09/11/2005

Os chicos-espertos

Na segunda-feira passada, às seis e meia da manhã, cheguei ao Centro de Saúde do Seixal, com o objectivo de conseguir uma consulta para um familiar. Ao chegarmos, já perto de 20 infelizes portugueses se abrigavam sob o telheiro, suportando, conforme podiam, uma temperatura que rondava os cinco graus.
Na porta, uma folha de papel manuscrita informava que estariam ausentes quatro médicos e, para compor o ramalhete, ainda se informava que não haveria SMAC, isto é, o serviço de apoio às consultas, para aqueles doentes que não têm médico de família ou cujo médico faltasse. À medida que o tempo passava, as pessoas foram-se aglomerando naquela sala de espera terceiro mundista e, naturalmente, quem chegava tinha dificuldade em aperceber-se do aviso afixado.
Às oito, quando as portas se abriram, e o magote se acotovelava nas exíguas instalações para tirar a sua senha (e diga-se que o fez com um civismo exemplar e uma auto-organização digna de apreço, sem chico-espertismo de qualquer tipo), começaram as decepções. Um doente, com uma perna engessada, e que se deslocava com o auxílio de canadianas, foi então confrontado com a ausência do seu médico. Como a burocracia reinante o obriga a recorrer ao Centro de Saúde para renovar a baixa, pois o instituição de saúde que acompanha o seu caso, não pode, por misteriosas e inexplicáveis razões organizacionais, fazê-lo, via-se num beco sem saída. Nem médico de família, nem serviço de apoio. Quando me vim embora, ainda o desgraçado lá ficou à espera de solução.
Mas outros utentes, que chegavam constantemente na esperança de conseguir uma consulta, batiam em duas barreiras intransponíveis: ou o seu médico não tinha vindo… ou as consultas já estavam todas preenchidas. Mas o mais caricato é que, às nove da manhã, já se começava a formar a fila para a consulta da tarde, cujas senhas – e oiçam bem esta – só estariam disponíveis a partir do meio-dia e meia hora. E a isto se chegou, como se fosse a coisa mais natural do mundo.
Enquanto esperava que o meu familiar fosse atendido, dei uma volta em redor do edifício, integrado num enorme espaço que pertenceu à antiga corticeira Mundet, pois tanto o terreno como as instalações eram da antiga Caixa de Previdência dos Trabalhadores daquela empresa. Hoje, delimitado por uma rede mal amanhada (e cheio de erva viçosa que as chuvas de Outono fizeram nascer da terra sequiosa, substituindo o matagal seco que, ainda há menos de dois meses por ali se via), aquele espaço daria para suportar, pelo menos, cinco edifícios iguais, em área, e este que, criminosamente, os homens que têm mandado neste país teimam em oferecer à população.
Fosse isto um país governado por gente competente e séria, que não estivesse na política para se amanhar e garantir a vidinha para si e para os seus (veja-se o caso da Portugal Telecom, onde ex-governantes estão encaixados, sem esquecermos toda a sorte de políticos e seus promissores rebentos), mas fosse isto um país decentemente governado, dizia eu, e teríamos aqui no Seixal – e nos vários «seixais» espalhados de Norte a Sul, sem esquecer as Ilhas – centros de saúde dignos e capazes de cumprir uma das primeiras disposições constitucionais – e um dos mais importantes e iniludíveis direitos humanos – que é o direito à saúde.
Não há dinheiro, repetem eles sem cessar. E eu repito, também sem cessar, que há dinheiro, sim, senhor, mas é para os que não precisam de ir aos centros de saúde. Há dinheiro, também, para construir 10 novos estádios de futebol. Há dinheiro para novos aeroportos, há dinheiro para o TGV, tal como houve dinheiro para a Expo´98. Há dinheiro para as fachadas que, entre outras coisas, escondem sempre grandes negócios, o que significa, logo, grandes comissões e melhores luvas.
Há dinheiro para pagar rios do mesmo aos senhores deputados e governantes que acabam as suas funções. Segundo a lei que, eles próprios cozinharam e aprovaram, quem deixa funções de deputado ou governante, recebe um mês de salário por cada seis meses de funções na Assembleia da República ou no Governo, ou seja, cerca de 1.400 contos por cada ano de sacrificada e generosa – e sempre desinteressada – entrega à causa pública. Assim, se o sacrificado servidor do povo e do país o tiver sido durante 10 anos, recebe vinte salários (68.980 euros, qualquer coisita como 14 mil contos). Feitas as contas, com os deputados que saíram em Fevereiro deste ano, o Erário Público desembolsou mais de 2.500.000 euros. Isto não é lucro rápido nem fácil, isto não é chico-espertismo, não senhor, esta coisa de eu fazer a lei de acordo com os meus interesses e apetites.
No entanto, há ainda aqueles que têm direito a subvenções vitalícias ou pensões de reforma (mesmo que não tenham 60 anos, e muito menos 65). Estas são atribuídas aos titulares de cargos políticos com mais de 12 anos de função.
Entre estes ilustres reformados do Parlamento encontramos figuras como Almeida Santos, que se reformou com 4.400 euros, ou seja, com mais de 880 contos por mês; Medeiros Ferreira, Manuela Aguiar, Pedro Roseta, Helena Roseta, Narana Coissoró, e Vieira de Castro, foram corridos, os pobres coitados, apenas com 2.800 euros mensais, isto é, mais de 560 contos. Álvaro Barreto, abicha 3.500, euros, o que dá 700 contos mais uns pós por mês. E isto são apenas alguns exemplos. Chico-espertismo? Não! Que ideia…
Quanto aos ilustres reintegrados, encontramos os seguintes:
Sónia Fortuzinhos, Ana Benavente, Maria Santos e Luís Nobre Guedes, qualquer deles com 12.500 contos por 9 anos e meio de serviço; Paulo Pedroso, 9.600 contos por 7 anos e meio de serviço; David Justino, 7.600 contos por 5 anos e meio de serviço. E deixemos a lista por aqui, que não há tempo para mais. Mas a maioria dos outros deputados que não regressaram e estiveram na AR somente na última legislatura, isto é, 3 anos, isso foi o suficiente para terem recebido cerca de 20.000 euros (4 mil contos) cada. Mais uma vez, aqui não há chicos-espertos nem lucro fácil.
Não! O que eu vejo é uma chusma de oportunistas e de autênticos parasitas do povo português que, desde finais de 1975, reparte entre si o poder e os respectivos privilégios, e que tem agora o supremo descaramento de pedir um ainda maior apertar do cinto aos portugueses (aos portugueses do costume, refira-se), àqueles que, com o seu trabalho e os seus sacrifícios lhes sustentam os vícios. E diz o Presidente da República, sem esboçar um sorriso, ou sem que a voz lhe falhe por pudor ou rebate de consciência, que o país está cheio de chico-espertismo no negócio do turismo, de gente que só vê o lucro fácil e rápido. Ao mesmo tempo, sua excelência manifesta as suas preocupações por a classe política, à qual pertence, ser olhada de esguelha pelos portugueses, que dela têm uma opinião nada abonatória.
Não é chico-esperto o governador do Banco de Portugal, que fixa o seu próprio ordenado, e que veio agora – e finalmente – a lume? Este socialista, que passa o tempo a aconselhar os governos a cortarem salários e direitos, «só» ganha 280 mil euros anuais (56 mil contos, fora as mordomias como carro e gasolina, cartão de crédito, telemóvel, etc, etc.). Para que se perceba a dimensão deste escândalo, diga-se que Alan Greenspan, o homem que, nos EUA exerce o cargo equivalente, só recebe 180 mil dólares, o que dá 30 mil contos. «Tá bem», diz você. «Mas nós somos um país grande e rico, e os EUA são um país pequeno e pobre…»
Tem razão, caro ouvinte. Pois se até a reforma de um administrador da Caixa Geral de Depósitos, como Mira Amaral, é superior ao ordenado de Alan Greenspan, porque haveria Constâncio de se armar em chico-parvo?

Mas se o povo aguenta… é porque gosta. Ou não é?

Crónica de João Carlos Pereira - Lida aos microfones da Rádio Baía em 09/11/2005

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