 30 anos, mas também – e especialmente – àqueles que, com o seu voto inocente, ignorante, imbecil, ou criminoso contribuíram para levar ao poder tal gentalha, se estão contentes com esta realidade? Se, também eles, acham que a pobreza é uma coisa natural, uma espécie de fatalidade a que milhões de pessoas estão sujeitas, e que não compete ao poder político combatê-la e eliminá-la?

Parece que não. Suas excelências têm, obviamente, uma visão diferente do problema, pois só assim se compreende que, tanto esses milhões de portugueses que, reconhecidamente vivem na miséria, como outros milhões de esta mulher é um exemplo – e que durante toda uma vida trabalharam e contribuíram para os cofres do Estado – sejam hoje tratados como lixo, como uma excrescência incómoda, a quem, metódica e criminosamente, se vão reduzindo direitos, mesmo aqueles que a Constituição consagra e a Declaração Universal dos Direitos Humanos refere como sendo inalienáveis. E o direito à saúde é um deles – e dos mais importantes.

Pois… é a situação da economia, é o défice das contas públicas. Claro! Mas não há défice orçamental para a Ota, para o TGV, para – e nunca é demais repeti-lo – para os políticos de carreira (também ditos profissionais, a quem o povo prefere chamar chulos) se encherem, esses políticos que, como dizia Eça, «são nulos a resolver crises. Não têm a austeridade nem a concepção, nem o instinto político, nem a experiência que faz o estadista». E que «É assim que há muito tempo, em Portugal, são regidos os destinos políticos». Uma «Política de acaso, política de compadrio, política de expediente». Num «País governado ao acaso, governado por vaidades e por interesses, por especulação e corrupção, por privilégio e influência de camarilha». Não! Para eles não há défice, nem para os verdadeiros donos do país, os tais vinte por cento que detêm 46% do rendimento nacional. Contudo, teima-se em chamar a isto uma república e uma democracia, apesar de ser cada vez mais difusa a diferença prática entre esta democracia e a ditadura que acabou há quase 32 anos.

Conscientes de que, apesar de tudo, o povo já vai abrindo os olhos, começando a chamar os bois pelos nomes, do primeiro-ministro ao presidente da República, dos chefes dos partidos aos candidatos presidenciais, todos incluem nos seus discursos alguns parágrafos em defesa da classe política. Trata-se de uma operação de branqueamento tardia e, principalmente, inútil. Eles nunca se transformarão em pessoas de bem. A matriz genética destes políticos é, como acontece com o ADN, imutável. Nunca prescindirão dos seus privilégios, nunca saberão estar na política de forma limpa e escrupulosa. De resto, nem é para isso que o poder económico, o verdadeiro poder em Portugal, lhes permite governar.

Mas vem aí o Natal. Nas consoadas dos ricos, trocar-se-ão prendas milionárias, como chaves de Ferraris e de novas mansões em condomínios fechados, ou jóias com muitos quilates. Dar-se-ão graças a Deus pelo bem-estar em que vivem e pedir-se-á que o futuro seja, pelo menos, igual ao presente, o que, nestes tempos de crise, não seria mau de todo.

Noutros lares, como o da nossa amiga que precisa de 65 euros para fazer uma ecografia, apenas se pedirá que aquela manchazinha que a médica lhe viu dentro da barriga, possa esperar mais uns tempos. E, já agora, que não seja nada de mau.

Pois eu, apesar de não ser católico, vou pedir ao Menino Jesus que cresça depressa e volte cá abaixo com aquele chicote que, certa vez, usou para escorraçar do templo os vendilhões. Eu levo-o, depois, a São Bento, a Belém e a outros sítios que eu cá sei…

Vai ser um fartote! E se Cristo se cansar, arreio eu!

Crónica de João Carlos Pereira - Lida aos microfones da Rádio Baía em 30/11/2005

23/11/2005

Os negócios e o interesse público

Antes de entrar no assunto principal da nossa conversa de hoje, deixem-me dizer (mesmo que mal) um dos últimos poemas de Fernando Pessoa.

O Menino de Sua Mãe

No plaino abandonado que a morna brisa aquece / de balas trespassado /
- duas, de lado a lado - / jaz morto e arrefece.

Raia-lhe a farda o sangue / De braços estendidos / alvo / louro / exangue /
fita com olhar langue e cego os céus perdidos.

Tão jovem! / Que jovem era! / (agora / que idade tem?) / Filho único / a mãe lhe dera um nome - e o mantivera: / «O menino de sua mãe».

Caiu-lhe da algibeira a cigarreira breve / Dera-lha a mãe / Está inteira /
É boa a cigarreira / ele / é que já não serve.

De outra algibeira / alada ponta a roçar o solo / a brancura
embainhada de um lenço... / deu-lho a criada velha que o trouxe ao colo.

Lá longe / em casa / há uma prece: / "Que volte cedo, e bem!" /
(Malhas que o Império tece) / Jaz morto / e apodrece / o menino de
sua mãe.

Este poema ocorreu-me quando soube da morte do militar português que outras malhas, estas tecidas pelo império norte-americano, levaram até ao Afeganistão. É certo que entre o jovem louro do poema, que Fernando Pessoa imaginou (sei lá…) caído num campo de batalha, talvez nas trincheiras de Flandres, e o comando que agora morreu, há diferenças. O primeiro, simboliza os jovens forçados ao cumprimento do serviço militar obrigatório e que, depois, arrancados às famílias, foram mobilizados e embarcados como gado, para logo serem despejados na lama, como carne para canhão. O segundo, era um profissional que, voluntariamente, aceitou correr um risco e ser a mesma carne para canhão a troco de compensações financeiras aliciantes. E aqui se esgotam as diferenças, pois um e outro morreram ao serviço de causas que não eram nossas, embora a propaganda oficial, num e noutro caso, as tenha etiquetado de patrióticas, ao serviço de valores inquestionáveis e sublimes da nossa civilização ocidental, cristã, etc, etc, etc.

O soldado que agora encontrou a morte no Afeganistão, morreu (seguramente sem saber) ao serviço de uma causa ignóbil, que outro nome não se pode dar à causa que, sustentada em mentiras, leva a guerra a qualquer ponto do mundo onde a pilhagem dos recursos naturais (a sua causa verdadeira – e única) seja essencial à economia norte-americana, ou seja, aos potentados económicos que a controlam. Neste caso, falo, essencialmente, das jazidas petrolíferas e de gás natural e, complementarmente, das rotas fundamentais para a construção de oleodutos e gasodutos que hão-de, depois, encher os tanques e os cofres das multinacionais ocidentais, principalmente das norte-americanas.

Mas para Sócrates, o fim trágico do soldado português aconteceu ao serviço da pátria, da liberdade e da paz, e eu só não afirmo que Salazar diria o mesmo, pois, valha a verdade, o velho ditador não punha homens e recursos portugueses ao serviço de guerras estrangeiras, apesar do País ser, já nessa altura, membro da NATO. Sócrates mentiu. O sargento João Paulo Roma Pereira foi vítima de uma política contrária aos nossos interesses e contra o sentir do povo português, pois coloca as nossas Forças Armadas ao serviço da estratégia dos EUA e da NATO — responsáveis pela agressão ao povo do Afeganistão, pela ocupação do seu território e a instalação em Cabul de um governo fantoche (haverá outro termo para dizer isto?), feito à medida dos interesses norte-americanos.

Falam – Sócrates, o ministro da Defesa e, até, o Presidente da República – em compromissos e tratados internacionais. O único compromisso que podem invocar é o da vassalagem perante Bush e o imperialismo por ele representado. É o compromisso da subserviência e da cobardia. Nada mais está em causa. Nem os interesses nacionais (digam-nos quais, já agora…), nem os da paz, da liberdade ou da segurança nacional ou internacional. Embora sancionada mais tarde por uma resolução do Conselho de Segurança da ONU, a invasão foi da iniciativa dos EUA e aliados da NATO, pelo que as forças de ocupação estão de facto ao serviço de interesses geo-estratégicos imperialistas, e não da segurança, do progresso e da emancipação do povo afegão, como, de resto, a evolução da situação interna comprova, quatro anos volvidos.

Do Médio Oriente, aterremos na Ota e no seu futuro aeroporto. Li, este fim-de-semana, que o maior proprietário da zona pensa vir a facturar 500 milhões de euros (cem milhões de contos) com este projecto. Parece muito, mas a verdade é que esse valor não passa de uns trocos face ao valor total estimado para a construção do novo aeroporto, qualquer coisa como 3,6 mil milhões de euros, 750 milhões de contos na moeda antiga, isto sem contarmos com as derrapagens à portuguesa, que nunca ficam por menos de 50% do valor orçamentado. Uma loucura. Faço ideia das vezes que um certo senhor (conhecido pelo Senhor Cinco por Cento), já não lambeu as grossas beiças, ao fazer as contas ao que o seu partido, agora no poder, vai arrecadar quando começar (se é que já não começou) o toma-lá-dá-cá dos concursos e adjudicações!

A primeira conclusão a tirar, é que vem aí um chorudo negócio para alguém, como acontece com todas as grandes obras públicas. E a primeira pergunta a fazer, é a seguinte: perante tal investimento, o que vão lucrar quase 10 milhões de portugueses? Reparem que eu não pergunto o que vai lucrar o país, pois se pusesse a questão assim, entrariam nas contas os lucros dos grandes consórcio financeiros que vão financiar a obra, bem como o sector da construção civil e obras públicas, e disso, como todos sabemos, nada cabe aos quase 10 milhões de portugueses que sobram.

O único benefício que se vislumbra, a curto prazo, será a nível da criação de postos de trabalho, designadamente na área da construção civil – e esperemos que não aconteça como aconteceu com a construção da Ponte Vasco da Gama, onde proliferaram as empresas estrangeiras, que consigo trouxeram técnicos e mão-de-obra – especialmente as empresas espanholas.

Então, e depois? O que é que vai acontecer ao país quando tiver um aeroporto novo? Se não vamos todos viver melhor depois de um tão grande investimento, para que serve ele afinal?, perguntará você. Oiça bem, meu querido ouvinte: que melhorias a Ponte Vasco da Gama trouxe ao povo português, em geral, ou às populações da Área Metropolitana de Lisboa, em particular? Melhor e mais barato acesso a Lisboa, ou vice-versa? Isso é que era bom, não era? Mas não. A Ponte 25 de Abril continua a ser um funil cada vez mais caro e impraticável, e a travessia do Tejo foi escandalosamente inflacionada nas outras formas possíveis de a fazer – sem ser a nado, naturalmente.

Ah! É verdade: a Ponte Vasco da Gama foi de grande utilidade para quem teve dinheiro (muito dinheiro, diga-se) para construir no Parque das Nações, em Alcochete ou no Montijo, como refere – e muito bem – o Correio da Manhã de terça-feira. Mas os milhares de portugueses que, todos os dias, atravessam o Tejo para trabalhar ou estudar na margem oposta, o que ganharam eles com a Ponte Vasco da Gama? Nada. Absolutamente nada!

Assim vai ser na Ota. Alguns vão ganhar muito dinheiro com a construção do novo aeroporto, mas, depois de construído, a esmagadora maioria dos portugueses estará, precisamente, como está hoje, sem tirar nem pôr: a suportar uma crise – a continuação desta ou uma nova, porque é nas crises (e de crises) que se fazem ou consolidam as grandes fortunas. Estará a pagar, directa ou indirectamente o investimento, e a ouvir as desculpas do costume para justificar as políticas restritivas do governo que então tivermos.

Construir hospitais bastantes e decentes? E centros de saúde em vez de «centros de doença»? E escolas capazes? E equipamentos desportivos e culturais para servir a população escolar e formar homens e mulheres sãos de corpo e espírito? Garantir aos mais idosos e desprotegidos uma velhice tranquila e digna? Por outras palavras: dar prioridade às pessoas?

Bom, se isso desse mais dinheiro do que a Ota ou o TGV… Quer dizer: se isso fosse um bom negócio… talvez. Mas assim, há que dar prioridade ao negócio, há que dinamizar a economia, há que dotar o nosso tecido empresarial e o capital financeiro com uma solidez à prova de qualquer imprevisto, enfim, há que tornar a economia competitiva. Depois – e só depois – poderemos pensar no resto.

E isso vai ser quando, senhor primeiro-ministro? Quando é que nós – o tal resto – terá direito a qualquer coisinha?

Bom, não lhe posso dizer, mas há que fazer alguns sacrifícios até lá.

E Vossa Excelência, venerando Chefe de Estado, o que nos diz a isto?

Recomenda auto-estima, muita auto-estima. E mais sacrifícios, claro!

Bem, sacrifícios, sei o que é, tenho para dar e vender. Mas auto-estima… onde é que se compra disso?

Será no Continente? Não me admirava nada.

Não há artigo que o Belmiro não venda.

Crónica de João Carlos Pereira - Lida aos microfones da Rádio Baía em 23/11/2005

16/11/2005

Era só o que faltava!

Primeiro acto
A Unidade de Queimados do Hospital D. Estefânia, que funcionava há mais de 17 anos (e era a única existente no País), fechou recentemente, por decisão iluminada do ministro da Saúde do Governo socialista do engenheiro Sócrates. Segundo o notável governante, o fecho deve-se ao facto de aquela unidade funcionar sem condições. Acho bem. Porque é que as pessoas, especialmente as crianças, se queimam? Essas coisas só acontecem a quem brinca com o fogo, e os tempos de crise que vivemos não estão para brincadeiras. Aliás, cá para mim, este saudável princípio deve ser alargado a mais valências do Sistema Nacional de Saúde, a começar já por todas as urgências. De facto, há algum serviço de urgência que funcione bem? Nenhum! Zero! Então, toca a fechá-los!
E depois, quem é que aparece nas urgências? Os descuidados, os distraídos, os que abusam da bebida, da comida, enfim os que andam à chuva, e, tá claríssimo, molham-se. Ou então, os gajos que caem dos andaimes, porque são descuidados, e depois cá está o OGE para sofrer as consequências.
Ah! Esse não é o seu caso: você foi atropelado na passadeira, ou ia muito sossegado no seu carrinho quando um condutor sem carta, e ainda por cima com álcool a mais no sangue, lhe bateu em cheio? E depois? Se fosse com mais atenção, evitava chatices para si e para o erário público. Olhe, se fecharmos as urgências, quer apostar que as pessoas passam a ter mais cuidado? Assim facilitam, ou não é? Abusam dos seus privilégios, a que chamam direitos. Já esteve nas urgências a apreciar aquilo, já? É só bêbados, drogados, velhos e velhas que não souberam, na devida altura, comprar um bom seguro de saúde ao senhor Bagão Félix, e agora pensam que o Estado está ali de pernas abertas para lhes tratar das maleitas nascidas dos seus descuidos e da sua imprevidência. Comem, bebem, passeiam, trabalham, andam por aí na farra, e, se calhar, queriam que o Governo matasse a cabeça a arranjar verbas para lhes pagar os vícios…
Não meus amigos, a crise não se compadece com este tipo de despesas. Depois, se a funcionar mal, já se gasta um balúrdio com a Saúde, para funcionar em condições, bem… e só fazer as contas, como dizia o outro. Um dia destes, ainda queriam que se reduzisse os ordenados dos políticos ou os lucros da Galp e da Banca para pagar esses luxos. Por tudo isto, se a Unidade de Queimados funcionava mal, o remédio não era pô-la a funcionar bem. Era só o que faltava!

Segundo acto
O sistema de defesa oficiosa dos cidadãos sem recursos económicos para pagarem a um advogado que os represente em tribunal, foi há dias posto em causa pelo brilhante ministro da Justiça do Governo socialista do engenheiro Sócrates. Segundo o ilustre governante, o sistema não está em condições de garantir aos cidadãos uma boa defesa. Então, segundo parece, o melhor é não garantir nenhuma. E sempre se poupavam umas coroas…
É assim mesmo! Ah, ganda ministro! Isso é que é tê-los no sítio! De resto, se a escumalha que não tem dinheiro para ter acesso à Justiça não tiver apoios, o mais certo é não se meter em alhadas. Haviam de ver como os tribunais se desentupiam logo e a Justiça funcionava sobre rodas. Ora bem!
Assim, não. Qualquer borra-botas pensa que pode ser tratado como os homens de bem, bem nascidos e melhor criados. Não, meus amigos. Sempre houve ricos e pobres, e, se assim é, se a sociedade assim está dividida, (certamente por vontade divina, a que os Bispos e os vários Sumo Pontífices nunca eficazmente se opuseram – e até, implicitamente abençoaram) porque há-de um governo dos homens, por mais democrata e socialista que seja – ou que diga sê-lo – contrariar esta ordem natural das coisas?
Se o acesso à justiça fosse igual para todos, seria uma balbúrdia, uma promiscuidade enorme, seria, ao fim e ao cabo, uma injustiça dos diabos. Já se viu, por exemplo, um pedófilo fino e muito bem encostado ao poder, a conviver, no mesmo estabelecimento prisional, com um pedófilo oriundo da escumalha? Admitir-se-ia uma coisa destas? Nem pensar!
Aliás, todos nós percebemos que, para um miúdo, ser abusado por um finório cheio de massa e todo perfumado, não é bem a mesma coisa que aguentar-se com um javardo da plebe, que fede por todos os poros. Até as chibatadas estimulantes, ou as palmadas excitantes que um e outro dão, têm efeitos diferentes. Haja mas é juizinho e cada macaco no seu galho, que é assim que a nossa sociedade está estruturada, isto faz parte da nossa cultura feudal e católica, apostólica, romana. Justiça de borla? Justiça igual para todos? Era só o que faltava!

Terceiro acto
O Salário Mínimo nacional vai subir 3%. Segundo o magnânimo primeiro-ministro do Governo socialista, este aumento de 11 euros e 20 cêntimos por mês (isto é: 37 cêntimos por dia, ou seja, 74$00 na moeda antiga) é o possível, porque não há condições para as empresas pagarem mais. Muito satisfeito, o engenheiro socialista, com aquela vozinha esquisita, cheia de requebros e entoações afectadas, explicou aos portugueses que se trata de um aumento superior à inflação prevista, o maior desde que há memória.
O que é se compra com 37 cêntimos, hoje em dia, confesso que não sei, mas só se for uma pastilha elástica para enganar a fome. Assim de repente, só me lembro de duas coisas que, por enquanto, ainda custam menos de um euro, mas mais de 50 cêntimos: a bica e alguns jornais. Tudo o mais nos custa acima dos antigos cem escudinhos. Mas o que eu sei é que a inflação prevista é uma ficção, uma fantasia, um logro, uma mentira descarada. Primeiro, porque a inflação que se prevê é sempre inferior à inflação que, depois, se divulga. Segundo, porque a inflação que se divulga nunca é a inflação real, pois essa, meus amigos, ultrapassa sempre – e em muito – os números divulgados. E nunca – mas nunca – os governos tiveram o cuidado (isto é: a decência) de corrigir estas contas. É roubo, é assalto descarado às bolsas dos portugueses – aos seus estômagos, à sua saúde, à educação dos seus filhos – porque os pressupostos que estiveram na base dos miseráveis aumentos não foram, afinal, respeitados. Ou seja: o Governo nem a sua palavra respeita, e fá-lo com o à-vontade de quem sabe que é intocável. De quem sabe que a escumalha não é capaz de lhe meter o dedo no nariz e dizer: BASTA! Também… era só o que faltava.

Quarto – e último – acto
O povo, essa «enorme e possante besta», no dizer de Erasmo, como aqui lembrámos há semanas, limita-se, pois, a comer e a calar. Enquanto isso, o ministro da Justiça nomeou uma tal Susana Isabel Costa Dutra para assessora, com a notável e nobilíssima função de manter os conteúdos da página oficial do MJ na Internet. Para tal, a graciosa “girl” vai receber 3.254 euros por mês, mais subsídio de refeição, sendo que, em Junho e Novembro de cada ano, em vez desses 650 continhos, recebe 1.300.
Jorge Sampaio, cheio de furores republicanos, comprados no Bazar Chinês que abriu, há meses, mesmo ali ao lado dos pastéis de Belém, e depois de meditar longamente sobre questões de ética democrática, coisa que lhe começou a dar após as trapalhadas de Santana, ainda não disse nada sobre este nefando acontecimento, o que muito se estranha e lamenta. Já há quem diga, por isso, que o venerando Chefe de Estado é um daltónico selectivo, pois só vê trapalhadas se elas vierem pintadas em tons cor-de-laranja, tendo, pelo contrário, uma incapacidade absoluta para distinguir as que, por mais gigantescas que sejam, apareçam pintadas de cor-de-rosa.
Por isso, um amigo meu transexual, que trabalha no SIS (Serviços de Informação e Segurança), conhecido pelo nome de guerra de Mata Hari, fez-me chegar às mãos uma nota anónima que alguém deixou sobre a secretária de Sua Excelência. Diz ela – a nota:

«A propósito de contenção na despesa pública e do despacho do Ministro da Justiça, que nomeou uma assessora para manter o site do MJ, cumpre dizer que, se estivéssemos num país a sério, o Ministro, no mínimo, arriscava-se a ser chamado à pedra por forte suspeita de delapidação de dinheiros públicos.
De facto, o Ministério da Justiça tem uma coisa chamada (Instituto das Tecnologias de Informação na Justiça). Ocupa um edifício de 7 ou 8 pisos. Trabalham lá cento e muitas almas, a grande maioria delas, supostamente, especialistas na área da informática. Tem um organigrama cuja dimensão pede meças aos gigantes da informática, tipo IBM, Microsoft, Oracle e outras. Aquilo tudo fica ao Estado, que é como quem diz, ao nosso bolso, em muitas dezenas ou centenas de milhares de contos por mês. Então (e aqui até estou a dar um grito capaz de acordar a vizinhança) naquela mastodôntica estrutura de tecnologia informática não haverá um raio de uma alminha, uma só que seja, que saiba o suficiente de web sites para dar uma mãozinha na manutenção de um site tão indigente como o do MJ, sem se gastar nem mais um tostão? Foi preciso contratar uma assessora a quem pagam mais de 600 contos por mês só para "manter" o site? Para que raio serve o ITIJ se não for para coisas básicas e comezinhas como manter um site do próprio Ministério de que depende?
Isto é gravíssimo e a solução só pode ser uma de duas: ou o Ministro emenda a mão, demite a assessora e incumbe o ITIJ de manter o site, visto que é quem tem o dever legal de o fazer, ou então extingue o ITIJ imediatamente, posto que parece não servir para coisíssima nenhuma, nem mesmo para executar uma tarefa tão básica como seja manter um simples site como o do MJ – coisa que qualquer estudanteco de informática estaria disposto a fazer à borla, só para manter o treino e fazer currículo... As duas coisas – a assessora (salvo seja, que nada tenho contra a senhora) e o ITIJ – é que não podem continuar!

Cumpre-me apenas acrescentar, para que se façam as devidas comparações, que o salário ilíquido de um Juiz do Tribunal de 1.ª Instância (em início de carreira) é no valor de 2.355 euros (mais ou menos 470 contos) portanto inferior ao salário da dita assessora, que não tem, designadamente, nem a responsabilidade funcional, nem o risco, nem as restrições pessoais e estatutárias, de exclusividade, obrigação de residência e restrição de ausência da área de circunscrição, a que todos os Juízes estão sujeitos. É esta a valoração que se faz em Portugal dos titulares do órgão de soberania Tribunais...».

Fim de citação!

Despedir a assessora? Extinguir o Instituto?

Ó meus amigos… Era só o que faltava!

Crónica de João Carlos Pereira - Lida aos microfones da Rádio Baía em 16/11/2005

09/11/2005

Os chicos-espertos

Na segunda-feira passada, às seis e meia da manhã, cheguei ao Centro de Saúde do Seixal, com o objectivo de conseguir uma consulta para um familiar. Ao chegarmos, já perto de 20 infelizes portugueses se abrigavam sob o telheiro, suportando, conforme podiam, uma temperatura que rondava os cinco graus.
Na porta, uma folha de papel manuscrita informava que estariam ausentes quatro médicos e, para compor o ramalhete, ainda se informava que não haveria SMAC, isto é, o serviço de apoio às consultas, para aqueles doentes que não têm médico de família ou cujo médico faltasse. À medida que o tempo passava, as pessoas foram-se aglomerando naquela sala de espera terceiro mundista e, naturalmente, quem chegava tinha dificuldade em aperceber-se do aviso afixado.
Às oito, quando as portas se abriram, e o magote se acotovelava nas exíguas instalações para tirar a sua senha (e diga-se que o fez com um civismo exemplar e uma auto-organização digna de apreço, sem chico-espertismo de qualquer tipo), começaram as decepções. Um doente, com uma perna engessada, e que se deslocava com o auxílio de canadianas, foi então confrontado com a ausência do seu médico. Como a burocracia reinante o obriga a recorrer ao Centro de Saúde para renovar a baixa, pois o instituição de saúde que acompanha o seu caso, não pode, por misteriosas e inexplicáveis razões organizacionais, fazê-lo, via-se num beco sem saída. Nem médico de família, nem serviço de apoio. Quando me vim embora, ainda o desgraçado lá ficou à espera de solução.
Mas outros utentes, que chegavam constantemente na esperança de conseguir uma consulta, batiam em duas barreiras intransponíveis: ou o seu médico não tinha vindo… ou as consultas já estavam todas preenchidas. Mas o mais caricato é que, às nove da manhã, já se começava a formar a fila para a consulta da tarde, cujas senhas – e oiçam bem esta – só estariam disponíveis a partir do meio-dia e meia hora. E a isto se chegou, como se fosse a coisa mais natural do mundo.
Enquanto esperava que o meu familiar fosse atendido, dei uma volta em redor do edifício, integrado num enorme espaço que pertenceu à antiga corticeira Mundet, pois tanto o terreno como as instalações eram da antiga Caixa de Previdência dos Trabalhadores daquela empresa. Hoje, delimitado por uma rede mal amanhada (e cheio de erva viçosa que as chuvas de Outono fizeram nascer da terra sequiosa, substituindo o matagal seco que, ainda há menos de dois meses por ali se via), aquele espaço daria para suportar, pelo menos, cinco edifícios iguais, em área, e este que, criminosamente, os homens que têm mandado neste país teimam em oferecer à população.
Fosse isto um país governado por gente competente e séria, que não estivesse na política para se amanhar e garantir a vidinha para si e para os seus (veja-se o caso da Portugal Telecom, onde ex-governantes estão encaixados, sem esquecermos toda a sorte de políticos e seus promissores rebentos), mas fosse isto um país decentemente governado, dizia eu, e teríamos aqui no Seixal – e nos vários «seixais» espalhados de Norte a Sul, sem esquecer as Ilhas – centros de saúde dignos e capazes de cumprir uma das primeiras disposições constitucionais – e um dos mais importantes e iniludíveis direitos humanos – que é o direito à saúde.
Não há dinheiro, repetem eles sem cessar. E eu repito, também sem cessar, que há dinheiro, sim, senhor, mas é para os que não precisam de ir aos centros de saúde. Há dinheiro, também, para construir 10 novos estádios de futebol. Há dinheiro para novos aeroportos, há dinheiro para o TGV, tal como houve dinheiro para a Expo´98. Há dinheiro para as fachadas que, entre outras coisas, escondem sempre grandes negócios, o que significa, logo, grandes comissões e melhores luvas.
Há dinheiro para pagar rios do mesmo aos senhores deputados e governantes que acabam as suas funções. Segundo a lei que, eles próprios cozinharam e aprovaram, quem deixa funções de deputado ou governante, recebe um mês de salário por cada seis meses de funções na Assembleia da República ou no Governo, ou seja, cerca de 1.400 contos por cada ano de sacrificada e generosa – e sempre desinteressada – entrega à causa pública. Assim, se o sacrificado servidor do povo e do país o tiver sido durante 10 anos, recebe vinte salários (68.980 euros, qualquer coisita como 14 mil contos). Feitas as contas, com os deputados que saíram em Fevereiro deste ano, o Erário Público desembolsou mais de 2.500.000 euros. Isto não é lucro rápido nem fácil, isto não é chico-espertismo, não senhor, esta coisa de eu fazer a lei de acordo com os meus interesses e apetites.
No entanto, há ainda aqueles que têm direito a subvenções vitalícias ou pensões de reforma (mesmo que não tenham 60 anos, e muito menos 65). Estas são atribuídas aos titulares de cargos políticos com mais de 12 anos de função.
Entre estes ilustres reformados do Parlamento encontramos figuras como Almeida Santos, que se reformou com 4.400 euros, ou seja, com mais de 880 contos por mês; Medeiros Ferreira, Manuela Aguiar, Pedro Roseta, Helena Roseta, Narana Coissoró, e Vieira de Castro, foram corridos, os pobres coitados, apenas com 2.800 euros mensais, isto é, mais de 560 contos. Álvaro Barreto, abicha 3.500, euros, o que dá 700 contos mais uns pós por mês. E isto são apenas alguns exemplos. Chico-espertismo? Não! Que ideia…
Quanto aos ilustres reintegrados, encontramos os seguintes:
Sónia Fortuzinhos, Ana Benavente, Maria Santos e Luís Nobre Guedes, qualquer deles com 12.500 contos por 9 anos e meio de serviço; Paulo Pedroso, 9.600 contos por 7 anos e meio de serviço; David Justino, 7.600 contos por 5 anos e meio de serviço. E deixemos a lista por aqui, que não há tempo para mais. Mas a maioria dos outros deputados que não regressaram e estiveram na AR somente na última legislatura, isto é, 3 anos, isso foi o suficiente para terem recebido cerca de 20.000 euros (4 mil contos) cada. Mais uma vez, aqui não há chicos-espertos nem lucro fácil.
Não! O que eu vejo é uma chusma de oportunistas e de autênticos parasitas do povo português que, desde finais de 1975, reparte entre si o poder e os respectivos privilégios, e que tem agora o supremo descaramento de pedir um ainda maior apertar do cinto aos portugueses (aos portugueses do costume, refira-se), àqueles que, com o seu trabalho e os seus sacrifícios lhes sustentam os vícios. E diz o Presidente da República, sem esboçar um sorriso, ou sem que a voz lhe falhe por pudor ou rebate de consciência, que o país está cheio de chico-espertismo no negócio do turismo, de gente que só vê o lucro fácil e rápido. Ao mesmo tempo, sua excelência manifesta as suas preocupações por a classe política, à qual pertence, ser olhada de esguelha pelos portugueses, que dela têm uma opinião nada abonatória.
Não é chico-esperto o governador do Banco de Portugal, que fixa o seu próprio ordenado, e que veio agora – e finalmente – a lume? Este socialista, que passa o tempo a aconselhar os governos a cortarem salários e direitos, «só» ganha 280 mil euros anuais (56 mil contos, fora as mordomias como carro e gasolina, cartão de crédito, telemóvel, etc, etc.). Para que se perceba a dimensão deste escândalo, diga-se que Alan Greenspan, o homem que, nos EUA exerce o cargo equivalente, só recebe 180 mil dólares, o que dá 30 mil contos. «Tá bem», diz você. «Mas nós somos um país grande e rico, e os EUA são um país pequeno e pobre…»
Tem razão, caro ouvinte. Pois se até a reforma de um administrador da Caixa Geral de Depósitos, como Mira Amaral, é superior ao ordenado de Alan Greenspan, porque haveria Constâncio de se armar em chico-parvo?

Mas se o povo aguenta… é porque gosta. Ou não é?

Crónica de João Carlos Pereira - Lida aos microfones da Rádio Baía em 09/11/2005

02/11/2005

Um país dos diabos

Nasceu a infanta, e os serviços noticiosos da manhã de segunda-feira não falavam doutra coisa. Bom, também é um exagero dizer a coisa assim, mas a verdade é que os canais de notícias da TV, que comecei a ouvir bem cedo, abriram com tão congratulante acontecimento. D. Letízia dera à luz uma menina, alguns dias antes do esperado, facto que, diziam eles, era de especial relevância para Espanha e para o mundo. Diligentes, as estações passavam o príncipe (D. Filipe de várias coisas e mais coisas a seguir ao nome, salvo erro com Bourbon e Astúrias pelo meio), falando ao mundo e dando conta da sua e – pelos vistos – nossa felicidade. Aleluia! Dêem-se hossanas ao Senhor por ter-se dignado permitir que o trono espanhol já tenha ocupante assegurado, salvo qualquer impensável percalço. Aliás, agora a dúvida maior que assalta Espanha, Portugal, a Europa a cristandade e o mundo, é saber-se se a Constituição espanhola vai ser alterada de modo a permitir que esta infanta real seja, um dia, rainha, mesmo que suas altezas reais, Filipe e Letízia, dêem ao mundo mais filhos, e todos eles machos – ou varões, como soe dizer-se em linguagem menos plebeia.

E disse o príncipe (isto é: sua Alteza Real), que espera poder transmitir à filha os valores que recebeu, de modo a que ela esteja preparada para enfrentar, pela vida fora, os muitos desafios que certamente lhe serão colocados. «E bem há-de precisar, coitada», pensei eu. «Com a crise que por aí vai, e como as coisas se estão a pôr por todo o lado – desemprego, baixos salários, gripe das aves, por exemplo – e mesmo vivendo em Espanha, é preciso ter alguma sorte e engenho para conseguir uma vidinha desafogada». Coitado do príncipe, já tão preocupado com o futuro da filha e a sua sobrevivência nesta selva em que se transformou o nosso quotidiano. E então, quando ela chegar à idade escolar, lá virão as despesas com os livros, as propinas, os transportes, enfim… um rol de preocupações que só quem é pai é que sabe. E se a infanta adoecer (que o diabo seja surdo, cego e mudo), o dinheirão que suas altezas não terão que despender para tratar da real infanta!

«Olha», disse eu em voz alta, «e muita sorte tens tu por ela ter nascido aí, em Espanha. Pensa bem no que seria se a cachopa tivesse nascido em Portugal, Tinhas preocupações a triplicar». «Cachopa?! Tu estás a chamar cachopa à infanta?!», repreendeu-me a minha mulher, como se a linguagem desrespeitosa que utilizei pusesse em perigo a nossa vida. «Infanta D. Leonor», corrigi eu, envergonhado pela indesculpável desconsideração, e olhando em volta, esperando que nenhum microfone ou satélite norte-americano tivesse detectado o desaforo.

Deleitado com este Natal antecipado, adormeci e comecei a sonhar com rosados príncipes e princesas, que logo se transformaram em anjos louros e querubins, esvoaçando entre paisagens celestiais. E ouvia, envolvendo-me, hinos mais belos que os mais belos que Beethoven, Berlioz, Wagner ou Verdi alguma vez compuseram. E decorria assim o meu sonho de azuis, ouros e pratas, todo ele perfumado por odores paradisíacos, quando o tempo se turvou e a luz divina deu lugar às labaredas infernais. Foram-se os cânticos e os hinos, e só o crepitar de fogos se fazia ouvir, de tal modo que me julguei caído em Portugal, no meio dos incêndios estivais.

Mas não! Não era assim tão mau! Estava, apenas, no Inferno. E em cima de um monte de lava, o Diabo em pessoa, de microfone à frente, com o jornal Público nas mãos, dizia, radiante:
«Foram anulados os depoimentos das duas principais testemunhas contra Fátima Felgueiras, por decisão aparente do Tribunal da Relação de Guimarães, mas que eu, com os meus poderes, inspirei. Por isso, o julgamento foi adiado. Esta marcha-atrás no processo decorre do facto de aquelas testemunhas, que desde o início colaboraram activamente com as autoridades, terem passado à condição de arguidos, uma decisão que foi tomada pelo Ministério Público, já depois da Polícia Judiciária de Braga ter concluído o inquérito. Não serviu de nada, por isso, que no início de 2003, o Procurador-Geral da República tivesse sido alertado para indícios de conivência do MP com a autarca», disse, com uma gargalhada, Belzebu.
E continuou: «A decisão de transformar em arguidos as principais testemunhas partiu de mim, e foi levada a efeito pelo procurador adjunto de Felgueiras - cuja intervenção no processo até aí se limitara a actos de mero expediente - e caiu como um balde de água fria na estratégia da PJ, que por diversas vezes tinha sugerido a aplicação àquelas testemunhas do estatuto de arrependidos. Eu sei que no início de 2003, o Procurador-Geral foi alertado para as "fortíssimas pressões de diversas entidades colectivas públicas e privadas", numa exposição/requerimento remetida pelo escritório do advogado Garcia Pereira, como representante das testemunhas que depois passaram a arguidos. Queriam que o processo fosse avocado pelo Procurador-Geral».
Apesar do calor, eu tremia como varas verdes. Mas o Demónio não se calava. E dizia: «Eles bem denunciaram as pressões de que eram alvo aquelas testemunhas – e que recentemente a PJ também denunciou –, relatando factos que envolviam um dos mais altos quadros do MP, que desempenhava as funções de secretário-geral da Procuradoria-Geral da República na época em que foi remetida ao antigo Procurador-Geral, Cunha Rodrigues, a denúncia que deu origem à investigação do "saco azul" do Partido Socialista.
Esse magistrado - que actualmente é o representante de Portugal no "Eurojust" (organismo que coordena os departamentos da luta contra a corrupção no espaço europeu), depois de ter sido secretário de Estado da Justiça durante um dos governos do PS liderados por António Guterres - é suspeito de ter fornecido a Fátima Felgueiras uma cópia da denúncia enviada a Cunha Rodrigues, numa altura em que a PJ de Braga não tinha iniciado sequer as investigações».
Nessa altura, não me contive. «O quê!? O magistrado suspeito está ligado ao PS?», perguntei eu ao Diabo.
Ele olhou-me com um sorriso mordaz e fez o favor de esclarecer: «Claro! E também não sabias que o tipo tinha antes estado colocado no Tribunal de Felgueiras, altura em que fez amizade com o casal Fátima Felgueiras/Sousa Oliveira? Ou, como diz aqui no jornal, que o documento chegou às mãos da autarca durante uma deslocação do magistrado a Felgueiras, em 21 de Janeiro de 2000, para participar num jantar de homenagem a um funcionário judicial, facto que foi registado pela imprensa local?».
«Não», respondi eu com a maior sinceridade. «És um ingénuo, um tanso, um lírico, o que quiseres», atirou-me o gajo. E continuou: «Na exposição remetida a Souto Moura foi-lhe ainda dado conhecimento "de conversas telefónicas ocorridas à porta do Tribunal de Felgueiras", na madrugada em que a autarca saiu em liberdade após a detenção para primeiro interrogatório, "em que o Sousa Oliveira comunicava o seguinte: "Quanto ao processo, está tudo controlado aqui em Felgueiras e vamos resolver isto. Vai tudo correr muito bem, pode ficar descansado". Segundo relata ainda o documento, Sousa Oliveira explicou de seguida ao assessor de imprensa da Câmara de Felgueiras que acabava de falar para Bruxelas, com o dito magistrado, concluindo: "Está tudo tratado e vai correr tudo muito bem"».
O Diabo atirou o jornal para uma das fogueiras, esfregou as mãos, voltou-se para mim e fez-me sinal para me aproximar. Deve ter sido o susto que me acordou.
«Pões-te para aí a dormir, e nem ouves as notícias, homem!», disse a minha mulher, em tom crítico. E eu: «Já sei que nasceu a infanta, mulher. E depois? Quantos milhões de crianças não nasceram hoje e, se calhar, metade não chega aos cinco anos de idade? Quero lá saber da infanta!».
«Não é isso!», corrigiu ela. «É o caso da Fátima Felgueiras, que vai dar em águas de bacalhau. Para já, voltou tudo à estaca zero».
Fechei os olhos e pus-me a pensar que acabara de decifrar um mistério bíblico: agora eu sabia a localização geográfica do Inferno. E tomei logo a decisão que se impunha: informar o Papa e, depois, apanhar a jeito o Presidente Jorge Sampaio para lhe dar conhecimento desta trapalhada toda.
Só espero é que ele trate as trapalhadas todas da mesma maneira. As cor-de-laranja… e as cor-de-rosa.

Crónica de João Carlos Pereira - Lida aos microfones da Rádio Baía em 02/11/2005

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