02/11/2005

Um país dos diabos

Nasceu a infanta, e os serviços noticiosos da manhã de segunda-feira não falavam doutra coisa. Bom, também é um exagero dizer a coisa assim, mas a verdade é que os canais de notícias da TV, que comecei a ouvir bem cedo, abriram com tão congratulante acontecimento. D. Letízia dera à luz uma menina, alguns dias antes do esperado, facto que, diziam eles, era de especial relevância para Espanha e para o mundo. Diligentes, as estações passavam o príncipe (D. Filipe de várias coisas e mais coisas a seguir ao nome, salvo erro com Bourbon e Astúrias pelo meio), falando ao mundo e dando conta da sua e – pelos vistos – nossa felicidade. Aleluia! Dêem-se hossanas ao Senhor por ter-se dignado permitir que o trono espanhol já tenha ocupante assegurado, salvo qualquer impensável percalço. Aliás, agora a dúvida maior que assalta Espanha, Portugal, a Europa a cristandade e o mundo, é saber-se se a Constituição espanhola vai ser alterada de modo a permitir que esta infanta real seja, um dia, rainha, mesmo que suas altezas reais, Filipe e Letízia, dêem ao mundo mais filhos, e todos eles machos – ou varões, como soe dizer-se em linguagem menos plebeia.

E disse o príncipe (isto é: sua Alteza Real), que espera poder transmitir à filha os valores que recebeu, de modo a que ela esteja preparada para enfrentar, pela vida fora, os muitos desafios que certamente lhe serão colocados. «E bem há-de precisar, coitada», pensei eu. «Com a crise que por aí vai, e como as coisas se estão a pôr por todo o lado – desemprego, baixos salários, gripe das aves, por exemplo – e mesmo vivendo em Espanha, é preciso ter alguma sorte e engenho para conseguir uma vidinha desafogada». Coitado do príncipe, já tão preocupado com o futuro da filha e a sua sobrevivência nesta selva em que se transformou o nosso quotidiano. E então, quando ela chegar à idade escolar, lá virão as despesas com os livros, as propinas, os transportes, enfim… um rol de preocupações que só quem é pai é que sabe. E se a infanta adoecer (que o diabo seja surdo, cego e mudo), o dinheirão que suas altezas não terão que despender para tratar da real infanta!

«Olha», disse eu em voz alta, «e muita sorte tens tu por ela ter nascido aí, em Espanha. Pensa bem no que seria se a cachopa tivesse nascido em Portugal, Tinhas preocupações a triplicar». «Cachopa?! Tu estás a chamar cachopa à infanta?!», repreendeu-me a minha mulher, como se a linguagem desrespeitosa que utilizei pusesse em perigo a nossa vida. «Infanta D. Leonor», corrigi eu, envergonhado pela indesculpável desconsideração, e olhando em volta, esperando que nenhum microfone ou satélite norte-americano tivesse detectado o desaforo.

Deleitado com este Natal antecipado, adormeci e comecei a sonhar com rosados príncipes e princesas, que logo se transformaram em anjos louros e querubins, esvoaçando entre paisagens celestiais. E ouvia, envolvendo-me, hinos mais belos que os mais belos que Beethoven, Berlioz, Wagner ou Verdi alguma vez compuseram. E decorria assim o meu sonho de azuis, ouros e pratas, todo ele perfumado por odores paradisíacos, quando o tempo se turvou e a luz divina deu lugar às labaredas infernais. Foram-se os cânticos e os hinos, e só o crepitar de fogos se fazia ouvir, de tal modo que me julguei caído em Portugal, no meio dos incêndios estivais.

Mas não! Não era assim tão mau! Estava, apenas, no Inferno. E em cima de um monte de lava, o Diabo em pessoa, de microfone à frente, com o jornal Público nas mãos, dizia, radiante:
«Foram anulados os depoimentos das duas principais testemunhas contra Fátima Felgueiras, por decisão aparente do Tribunal da Relação de Guimarães, mas que eu, com os meus poderes, inspirei. Por isso, o julgamento foi adiado. Esta marcha-atrás no processo decorre do facto de aquelas testemunhas, que desde o início colaboraram activamente com as autoridades, terem passado à condição de arguidos, uma decisão que foi tomada pelo Ministério Público, já depois da Polícia Judiciária de Braga ter concluído o inquérito. Não serviu de nada, por isso, que no início de 2003, o Procurador-Geral da República tivesse sido alertado para indícios de conivência do MP com a autarca», disse, com uma gargalhada, Belzebu.
E continuou: «A decisão de transformar em arguidos as principais testemunhas partiu de mim, e foi levada a efeito pelo procurador adjunto de Felgueiras - cuja intervenção no processo até aí se limitara a actos de mero expediente - e caiu como um balde de água fria na estratégia da PJ, que por diversas vezes tinha sugerido a aplicação àquelas testemunhas do estatuto de arrependidos. Eu sei que no início de 2003, o Procurador-Geral foi alertado para as "fortíssimas pressões de diversas entidades colectivas públicas e privadas", numa exposição/requerimento remetida pelo escritório do advogado Garcia Pereira, como representante das testemunhas que depois passaram a arguidos. Queriam que o processo fosse avocado pelo Procurador-Geral».
Apesar do calor, eu tremia como varas verdes. Mas o Demónio não se calava. E dizia: «Eles bem denunciaram as pressões de que eram alvo aquelas testemunhas – e que recentemente a PJ também denunciou –, relatando factos que envolviam um dos mais altos quadros do MP, que desempenhava as funções de secretário-geral da Procuradoria-Geral da República na época em que foi remetida ao antigo Procurador-Geral, Cunha Rodrigues, a denúncia que deu origem à investigação do "saco azul" do Partido Socialista.
Esse magistrado - que actualmente é o representante de Portugal no "Eurojust" (organismo que coordena os departamentos da luta contra a corrupção no espaço europeu), depois de ter sido secretário de Estado da Justiça durante um dos governos do PS liderados por António Guterres - é suspeito de ter fornecido a Fátima Felgueiras uma cópia da denúncia enviada a Cunha Rodrigues, numa altura em que a PJ de Braga não tinha iniciado sequer as investigações».
Nessa altura, não me contive. «O quê!? O magistrado suspeito está ligado ao PS?», perguntei eu ao Diabo.
Ele olhou-me com um sorriso mordaz e fez o favor de esclarecer: «Claro! E também não sabias que o tipo tinha antes estado colocado no Tribunal de Felgueiras, altura em que fez amizade com o casal Fátima Felgueiras/Sousa Oliveira? Ou, como diz aqui no jornal, que o documento chegou às mãos da autarca durante uma deslocação do magistrado a Felgueiras, em 21 de Janeiro de 2000, para participar num jantar de homenagem a um funcionário judicial, facto que foi registado pela imprensa local?».
«Não», respondi eu com a maior sinceridade. «És um ingénuo, um tanso, um lírico, o que quiseres», atirou-me o gajo. E continuou: «Na exposição remetida a Souto Moura foi-lhe ainda dado conhecimento "de conversas telefónicas ocorridas à porta do Tribunal de Felgueiras", na madrugada em que a autarca saiu em liberdade após a detenção para primeiro interrogatório, "em que o Sousa Oliveira comunicava o seguinte: "Quanto ao processo, está tudo controlado aqui em Felgueiras e vamos resolver isto. Vai tudo correr muito bem, pode ficar descansado". Segundo relata ainda o documento, Sousa Oliveira explicou de seguida ao assessor de imprensa da Câmara de Felgueiras que acabava de falar para Bruxelas, com o dito magistrado, concluindo: "Está tudo tratado e vai correr tudo muito bem"».
O Diabo atirou o jornal para uma das fogueiras, esfregou as mãos, voltou-se para mim e fez-me sinal para me aproximar. Deve ter sido o susto que me acordou.
«Pões-te para aí a dormir, e nem ouves as notícias, homem!», disse a minha mulher, em tom crítico. E eu: «Já sei que nasceu a infanta, mulher. E depois? Quantos milhões de crianças não nasceram hoje e, se calhar, metade não chega aos cinco anos de idade? Quero lá saber da infanta!».
«Não é isso!», corrigiu ela. «É o caso da Fátima Felgueiras, que vai dar em águas de bacalhau. Para já, voltou tudo à estaca zero».
Fechei os olhos e pus-me a pensar que acabara de decifrar um mistério bíblico: agora eu sabia a localização geográfica do Inferno. E tomei logo a decisão que se impunha: informar o Papa e, depois, apanhar a jeito o Presidente Jorge Sampaio para lhe dar conhecimento desta trapalhada toda.
Só espero é que ele trate as trapalhadas todas da mesma maneira. As cor-de-laranja… e as cor-de-rosa.

Crónica de João Carlos Pereira - Lida aos microfones da Rádio Baía em 02/11/2005

1997, 2007 © Guia do Seixal

Visões do Seixal Blog Directório Informações Quem Somos Índice