29/11/2006

QUANDO A FOME É DEMOCRÁTICA

Numa altura em que o país discute, entusiasmado, o «Caso Veiga», e a comunicação social não se cansa, em todos os serviços noticiosos, de a ele se referir, caiu logo num conveniente esquecimento o caso do Hospital Amadora / Sintra. E, contudo, o que ali se passou é, em termos económicos, fiscais, legais e políticos imensamente mais grave. É, na minha opinião, a falência do Estado Democrático e do poder judicial, para além de ser a prova absoluta da impunidade com que, nas altas esferas, se pode delapidar o Estado em favor do poder económico.

Na verdade, caros ouvintes, morreu o processo contra os antigos dirigentes da Administração Regional de Saúde de Lisboa, encarregues de fiscalizar as contas do Hospital Amadora / Sintra, consumando-se assim, a arrecadação, pelo Grupo Mello, de 75 milhões de euros (15 milhões de contos) por actos não praticados, já que o MP arquivou a investigação às contas daquele hospital, onde estavam em causa despesas não efectuadas que lesaram o Estado nos tais 15 milhões de contos. O relatório da Inspecção-Geral das Finanças, de 2002, chegou à conclusão que o Estado tinha pago à sociedade gestora do Hospital Amadora Sintra aquele valor por actos que nunca tinham sido praticados, acrescentando que o hospital não tinha cumprido com as obrigações para com a Segurança Social, nomeadamente a Caixa Geral de Aposentações.

Portanto, em 2002, o Inspector-geral das Finanças não teve dúvidas em acusar 26 antigos dirigentes da Administração Regional de Saúde de Lisboa, que tinham a responsabilidade de fiscalizar as contas do hospital, mas agora o Ministério Público decide arquivar o processo-crime contra os antigos altos funcionários do Ministério da Saúde, dizendo que a sua conduta não acautelou os interesses do Estado, mas acrescentando que nenhum deles teve intenção de o fazer. Pelo meio, o despacho de arquivamento não deixa, no entanto, de fazer críticas à forma como o Estado fiscalizou o contrato feito com o grupo que gere o hospital. Diz que «a par de práticas burocráticas incorrectas, faltaram os meios e os conhecimentos técnicos aos que tinham que avaliar a gestão do hospital».

Isto é: o Grupo Mello meteu ao bolso 15 milhões de contos limpinhos, resultantes de actos clínicos que nunca foram praticados, o Estado perdeu esse dinheiro, mas tudo ficou em águas de bacalhau. Não houve crime, não houve responsáveis, não houve reposição de verbas – e siga tudo na paz do Senhor. Não sei porquê, lembrei-me do filme “A Golpada”.

De resto, como estamos em democracia, se golpe tivesse havido, tratar-se-ia, é bom de ver, de golpe democrático.

Na última crónica, chamei vampiro a Sócrates – e esqueci-me de pedir desculpa aos vampiros. Tanto bastou para um ouvinte me chamar malcriado, mas a isso já lá vamos. Agora chamo-lhe, a Sócrates, mentiroso empedernido, pois continua a dizer que o desemprego está a baixar em Portugal. Não sei como é que o homem se arranja para mentir assim, mas está bem. O que eu digo é que o desemprego está a subir, mas será, também ela, uma subida democrática, porque vivemos em democracia. E em democracia, como sabemos, o desemprego é sempre bom…

E já que Sócrates não conta a verdade aos portugueses, deixem que seja eu a contá-la. É que, contrariamente àquilo que o Governo tem afirmado, o desemprego não está a diminuir. É certo que os dados oficiais sobre o desemprego revelam uma redução, embora pequena (menos 13 mil desempregados entre o 3.º trimestre de 2005 e o 3.º trimestre de 2006), mas estes dados não dão uma ideia completa da dimensão do desemprego no nosso País, já que não incluem, pelo menos, dois grupos de desempregados de facto – "Inactivos Disponíveis" e "Sub emprego Visível" – que têm um peso cada vez maior neste quadro. Se calcularmos aquilo a que chamamos o desemprego corrigido, com base em dados também publicados pelo INE, e que está muito mais próximo do desemprego real, concluímos que o desemprego continua a aumentar em Portugal. O desemprego corrigido passou de 549 mil no 1.º trimestre de 2005 (fim do governo de Santana de Lopes), para 567 mil no 3.º trimestre de 2005, e para 572 mil no 3.º trimestre de 2006. Assim, entre o 1.º trimestre de 2005 (fim dos governos PSD/CDS) e o 3.º trimestre de 2006 (pleno governo de Sócrates), o desemprego corrigido aumentou em 23 mil indivíduos, tendo crescido no último trimestre em mais 5 mil desempregados.

Se analisarmos a variação da taxa de desemprego oficial e da taxa de desemprego corrigido, observamos igual evolução. Assim, a taxa de desemprego oficial diminuiu de 7,7% para 7,4% entre o 3.º trimestre de 2005 e o 3.º trimestre de 2006, mas a taxa de desemprego corrigido manteve-se constante no mesmo período – 10,2% – apesar da população activa, que é base de cálculo da taxa de desemprego, ter aumentado em 45 mil.

O que Sócrates também esconde dos portugueses é o que os dados referentes ao desemprego oficial e ao desemprego corrigido revelam um fenómeno preocupante em Portugal, que é o seguinte: um número crescente de portugueses está a deixar de procurar emprego (90 mil no 3.º trimestre de 2006), entrando muitos deles na categoria de "desencorajados" (os que pensam que já não vale a pena procurar emprego, porque o não conseguem arranjar), caminhando desta forma rapidamente para a exclusão social total.

Pelo facto de não procurarem emprego nas 3 semanas anteriores ao inquérito do INE, não são considerados no cálculo do desemprego oficial. O mesmo sucede com o "sub emprego visível", que são os portugueses que querem trabalhar, que fazem biscates para sobreviver, mas que não conseguem arranjar um emprego, e que também não são considerados no cálculo do desemprego oficial (e estes eram «só» 65 mil no 3.º trimestre de 2006).

Mas o título da crónica de hoje não me foi sugerido só por isto. Foi-o, essencialmente, pelas palavras de um ouvinte que telefonou há oito dias, dizendo ele, entre outras coisas, que a nossa democracia está bem e recomenda-se. Aliás, segundo a criatura – que lê o jornal “The Economist”, jornal que, como quase todos sabemos, é uma espécie de bíblia produzida e impressa pelo grande capital financeiro, onde confessou ter bebido a informação – estaria (a nossa democracia) cada vez melhor.

Afirma-se esse ouvinte um homem de direita, com bom emprego e largos proventos. E embora diga que as classes sociais não existem, é, ele próprio, a prova provada da sua existência. Defende as deslocalizações e os baixos salários, numa óptica de defesa dos interesses das empresas e do patronato em geral, mesmo que isso signifique desemprego, fome e desespero para milhares de famílias; diz, com toda a calma e em voz maviosa e cuidada – a voz que tem o charme discreto da burguesia (ou dos homens que constam na sua folha de salários, conhecidos, no vulgo, por lacaios) – que os ordenados dos trabalhadores por conta de outrem devem ser congelados ou, como defendeu um dos patrões do «Bando do Beato», reduzidos ainda mais; acha naturalíssimo e muito saudável para a economia, que o governo, através dos cortes orçamentais, restrinja o direito à saúde e à educação à generalidade da população (que, por acaso, nem foge aos impostos e que, pelo simples facto de os pagar, lhe deveria dar direito à saúde e à educação em termos gratuitos); acha, o referido senhor, que o desemprego, o trabalho precário, a perda de direitos – sejam esses direitos quais forem – são coisas absolutamente naturais e às quais nos devemos sujeitar sem contestação; considera, em resumo, que o povo existe para trabalhar e produzir a riqueza que as classes altas, depois, gerem a seu bel-prazer, pagando o que quiserem, quando quiserem – e se quiserem.

Trocado isto por miúdos, o nosso ouvinte de direita defende algo semelhante à sociedade feudal, razão por que se tornou um fã do engenheiro Sócrates e do governo socialista, do qual só discorda por não ir mais longe, fustigando ainda mais os trabalhadores e os reformados.

Ah! É verdade! Deve privatizar-se tudo o que resta, transformar tudo num enorme negócio, do ar à água, dos correios à saúde, da educação aos transportes. Ou seja: isto deixaria de ser um país, e passaria a ser uma enorme empresa, dividida por meia dúzia de capitalistas, e nós, em vez de cidadãos, passaríamos a trabalhadores (certamente a prazo) ao serviço desses distintos empresários que, tal como os senhores feudais – ou pior do que eles – teriam sobre nós o poder absoluto de manobrar a nossa vida desde o berço até à morte. Seria o Portugal, SA, como aqui já disse certa vez. Ou o Portugal roça, comparação que também já fiz.

Mas, segundo o cavalheiro – porque só um cavalheiro fala assim, com tanta clareza e com tão distintos requebros – isto é uma das melhores democracias que há, porque, por exemplo, eu ainda posso falar, aqui na rádio e, principalmente, porque o poder económico já arrebanhou quase tudo o que havia para arrebanhar. Mas exaltou-se sua excelência – e de forma delicada, mas severa, me repreendeu – quando eu caracterizei Sócrates como «vampiro», já que outra coisa não faz que sugar o sangue de milhões de portugueses. Sua excelência não gosta de palavras agressivas, de algazarras, de indignações, de protestos. Detesta a contestação ao que está. Treme, só de pensar que a paz podre que lhe convém, possa ser posta em causa, ou que o “status” onde se abriga possa, por força do esclarecimento e da luta, desfazer-se e se conclua que há, por aí, parasitas a mais.

É claro que não me vou calar nem – muito menos – censurar os meus textos para não ferir os ouvidos de sua excelência. Sem poder comparar-me a nenhum deles, sempre recordo ao tal ouvinte que também os poemas e os textos ou as músicas de José Afonso, Lopes Graça, Ary dos Santos, António Gedeão, Manuel da Fonseca, Alexandre O’Neil ou José Gomes Ferreira, irritavam e descompunham os severos senhores do outro regime. Contudo, “Os Vampiros”, do Zeca, aplicam-se, na íntegra, aos dias de hoje. Mas o ouvinte não gostou que eu chamasse vampiro a Sócrates, apesar de Sócrates e o seu governo socialista vampirizarem o povo deste país (e tudo isto sem ofensa para ninguém – já que de metáfora se trata – e muito menos para os vampiros, bem entendido, pois são animais respeitáveis, que apenas seguem as leis da natureza e não bebem o sangue dos da sua espécie).

E ele, que defende uma sociedade estratificada em duas classes (a dos senhores oligarcas e a da ralé, dos «reles» trabalhadores, seus serventuários) semelhante em tudo à sociedade feudal – ou, para sermos mais benévolos, à sociedade capitalista dos primórdios da revolução industrial – considera-se moderno e “a la page”, e eu, que defendo uma sociedade solidária, humana e fraterna, baseada no respeito pelo ser humano e onde ninguém explore ninguém, estou, na sua doutoral opinião, fora de moda e ultrapassado.

A sociedade que ele defende – velha de séculos – violenta, opressiva, injusta, desigual e, por isso mesmo desumana, que tem conduzido a humanidade a morticínios incontáveis, pois baseia-se no saque, na lei do mais forte e na rapinagem sem barreiras, é, segundo diz, o nosso futuro. O inverso disto, a sociedade socialista, cujos fundamentos são, em termos históricos, nossos contemporâneos, seria, para o ilustre cavalheiro, coisa do passado.

Para ele, vivemos em democracia porque podemos falar, embora as palavras fortes, as metáforas que ilustram a ideia, como «vampiro», ou outras, e que definam as canalhices que o povo sofre, sejam palavras impróprias num contexto democrático. A isso eu respondo que não vivemos em democracia, porque impróprio e antidemocrático é a fome, o desemprego, a miséria, o desespero de quem precisa de uma consulta ou de um medicamento e, antes de ir ao médico ou à farmácia, deita contas à vida e vê que não pode ser.

Impróprio, antidemocrático, desumano, indigno e infame, é haver centenas de milhares de crianças com fome, para quem o leite ou a carne são um luxo ou uma miragem, ou portugueses que vivem em condições infra-humanas, produto de uma sociedade imoral, onde os lucros de uns poucos se sobrepõem aos interesses colectivos. Aos interesses do povo e do País.

O tal ouvinte – e todos os que como ele pensam, sem terem, contudo, a soberba lata de assumir o seu reaccionarismo cavernícola – pode continuar a manifestar o seu ódio a todos os que trabalham, pode insistir em demonstrar que é um inimigo declarado das classes trabalhadoras, as quais, bem vistas as coisas, o sustentam. Pode fazê-lo, porque não somos, nesta rádio, como os actuais mandantes de uma outra rádio onde costumava masturbar-se com as suas próprias baboseiras (desculpem-me a linguagem, mas é a que me parece mais adequada ao caso), rádio essa onde já não deixam os seus ouvintes dizer de sua justiça, pois eles eram, maioritariamente, contrários ao actual poder político. Aqui, pode sempre falar, até porque, quanto mais o faz, mais compreendemos todos quem são e o que pensam os nossos inimigos. É que – e desculpe-me dizê-lo – sobra-lhe em descaramento o que lhe falta em subtileza. E, principalmente, em valores humanos, éticos, e democráticos.

Por isso, por muito que se repita o que diz “The Economist”, nunca será democrática uma sociedade onde alastrem a fome, o desemprego, a injustiça, as desigualdades sociais e todas as outras chagas típicas do capitalismo selvagem que hoje nos governa.

Porém, para os vampiros – e só para esses – a fome (a fome dos outros, entenda-se) é a coisa mais democrática que pode haver.

Pudera! É com o sangue alheio que os vampiros engordam.


Crónica de: João Carlos Pereira
Lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 29/11/2006.
(Não deixe de ouvir e participar todas as quartas-feiras entre as 09H00 e as 10H00, em 98.7 Mhz)

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Olá prezados guerreiros. Meu nome é Hermes Teixeira sou de Salvador – BA e quero passar a vocês algo incrível que aconteceu comigo. Um mês atrás no jornal avistei um anuncio escrito “mude de vida” e fiquei curioso diante daquela frase. Entrei em contato com o anunciante e fui ao Hotel que este estava hospedado. Ele explicou o sistema do negócio e fiquei bastante empolgado e depois de um mês estou tirando aproximadamente R$ 1000,00 com Voip. Peço a vocês guerreiros que acreditem nas minhas palavras e entrem em contato comigo via E-mail e explicarei tudo direitinho. Deus abençoe a todos.

hermespolemica@yahoo.com.br

8/11/07 2:58 da manhã  

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