08/11/2006

A REPÚBLICA DAS CASTANHAS

Portugal tem vários cheiros e cores. As cores são sombrias, pesadas, lembrando nuvens de tempestade. O cheiro também não é bom. Olhando à nossa volta, de olhos bem abertos e a pituitária afinada, o que vemos e cheiramos faz lembrar, a um só tempo, a Camorra napolitana (ou a Cosa Nostra siciliana, tanto faz), a solidão esquelética e os ventres inchados da África a sul do Sara e, para rematar o quadro, a prepotência acéfala e simiesca dos «coronéis» sul-americanos. Dos que ainda mandam (a mando dos gringos, entenda-se) em certas repúblicas das bananas da América Latina, como o México, de Fox, ou a Colômbia, de Uribe. Portugal é – ou esta quase a ser – esse tenebroso três em um.

É. Portugal está escuro, enegrecido, enevoado. E o ar pesa, fede, asfixia. Pode ser de ser tempo da castanha assada, altura em que o fumo das brasas, espalhado pelo vento, leva, de braço dado com o odor dos frutos, um cheiro a esgoto, a latrina e – bem pior – um hálito siciliano, que a água benta ministerial transforma em mofo sepulcral, um mofo dos tempos em que um homem de escuro, de botas calçado, de nariz afilado e dedo em riste desenhava, num gabinete sombrio, ali para os lados de S. Bento, um país à sua imagem.

Um (mau) hálito siciliano, cariado, mas não de cáries, propriamente ditas, (porque gente de muitas posses essa é, que de si bem cuida e, para tanto, tem sempre onde ir aforrar o que aos outros mingua) mas das cáries mais cavernais, que são as da alma. Se alma têm os desalmados que exalam tais odores.

República das castanhas, assim te baptizo eu hoje, ó Portugal dos Pequeninos, pois pequeninos são tanto os mandantes miseráveis, como os miseráveis seres que ao poder os erguem – e no poder os mantêm e sustentam.

Aqui chegados, falemos de 38 milhões de euros.

Trinta milhões de euros!? O que são 38 milhões de euros?

São mais de sete milhões e seiscentos mil contos!

E para que serve tanto dinheiro? Para aumentar as reformas mais baixas? Para construir creches ou centros de acolhimento para idosos ou cidadãos carentes? Para melhorar as instalações de centros de saúde? Para fazer obras em escolas que estejam por aí a cair de podres?

Não, aqui, nesta república das castanhas, os sete milhões e meios de contos são para o Governo fazer publicidade da sua política, o que pode muito bem acontecer em luxuosas revistas estrangeiras, como a Paris Match ou a Fortune. Quanto, destes mais de sete milhões e meio de contos, vai ser propaganda em vez de publicidade? Ou por outra: porquê foguetório, se as bocas estão secas e os estômagos lisos? Ah! Já sei! Dê-se-lhes pão e circo, não é? Diga-se que tudo vai bem, que eles acreditam.

E se me volto para outro lado, logo me doem os olhos e a alma, porque embato em notícias que me falam de outras desgraças. Então não é que o Estado não deve apenas aos fornecedores de secos e molhados ao nosso Exército? Pois não! Deve também à Galp. Digamos que se trata «apenas» de dois milhões de euros, coisa de nada, uns litritos de combustíveis que estão na lista dos calotes desde Janeiro deste ano.

Estão lisos os cofres do Estado. E eu que não compreendia a razão que leva o Governo a retirar mais medicamentos da lista dos comparticipados. É para a tropa não morrer à fome, meus senhores. É para o senhor general ter sempre o Mercedes às ordens, com o depósito bem atestado. É para os tanques não pararem e poderem mostrar, à NATO e ao Bush, que somos uns meninos bem mandados. Estão a ver como tudo tem sempre uma explicação?

Aparte isso, o país está bem. A economia recupera. O povo gosta destes seus «coronéis». A castanha estala na brasa, e o fumo esconde a desgraça. Mas qual desgraça? Se alguém fala em fome, nas listas de espera que engordam, em desemprego, logo um ministro vem desmentir os alegados factos. Mesmo que essas coisas fossem verdade – o que se nega peremptoriamente – o que seria isso comparado com a necessidade de reduzir o défice?

O défice é tudo. O défice é que é. Morra o povo, mas viva o défice!

Por outro lado, os principais clubes portugueses ainda estão nas competições europeias. Estão a ver como isto está a melhorar? Só as telenovelas altamente edificantes, ainda não apanham todo o horário televisivo, mas lá chegaremos. É preciso não falhar nesse grande objectivo de educar o povo. Vivam a Floribela e os Morangos! Viva o futebol e o senhor Scolari. E viva – é claro – a castanha assada!

E, depois, há a liberdade. A santa liberdade. O «coronel» Sócrates defende a liberdade até às últimas consequências. Um jornalista fez uma reportagem de que ele não gostou? Ponha-se a liberdade a funcionar. Como? Ora essa! Ligue-se para o chefe de redacção do jornalista impertinentemente livre e diga-se: «Daqui fala o «coronel» Sócrates. Como governante livre e responsável, não gostei do trabalho desse senhor. A partir de agora, não quero vê-lo mais à minha frente. Caso me apareça de micro em punho, tomarei a liberdade de não lhe prestar quaisquer declarações. Percebeu, ou quer ser discriminado? Em completa liberdade, claro!».

Mas a liberdade, na versão «coronel» Sócrates, já chegou à Madeira. Veja-se o que aconteceu ao senhor Alberto, também João e Jardim (mas do Jardim não se sabe se é apelido ou alcunha nascida de no «jardim» que a Madeira é, ele há tanto tempo mandar). Veja-se como – logo ele, que sempre gostou de erguer sobre os demais a sua voz tonitruante – não logrou, desta vez, fazer-se ouvir, como queria, pois a jornalista levava o recado bem estudado. Está tudo a mudar, não está senhor Alberto? Já lhe cortam o pio sem contemplações, tal como costumam fazer quando o entrevistado é da esquerda, especialmente do PCP.

E bem tentou o senhor Alberto desdobrar-se em números e dados, na tentativa de desmontar e demonstrar as maldades e as mentiras do Poder Central (de Lisboa, como ele gosta de afirmar). O que a jornalista queria era falar de abstracções, de coisinhas simpáticas, como solidariedade e espírito de sacrifício. Ela não queria ouvir – nem que nós ouvíssemos – os números do senhor Alberto, com os quais o dito cujo pretendia demonstrar que os «coronéis» de Lisboa andam a dizer aldrabices atrás de aldrabices.

Aflita, a Judite, sabendo como as coisas são – e qual a cor e o calibre dos «coronéis» que estão no poleiro – só queria falar em solidariedade, não queria dados que pusessem em causa a verdade oficial. Dados que, afinal, sempre ouvimos, embora a custo, pois a senhora entrevistadora sobrepunha a sua voz à do seu entrevistado, quando o senhor Alberto, pela linguagem dos números, demonstrava que em Lisboa se governa pior do que no Funchal.

E podem-me dizer que os números não são aqueles, que todos os políticos aldrabam e usam os números como lhes convém. Que até podia ser que fosse tudo mentira, pois o senhor Alberto é homem de muitos engenhos. Mas querem saber porque razão eu sei que ele falou verdade? Porque não veio nenhum «coronel» desmenti-lo. Porque engoliram em seco. Porque comeram (com os números) e calaram.

E só me espantou que à Juditezinha, que estava tão preocupada com o facto de a Madeira não querer abdicar das suas verbas em favor dos Açores, não tivesse o senhor Alberto sugerido que, por maioria de razão, também ela abdicasse de parte do seu ordenado a favor de alguém mais desfavorecido. Tinha lógica, não tinha?

Castanha assada. Quentes e boas! República das castanhas. Sem ofensa, sem desprimor, também república dos coronéis Ramiros, e dos seus émulos e sucedâneos, os doutores Mundinhos, que Jorge Amado tão bem descreveu na sua Gabriela, Cravo e Canela. Aprendemos isso no tempo em que as telenovelas eram obras de arte e veículos de cultura, em vez das boçalidades multicores que hoje são.

É isso. Mudam os coronéis, mas não muda o chicote, nem a bota, nem a bala, nem a forca, mesmo que seja para o grande amigo de outros tempos, cujos crimes porque está ser julgado (se aquilo é um julgamento) não tivessem sido todos cometidos com a bênção e a palmadinha nas costas do ex-amigo americano. Uma pergunta ingénua: Quando será George Bush julgado e condenado pelas centenas de milhares de mortos que já provocou, com base em mentiras tão grandes que, até ele, já não as pode sustentar? E vejam lá como Blair já está a voltar o bico ao prego.

Voltando à castanha (Castanha SA, obviamente, porque o SA é a solução mágica para tudo), voltando, então, à castanha, diz o insuspeito Tribunal de Contas que, afinal de… contas, os hospitais SA foram pior emenda que o soneto. Não se conteve o endividamento, nem os défices e (olha a grande novidade!) o grau de satisfação dos utentes baixou. Conclusão: está tudo bem encaminhado para a solução final: privatizar tudo e, quem não tiver dinheiro, morre à porta das urgências, como dizia, entusiasmado, um nosso ouvinte, por sinal grande fã do engenheiro Sócrates.

República das castanhas, que quer assar lixos tóxicos na Arrábida. Para já, os testes estão suspensos, em resultado da acção cautelar interposta nesse sentido pelas câmaras de Setúbal, Sesimbra e Palmela. Mas outra acção, visando defender a saúde pública e a segurança de pessoas e bens, face aos perigos para o meio ambiente que a co-incineração provoca, também deu entrada e, portanto, para o «coronel» Sócrates, a coisa ainda não é favas contadas.

A propósito disto, o advogado Castanheira Barros, que conduz estas acções, enviou-me as seguintes palavras, dirigidas também à Rádio Baía e ao seu auditório, como prova de confiança na Justiça e na Razão e, principalmente, como estímulo para que não baixemos os braços nesta luta pela defesa da Vida.

«Reacende-se a luta entre a Bela e o Monstro. Na Arrábida temos A Bela e o Monstro.
A Serra, com todo o seu esplendor, volta a atacar o Monstro que nasceu ali, junto ao mar, e se foi expandindo serra dentro, enfraquecendo a sua seiva e roendo a sua pedra.
Ao contrário da fábula dos irmãos Grimmm, a Bela nunca conseguirá apaixonar-se pelo Monstro e irão viver para sempre em conflito».

Estas curtas – mas significativas – palavras enviou-as, como disse, Castanheira Barros, o advogado que tem a responsabilidade de defender a Bela Arrábida do Monstro Sócrates – e da monstruosa co-incineração.

Nesta república das castanhas, como acabámos de perceber, nem tudo se perdeu. Há os Sócrates, os Diogos, os Corleonne e seus afins, mas também há aqueles que resistem, os que dizem não – e sabem porque o dizem.

Até de hoje a oito dias.


Crónica de: João Carlos Pereira
Lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 08/11/2006.
(Não deixe de ouvir e participar todas as quartas-feiras entre as 09H00 e as 10H00, em 98.7 Mhz)

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