22/03/2006

O caldeirão já ferve

Três anos passados sobre a invasão e ocupação do Iraque, o mundo assemelha-se a um imenso caldeirão atulhado de ingredientes explosivos, fervendo sobre uma fogueira descontrolada. Ninguém sabe quando se dará a explosão, mas ninguém duvida que, mais tarde ou mais cedo, ela vai acontecer. E nos últimos meses – e especialmente, nas últimas semanas – a crise mundial conheceu desenvolvimentos preocupantes, agravando-se perigosamente.

Incapazes de resolver os problemas económicos e sociais nascidos da própria natureza do sistema capitalista, os governos dos chamados países ocidentais, liderados pelos EUA, parecem caminhar para a velha solução da guerra total, cegueira que já custou à humanidade, só no último século, algo à volta dos cem milhões de vidas humanas. Pior do que então, e com o poder avassalador das armas de hoje, cuja capacidade destruidora os EUA não se cansam de aperfeiçoar, é a própria vida no planeta que está em risco.

Com o Irão cada vez mais na mira dos nazis norte-americanos, a corda estica-se até aos níveis da loucura. Convém recordar que o apetite não é novo, já que os EUA apoiaram com armas e bagagens (muitas delas proibidas) o Iraque de Saddam Hussein – exactamente este Saddam que agora julgam como criminoso de guerra, e não outro Saddam qualquer – apoiaram-no, então, contra o Irão da época do Ayatollah Khomeini. Agora, na sua vertigem alucinada para submeter o mundo inteiro aos seus ditames imperiais, vão tão longe que já se atrevem a enviar recados ameaçadores à China e à Rússia.

Na Bielorrússia, país que se recusa a integrar a NATO e a alinhar na corte de serviçais que presta vassalagem aos EUA, e cujo presidente foi reeleito com mais de 80% dos votos, tal como sucedera em eleições anteriores, a UE e os EUA estão a tentar a receita que usaram na Ucrânia e na Geórgia: financiamento e apoio descarado ao candidato da oposição e, face à derrota, fomentar a contestação com base em supostas irregularidades. Se os exemplos já citados se repetirem, a coisa só pára quando o golpe de estado se concretizar. Esclareça-se que um dos «crimes» imputados ao regime bielorruso é recusar-se a privatizar sectores chaves da economia. Que horror! Negar sangue fresco aos vampiros!

Mas qual é a verdadeira razão do desvario norte-americano? Com uma economia incapaz de sustentar o país – e de se sustentar a ela própria – a chamada nação mais poderosa do mundo é, de facto, uma nação que consome muito mais do que aquilo que produz, e que entraria rapidamente em colapso se a desligassem da máquina que parasita as riquezas do mundo inteiro. Com uma dívida externa gigantesca, e com défices do Orçamento e Comercial ainda maiores, que se agravam em cada segundo que passa, os loucos fanáticos que controlam o poder político e o poder económico nos EUA (que são os mesmo que têm o dedo no gatilho e mexem os cordelinhos no Pentágono) acreditam que só o domínio absoluto do planeta pode resolver os seus problemas. Outros pensaram o mesmo, os últimos dos quais há cerca de 60 anos, com o resultado que sabemos…

Entretanto, no Iraque – porque os desejos são uma coisa, e a realidade, outra – os norte-americanos vão-se atolando lenta e inexoravelmente. As baixas militares – e citando só os números do Pentágono – já vão nas duas mil trezentas e doze. Para estas contas não entram outros norte-americanos, os mercenários e os vários agentes que, sob os mais diversos disfarces (seguranças e guarda-costas, «jornalistas», técnicos disto e daquilo ou simples assassinos profissionais) acabaram os seus dias anonimamente de norte a sul do Iraque. Sair, agora, é bem mais difícil para os norte-americanos do que foi entrar. E de tal modo as coisas estão, que vários sectores e personalidades da sociedade iraquiana dizem que, se no tempo de Saddam havia muita coisa má, agora é tudo péssimo. A bota americana é mais pesada e violenta do que a bota do seu antigo aliado. E – o que é pior – é estrangeira. Entretanto, vêm a lume novos massacres cometidos pelos «heróicos» marines, mas os crimes de guerra praticados pelos norte-americanos estão a salvo de qualquer julgamento internacional.

Por outro lado, e apesar dos órgãos de comunicação social estarem repletos de gente muito bem paga para escrever de acordo com o guião da Casa Branca e do Pentágono, já ninguém associa – ou poucos associam – os EUA à ideia de democracia, liberdade, progresso, solidariedade ou outra coisa qualquer digna de respeito. Pelo contrário, a humanidade, tem hoje a consciência de estar, precisamente, perante o oposto disso tudo. A vontade – melhor dizendo: a necessidade – dos EUA dominarem o mundo, transformou-se numa ameaça asfixiante que cria, por todo o lado, fenómenos de rejeição, mesmo entre aqueles que um dia acreditaram na propaganda made in Hollywood. A verdadeira matriz cultural dos EUA é aquela que produz os Rambos acéfalos, os super-homens impossíveis, os Hulks e outros brutamontes, e que reza: «O que não puderes ter a bem, vai buscá-lo à força». Hoje, para milhões incontáveis de seres humanos, a sigla USA é sinónimo de violência sem limites, estupidez, brutalidade, arrogância, guerra, opressão, barbárie, crime, morte.

E se esta filosofia da força bruta, da prepotência – justificada com mentiras tão frágeis e tão estúpidas que, por o serem, certamente por estúpidos iguais ou maiores nos tomam aqueles que as engendram – se é ela que regulamenta as relações internacionais nestes dias inquietantes e sombrios, também é ela que, em cada estado vassalo dos EUA, como o nosso ou o francês, faz doutrina e impõe receitas. Se, a nível planetário, uma super-potência se julga com o direito de impor as regras e definir o futuro de cada país (que o mesmo é dizer, de sujeitá-lo aos seus interesses, de colonizá-lo, de moldá-lo de forma a dele retirar os proveitos que sustentem o seu parasitismo económico), também nos países sujeitos à lógica capitalista se passa, a nível interno, precisamente o mesmo. Cada governo sujeita o seu povo aos interesses do grande capital. É este o regime democrático.

Em França, por exemplo, por muito menos do que o Código do Trabalho que Bagão fez – e o PS adoptou de braços abertos – a população foi para a rua defender o seu direito ao trabalho e à estabilidade profissional. Assustam-se, por cá, os escribas do capitalismo, gritando Aqui-del-Rei!, que os franceses são irresponsáveis, estão a comprometer o futuro da França, porque sem os patrões poderem despedir à vontade a economia não se torna competitiva. Tentam diminuir a dimensão dos protestos e, pelo meio, vão salientando que anarquistas e agitadores profissionais andam por ali a manipular milhões de franceses estúpidos ou desprevenidos. Estes escribas, bem pagos pelos jornais e TVs de referência, com tachito garantido enquanto escreverem o que escrevem, cujos filhos e netos saberão encaixar onde for preciso, nem que seja nas telenovelas nacionais, a debitar diálogos redondos em enredos quadrados, sabem que a eles, e respectiva prole, nunca faltarão emprego e remuneração suculenta. São papagaios a cantar de galo, cumprindo o seu papel de ajudar a manter o povo português de espinha dobrada e tento na língua.

Um povo que, por isso, vê os funcionários públicos serem os mais penalizados no seu poder de compra, quando comparados com os seus pares de sete países comunitários, quer se considerem os que estão com défices excessivos, quer os países da Coesão. Embora não sejam os únicos a sofrer as agruras da contenção orçamental, os servidores do Estado português não só tiveram a maior erosão salarial em 2005 – dois pontos percentuais – como são os que sofrem esse embate há mais tempo, desde há seis anos. Um panorama que se repete este ano, pois perderão mais quase 1% (0,8 pontos percentuais).

Mas, como aqui temos dito muitas vezes, a crise não é para todos. Em Portugal, governa-se para as grandes empresas, para os grandes grupos económicos, para as grandes famílias. Sabemos que os quatro maiores bancos privados nacionais aumentaram os seus lucros, de 2004, para 2005, em 37%, atingindo os 1.625 milhões de euros, ou seja 325 milhões de contos. Como? Com os juros elevados, com o sobre-endividamento das famílias, com os preços especulativos e brutais dos serviços bancários, com a subida incontrolada das comissões bancárias, que em pouco mais de dez anos subiram 46%, com taxas de juro que chegam a atingir os 20%, com a degradação das condições laborais e remuneratórias dos trabalhadores da banca, onde as empresas de prestação de serviços pesam cada vez mais, com os impostos pagos pela banca a diminuir, pois pagam agora de IRC, metade do que pagaram em 1998.

Num cenário de crise profunda, de autêntica recessão, com o desemprego a aumentar, com a esmagadora maioria das famílias portugueses a apertar o cinto para além de todos os furos admissíveis, cortando na saúde, na alimentação, no vestuário, na educação, na higiene e conforto, vendo aumentar a idade de reforma e subir a carga fiscal (mas enquanto, no outro lado da pirâmide social, uns quantos arrebanham grossas fatias do erário público), com as magras reformas a serem corroídas por novos impostos e pela inflação, não é de espantar que a tuberculose continue a apresentar os piores índices do espaço UE.

Mas também as baixas reformas não são para todos. Para alguns, não é preciso esperar, sequer, pelos 63 ou 65 anos. Na ADSE, pensões acima dos 4.000 euros, ou seja, 800 contos, triplicaram nos últimos 5 anos, contemplando portugueses de primeira, como Nascimento Rodrigues, Alberto João Jardim, Luís Filipe Pereira (o homem dos Mellos, que foi ministro da Saúde de Durão Barroso), Alfredo de Sousa, Adelino Salvado, Fernando Gomes, (o tal que está na Galp e foi presidente da C. M. do Porto), e um batalhão de muitos outros. Porquê? Porque há para estes e falta para os outros? Porque, nesta democracia, há dois pesos e duas medidas. Porque esta gente soube encostar-se aos partidos certos, àqueles que dão bons empregos a quem não se importar de vender a alma. E, principalmente, porque o poder, nas mãos de tal gente, serve, antes do mais, para elaborar as leis que lhes façam da vida um mar de rosas.

Mas o caldeirão está ao lume. E ferve em França, no Médio Oriente, na América do Sul, muitas vezes ferve onde menos se espera. A revolta mina as sociedades de forma silenciosa e invisível, como acontece no interior dos vulcões só aparentemente adormecidos. A injustiça produz a revolta. Mesmo cá, onde a resignação cobarde e a passividade inexplicável de um povo que há pouco mais de 30 anos festejou a conquista da liberdade e da cidadania, o descontentamento alastra e, nos muitos que votaram PS, só a vergonha (ou o medo) impede que gritem contra a violência socrática.

Deixem-me citar Karl Marx, já que a maioria dos nossos jornalistas, analista, intelectuais, economista e outros pensadores não o fazem. Disse ele que «a violência é a parteira da história». Que forma de violência vem aí, é coisa que deixo para os bruxos.

Apenas sei que o caldeirão já está ao lume. E que ferve, ferve, ferve…


(Crónica de João Carlos Pereira - Lida aos microfones da Rádio Baía em 22/03/2006)

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