23/11/2005

Os negócios e o interesse público

Antes de entrar no assunto principal da nossa conversa de hoje, deixem-me dizer (mesmo que mal) um dos últimos poemas de Fernando Pessoa.

O Menino de Sua Mãe

No plaino abandonado que a morna brisa aquece / de balas trespassado /
- duas, de lado a lado - / jaz morto e arrefece.

Raia-lhe a farda o sangue / De braços estendidos / alvo / louro / exangue /
fita com olhar langue e cego os céus perdidos.

Tão jovem! / Que jovem era! / (agora / que idade tem?) / Filho único / a mãe lhe dera um nome - e o mantivera: / «O menino de sua mãe».

Caiu-lhe da algibeira a cigarreira breve / Dera-lha a mãe / Está inteira /
É boa a cigarreira / ele / é que já não serve.

De outra algibeira / alada ponta a roçar o solo / a brancura
embainhada de um lenço... / deu-lho a criada velha que o trouxe ao colo.

Lá longe / em casa / há uma prece: / "Que volte cedo, e bem!" /
(Malhas que o Império tece) / Jaz morto / e apodrece / o menino de
sua mãe.

Este poema ocorreu-me quando soube da morte do militar português que outras malhas, estas tecidas pelo império norte-americano, levaram até ao Afeganistão. É certo que entre o jovem louro do poema, que Fernando Pessoa imaginou (sei lá…) caído num campo de batalha, talvez nas trincheiras de Flandres, e o comando que agora morreu, há diferenças. O primeiro, simboliza os jovens forçados ao cumprimento do serviço militar obrigatório e que, depois, arrancados às famílias, foram mobilizados e embarcados como gado, para logo serem despejados na lama, como carne para canhão. O segundo, era um profissional que, voluntariamente, aceitou correr um risco e ser a mesma carne para canhão a troco de compensações financeiras aliciantes. E aqui se esgotam as diferenças, pois um e outro morreram ao serviço de causas que não eram nossas, embora a propaganda oficial, num e noutro caso, as tenha etiquetado de patrióticas, ao serviço de valores inquestionáveis e sublimes da nossa civilização ocidental, cristã, etc, etc, etc.

O soldado que agora encontrou a morte no Afeganistão, morreu (seguramente sem saber) ao serviço de uma causa ignóbil, que outro nome não se pode dar à causa que, sustentada em mentiras, leva a guerra a qualquer ponto do mundo onde a pilhagem dos recursos naturais (a sua causa verdadeira – e única) seja essencial à economia norte-americana, ou seja, aos potentados económicos que a controlam. Neste caso, falo, essencialmente, das jazidas petrolíferas e de gás natural e, complementarmente, das rotas fundamentais para a construção de oleodutos e gasodutos que hão-de, depois, encher os tanques e os cofres das multinacionais ocidentais, principalmente das norte-americanas.

Mas para Sócrates, o fim trágico do soldado português aconteceu ao serviço da pátria, da liberdade e da paz, e eu só não afirmo que Salazar diria o mesmo, pois, valha a verdade, o velho ditador não punha homens e recursos portugueses ao serviço de guerras estrangeiras, apesar do País ser, já nessa altura, membro da NATO. Sócrates mentiu. O sargento João Paulo Roma Pereira foi vítima de uma política contrária aos nossos interesses e contra o sentir do povo português, pois coloca as nossas Forças Armadas ao serviço da estratégia dos EUA e da NATO — responsáveis pela agressão ao povo do Afeganistão, pela ocupação do seu território e a instalação em Cabul de um governo fantoche (haverá outro termo para dizer isto?), feito à medida dos interesses norte-americanos.

Falam – Sócrates, o ministro da Defesa e, até, o Presidente da República – em compromissos e tratados internacionais. O único compromisso que podem invocar é o da vassalagem perante Bush e o imperialismo por ele representado. É o compromisso da subserviência e da cobardia. Nada mais está em causa. Nem os interesses nacionais (digam-nos quais, já agora…), nem os da paz, da liberdade ou da segurança nacional ou internacional. Embora sancionada mais tarde por uma resolução do Conselho de Segurança da ONU, a invasão foi da iniciativa dos EUA e aliados da NATO, pelo que as forças de ocupação estão de facto ao serviço de interesses geo-estratégicos imperialistas, e não da segurança, do progresso e da emancipação do povo afegão, como, de resto, a evolução da situação interna comprova, quatro anos volvidos.

Do Médio Oriente, aterremos na Ota e no seu futuro aeroporto. Li, este fim-de-semana, que o maior proprietário da zona pensa vir a facturar 500 milhões de euros (cem milhões de contos) com este projecto. Parece muito, mas a verdade é que esse valor não passa de uns trocos face ao valor total estimado para a construção do novo aeroporto, qualquer coisa como 3,6 mil milhões de euros, 750 milhões de contos na moeda antiga, isto sem contarmos com as derrapagens à portuguesa, que nunca ficam por menos de 50% do valor orçamentado. Uma loucura. Faço ideia das vezes que um certo senhor (conhecido pelo Senhor Cinco por Cento), já não lambeu as grossas beiças, ao fazer as contas ao que o seu partido, agora no poder, vai arrecadar quando começar (se é que já não começou) o toma-lá-dá-cá dos concursos e adjudicações!

A primeira conclusão a tirar, é que vem aí um chorudo negócio para alguém, como acontece com todas as grandes obras públicas. E a primeira pergunta a fazer, é a seguinte: perante tal investimento, o que vão lucrar quase 10 milhões de portugueses? Reparem que eu não pergunto o que vai lucrar o país, pois se pusesse a questão assim, entrariam nas contas os lucros dos grandes consórcio financeiros que vão financiar a obra, bem como o sector da construção civil e obras públicas, e disso, como todos sabemos, nada cabe aos quase 10 milhões de portugueses que sobram.

O único benefício que se vislumbra, a curto prazo, será a nível da criação de postos de trabalho, designadamente na área da construção civil – e esperemos que não aconteça como aconteceu com a construção da Ponte Vasco da Gama, onde proliferaram as empresas estrangeiras, que consigo trouxeram técnicos e mão-de-obra – especialmente as empresas espanholas.

Então, e depois? O que é que vai acontecer ao país quando tiver um aeroporto novo? Se não vamos todos viver melhor depois de um tão grande investimento, para que serve ele afinal?, perguntará você. Oiça bem, meu querido ouvinte: que melhorias a Ponte Vasco da Gama trouxe ao povo português, em geral, ou às populações da Área Metropolitana de Lisboa, em particular? Melhor e mais barato acesso a Lisboa, ou vice-versa? Isso é que era bom, não era? Mas não. A Ponte 25 de Abril continua a ser um funil cada vez mais caro e impraticável, e a travessia do Tejo foi escandalosamente inflacionada nas outras formas possíveis de a fazer – sem ser a nado, naturalmente.

Ah! É verdade: a Ponte Vasco da Gama foi de grande utilidade para quem teve dinheiro (muito dinheiro, diga-se) para construir no Parque das Nações, em Alcochete ou no Montijo, como refere – e muito bem – o Correio da Manhã de terça-feira. Mas os milhares de portugueses que, todos os dias, atravessam o Tejo para trabalhar ou estudar na margem oposta, o que ganharam eles com a Ponte Vasco da Gama? Nada. Absolutamente nada!

Assim vai ser na Ota. Alguns vão ganhar muito dinheiro com a construção do novo aeroporto, mas, depois de construído, a esmagadora maioria dos portugueses estará, precisamente, como está hoje, sem tirar nem pôr: a suportar uma crise – a continuação desta ou uma nova, porque é nas crises (e de crises) que se fazem ou consolidam as grandes fortunas. Estará a pagar, directa ou indirectamente o investimento, e a ouvir as desculpas do costume para justificar as políticas restritivas do governo que então tivermos.

Construir hospitais bastantes e decentes? E centros de saúde em vez de «centros de doença»? E escolas capazes? E equipamentos desportivos e culturais para servir a população escolar e formar homens e mulheres sãos de corpo e espírito? Garantir aos mais idosos e desprotegidos uma velhice tranquila e digna? Por outras palavras: dar prioridade às pessoas?

Bom, se isso desse mais dinheiro do que a Ota ou o TGV… Quer dizer: se isso fosse um bom negócio… talvez. Mas assim, há que dar prioridade ao negócio, há que dinamizar a economia, há que dotar o nosso tecido empresarial e o capital financeiro com uma solidez à prova de qualquer imprevisto, enfim, há que tornar a economia competitiva. Depois – e só depois – poderemos pensar no resto.

E isso vai ser quando, senhor primeiro-ministro? Quando é que nós – o tal resto – terá direito a qualquer coisinha?

Bom, não lhe posso dizer, mas há que fazer alguns sacrifícios até lá.

E Vossa Excelência, venerando Chefe de Estado, o que nos diz a isto?

Recomenda auto-estima, muita auto-estima. E mais sacrifícios, claro!

Bem, sacrifícios, sei o que é, tenho para dar e vender. Mas auto-estima… onde é que se compra disso?

Será no Continente? Não me admirava nada.

Não há artigo que o Belmiro não venda.

Crónica de João Carlos Pereira - Lida aos microfones da Rádio Baía em 23/11/2005

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