30/11/2005

O Natal dos pobrezinhos

«Ordinariamente, todos os ministros são inteligentes, escrevem bem, discursam com cortesia e pura dicção, vão a faustosas inaugurações e são excelentes convivas. Porém, são nulos a resolver crises. Não têm a austeridade nem a concepção, nem o instinto político, nem a experiência que faz o estadista. É assim que há muito tempo, em Portugal, são regidos os destinos políticos. Política de acaso, política de compadrio, política de expediente. País governado ao acaso, governado por vaidades e por interesses, por especulação e corrupção, por privilégio e influência de camarilha, será possível conservar a sua independência?»

Isto não é prosa minha. É prosa de Eça de Queiroz, publicada em 1867 no jornal O Distrito de Évora. Por estar, 138 anos depois, tão actual como se tivesse sido escrita ontem, serve perfeitamente para dar o mote à nossa conversa de hoje. Vamos a isso.

Uma nossa ouvinte, que não é capaz de entrar em directo e expor publicamente os seus problemas neste espaço que a RB corajosamente abriu para esse fim, contactou-me há dias para que eu aqui denunciasse a difícil situação que está a viver. Trata-se de uma portuguesa reformada, com a «espantosa» pensão de 259 euros e 29 cêntimos (Vá lá, que há piores…). Com estes cerca de 52 contos, que a tanto não chega, faz face ao seu dia-a-dia, da forma que se calcula. Há tempos, sentiu que outro problema se estava a acrescentar aos muitos que a saúde e a idade – e a vida, bastante ingrata – já lhe acarretam, e lá foi ela à sua médica de família, que achou conveniente fazer-se uma ecografia ginecológica. De posse dos resultados do exame, marcou nova consulta e as notícias não foram as melhores. Havia, de facto, por ali «qualquer coisita», pelo que seria necessário aprofundar a questão. Foi-lhe, então, passada a credencial para a realização de nova ecografia ginecológica, mas desta vez com sonda vaginal.

Preocupada, foi de imediato marcar o exame, mas aí foi confrontada com uma notícia chocante. «Estes exames não são comparticipados. Podemos marcar, mas só se pagar 65 euros». Não marcou. Com as lágrimas nos olhos, disse-me que parte da pensão deste mês já foi para pagar uns «atrasados» na farmácia, e que os 13 contos que lhe custará o exame, só poderá arranjá-los quando receber o subsídio de Natal. Mas isso requer tempo de espera e a obtenção de nova credencial, através de nova consulta e, claro está, mais um mês de restrições e dificuldades E de medos. Ainda por cima, no mês do Natal, lamentou-se.

Perguntei-lhe porque não telefonava para o programa, porque não queria pôr o problema de viva-voz. Que não. Que se enervava. Depois, até poderiam pensar que estava a pedir ajuda, e isso ela não queria. Também não queria expor assim a sua vida. O que ela queria – e quer – é que se saiba bem que país é este, onde os governantes se enchem e se esgatanham para ocupar os poleiros, conseguem bons ordenados e reformas para si próprios, mas deixam as pessoas, como ela, sem condições para tratarem decentemente da sua saúde. Não quer esmolas. Quer justiça. Trabalhou desde os 14 anos, e de uma das firmas onde trabalhou, a Mundet, ainda lhe devem mais de 200 contos, mas o caso nunca mais se resolve em Tribunal, já vai para 20 anos. Qualquer dia morro, como outros já morreram, e o dinheiro fica lá. Mas que nem o seu nome eu dissesse, apenas que denunciasse o caso. E assim o faço.

Ao falar com esta mulher, lembrei-me que foi notícia, há dias, o facto de o Banco Alimentar Contra a Fome estar muito satisfeito por ter conseguido angariar 1.470 toneladas de alimentos para atenuar a fome aos portugueses mais carenciados. Tratava-se de um novo recorde, diziam os locutores, entusiasmados. Segundo os responsáveis pela instituição de caridadezinha, os alimentos vão ser distribuídos por 203.000 pessoas esfomeadas. Que bom! Que alegria! Que os pobres cresçam e se multipliquem, que as boas e caridosas almas que por aí há se encarregarão de cravar à populaça, para o ano, mais umas arrobas de comidinha. Mas… como há mais de 2 milhões de portugueses a viver em situação de pobreza extrema, a verdade nua e crua é a seguinte.

1.º – Que desses 2 milhões de portugueses com fome, 1.797.000 deles vão ficar a chuchar no dedo este Natal, salvo se houver por aí mais uma campanha de boas vontades;

2.º – Que 203 mil portugueses vão receber (se nada se perder pelo caminho) cerca de 7 quilos de alimentos. Uma fartura;

3.º – Que os portugueses carenciados fazem parte da paisagem, são uma coisa natural. Existem, e pronto. O que importa é atenuar-lhes a fome de vez em quando. Ficamos todos felizes. Eles, porque comem um bocadito menos mal uma vez por ano. A restante sociedade, porque é muito boazinha e até arranja forma de ajudar os desgraçadinhos;

4.º – Que a solução para combater a pobreza não passa por justiça social e por o Estado se preocupar com todos. Basta que, de vez em quando, se dêem uns quilitos de arroz aos pobres, assim como quem deita umas migalhitas aos pardais.

A piorar tudo isto, lembrei-me que a cidadã portuguesa que precisa de fazer uma ecografia ginecológica, com sonda vaginal, mas não tem dinheiro para a fazer, nem sequer é considerada pobre. Ganha a fortuna de 52 contos por mês! Não faz, por isso, aumentar a estatísticas da pobreza em Portugal. Deve ser rica – ou, quando muito, remediada – na óptica dos vários governos, sejam eles do PS ou do PSD.

É face a situações destas, reais, inquestionáveis – e, para mim, dolorosas e revoltantes – que me apetece perguntar ao senhor primeiro-ministro, ao senhor presidente da República, a todos os que, por muito ou pouco tempo, já assolaparam as nádegas nas cadeiras do poder nestes últimos 30 anos, mas também – e especialmente – àqueles que, com o seu voto inocente, ignorante, imbecil, ou criminoso contribuíram para levar ao poder tal gentalha, se estão contentes com esta realidade? Se, também eles, acham que a pobreza é uma coisa natural, uma espécie de fatalidade a que milhões de pessoas estão sujeitas, e que não compete ao poder político combatê-la e eliminá-la?

Parece que não. Suas excelências têm, obviamente, uma visão diferente do problema, pois só assim se compreende que, tanto esses milhões de portugueses que, reconhecidamente vivem na miséria, como outros milhões de esta mulher é um exemplo – e que durante toda uma vida trabalharam e contribuíram para os cofres do Estado – sejam hoje tratados como lixo, como uma excrescência incómoda, a quem, metódica e criminosamente, se vão reduzindo direitos, mesmo aqueles que a Constituição consagra e a Declaração Universal dos Direitos Humanos refere como sendo inalienáveis. E o direito à saúde é um deles – e dos mais importantes.

Pois… é a situação da economia, é o défice das contas públicas. Claro! Mas não há défice orçamental para a Ota, para o TGV, para – e nunca é demais repeti-lo – para os políticos de carreira (também ditos profissionais, a quem o povo prefere chamar chulos) se encherem, esses políticos que, como dizia Eça, «são nulos a resolver crises. Não têm a austeridade nem a concepção, nem o instinto político, nem a experiência que faz o estadista». E que «É assim que há muito tempo, em Portugal, são regidos os destinos políticos». Uma «Política de acaso, política de compadrio, política de expediente». Num «País governado ao acaso, governado por vaidades e por interesses, por especulação e corrupção, por privilégio e influência de camarilha». Não! Para eles não há défice, nem para os verdadeiros donos do país, os tais vinte por cento que detêm 46% do rendimento nacional. Contudo, teima-se em chamar a isto uma república e uma democracia, apesar de ser cada vez mais difusa a diferença prática entre esta democracia e a ditadura que acabou há quase 32 anos.

Conscientes de que, apesar de tudo, o povo já vai abrindo os olhos, começando a chamar os bois pelos nomes, do primeiro-ministro ao presidente da República, dos chefes dos partidos aos candidatos presidenciais, todos incluem nos seus discursos alguns parágrafos em defesa da classe política. Trata-se de uma operação de branqueamento tardia e, principalmente, inútil. Eles nunca se transformarão em pessoas de bem. A matriz genética destes políticos é, como acontece com o ADN, imutável. Nunca prescindirão dos seus privilégios, nunca saberão estar na política de forma limpa e escrupulosa. De resto, nem é para isso que o poder económico, o verdadeiro poder em Portugal, lhes permite governar.

Mas vem aí o Natal. Nas consoadas dos ricos, trocar-se-ão prendas milionárias, como chaves de Ferraris e de novas mansões em condomínios fechados, ou jóias com muitos quilates. Dar-se-ão graças a Deus pelo bem-estar em que vivem e pedir-se-á que o futuro seja, pelo menos, igual ao presente, o que, nestes tempos de crise, não seria mau de todo.

Noutros lares, como o da nossa amiga que precisa de 65 euros para fazer uma ecografia, apenas se pedirá que aquela manchazinha que a médica lhe viu dentro da barriga, possa esperar mais uns tempos. E, já agora, que não seja nada de mau.

Pois eu, apesar de não ser católico, vou pedir ao Menino Jesus que cresça depressa e volte cá abaixo com aquele chicote que, certa vez, usou para escorraçar do templo os vendilhões. Eu levo-o, depois, a São Bento, a Belém e a outros sítios que eu cá sei…

Vai ser um fartote! E se Cristo se cansar, arreio eu!

Crónica de João Carlos Pereira - Lida aos microfones da Rádio Baía em 30/11/2005

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