26/10/2005

Um piquinho a azedo

José Sócrates começou a apodrecer – ou a azedar – mais depressa do que seria imaginável, principalmente se pensarmos no que por aí se disse e pensou no dia a seguir às eleições que lhe deram a maioria absoluta, e no que se diz e pensa agora. O seu estilo afectado e, simultaneamente, arrogante, a dificuldade em esconder a sua tendência para o descontrolo emocional e, por conseguinte, a facilidade com que perde as estribeiras sempre que se vê confrontado com críticas próprias do debate democrático – o que, aliás, é característico de pessoas que padecem de uma qualquer debilidade que as singulariza em relação ao comum dos mortais – a evidente contradição entre o gozo que lhe dá a detenção do poder e essa incapacidade para lidar com as contrariedades que o mesmo poder comporta, são coisas que têm contribuído para que seja cada vez mais negativa a opinião que os portugueses têm desta parda e sinistra figura que o PS se viu obrigado a promover a seu secretário-geral.

De cada vez que fala, em cada esgar ou tique que lhe fogem, nas resposta que dá – e como as dá – na entoação ligeiramente aflautada com que julga embelezar o discurso, enfim, sempre que se vê obrigado a representar a rábula do homem de Estado a quem foi confiada a missão de salvar o país, nada mais faz do que desnudar-se e ostentar a verdadeira natureza do seu carácter e do seu temperamento. Ao fim de poucos meses, já todos percebemos que, debaixo do invólucro, nada há que caucione o homem público. Este Sócrates, hoje, não só não teria a maioria absoluta, como dificilmente ganharia as eleições. Cansou-nos depressa. Quase enoja.

Estas considerações de carácter pessoal, que alguns ouvintes julgarão despropositadas e, por conseguinte, desnecessárias ao debate ou aos comentários políticos, parecem-me, no entanto, pertinentes, pois, para além de se dizer – e com razão – que um homem é o seu estilo, é quanto a mim indispensável que percebamos a qualidade humana de quem tem nas mãos o poder de decidir sobre a nossa vida – o nosso presente e o nosso futuro. Aliás, essa necessidade de conhecer o outro é indispensável – e lícita, até – em variadas situações da nossa vida. Por isso, se avalia a personalidade de um candidato a um emprego, não bastando as suas qualificações técnicas ou académicas. Por isso, também, não basta a um jogador de futebol ser exímio técnica e fisicamente, se a cabeça não souber responder às exigências da sua profissão – e disso temos exemplos famosos e tristíssimos. Quanto maior for a responsabilidade do cargo, mais importante é saber-se quem é, por dentro e por fora, o indivíduo que o desempenha ou vai desempenhar.

Lembro-me de certo autarca me ter confidenciado, a propósito de Sócrates, que viera assustado da reunião que acabara de ter com o então ministro do Ambiente. «Perigoso» e «sinistro» foram alguns dos adjectivos utilizados. Pretendia Sócrates, então, espalhar pelo Distrito de Setúbal uma série de equipamentos destinados à queima de resíduos industriais, onde se incluía a famigerada co-incineração na Arrábida. Face à recusa que o autarca manteve, o ministro deixou que a reunião acabasse e, numa conversa de reposteiro, tentou aliciá-lo para a aceitação, prometendo, em troca, a realização de obras no concelho em causa, as quais, de outra maneira nunca seriam feitas.

É pois, este homem que governa Portugal. Um homem que prometeu não aumentar os impostos, mas que os aumentou. Um homem que prometeu referendar a questão do aborto, mas que se prepara para dar o dito por não dito. Um homem que prometeu 150 mil novos postos de trabalho, mas que tem deixado o desemprego tomar o freio nos dentes e atirar milhares de famílias para o beco da angústia e do desespero. Um homem que prometeu transparência e dignificar a governação, mas que tratou logo de encaixar amigos e correligionários em todos os degraus do aparelho do Estado, na linha socialista do infame “jobs for the boys”. Um homem que prometeu justiça social, mas que descarrega sobre os extractos mais débeis da população a factura da crise, deixando intocáveis as grandes fortunas e os grandes rendimentos, que todos os dias engordam e se acrescentam.

É este homem que enviou para a Assembleia da República uma proposta designada por Lei das Águas – que foi aprovada pelo PS, PSD e CDS – e que permite ao Governo vender aos privados toda a água existente em Portugal, dos rios às albufeiras, das praias aos portos, das nascentes aos lagos, dos lençóis freáticos (ou seja, a água que existe debaixo do chão, e onde se abastecem muitas autarquias para servir as populações) até ao mais simples fontanário. O que o socialista Sócrates quer, como quer qualquer ditador de uma qualquer república das bananas, é transformar a água pública, um bem indispensável à vida, num bem privado, numa simples mercadoria destinada a aumentar as fortunas que já fazem de Portugal, nos dias que correm, o país mais injusto da Europa, e onde são maiores as desigualdades entre ricos e pobres.

Pela mão do PS e de Sócrates, os portugueses estão a ficar totalmente nas mãos do poder económico, e só falta saber quando e como será privatizado o ar, a última fronteira da fúria neo-liberal.

Entretanto, numa manobra de diversão tão estúpida como inócua, o Governo arremete contra certas camadas da classe média, a pretexto de moralizar o país. Tirando aos juízes e aos militares, aos magistrados do MP e aos polícias, por exemplo (ou dizendo que o quer fazer), Sócrates apenas pretende dar um ar democrático à sangria que está a impor aos trabalhadores em geral, e assim legitimá-la. Por outro lado, não são os polícias, ou os militares, ou os juízes ou outras profissões com regimes especiais que têm privilégios ou regalias imorais, como agora tanto insistem os comentadores e analistas em afirmar. São os que ainda não beneficiam dessas condições de assistência social que estão mal. A diferença entre o que tem um simples funcionário público ou um vulgar trabalhador por conta de outrem e, por exemplo, um juiz, sendo grande, será sempre menor do que entre aquilo que tem o mesmo juiz e as tais 100 maiores fortunas portuguesas, de que falámos há 8 dias, e que representam 17% do Produto Interno Bruto, ou os tais 20% dos mais ricos, que controlam 45,9% do rendimento nacional (quase metade da riqueza produzida). Aí é que mora a imoralidade, a infâmia, a vergonha – ou a falta dela.

Mas nestas águas dos verdadeiramente ricos não quer pescar José Sócrates, para aí não lhe dá a veneta moralizadora. Entretanto, vai-se chamando privilégios e regalias a tudo o que são direitos – e direitos alguns classificados, até, como Direitos Humanos. E quem o diz, regra geral, é gente com vários e largos tachos, eles, sim, bem regalados nos seus incontáveis privilégios.

Como as coisas se estão a pôr, nada me espanta que, um dia destes, o mais simples e elementar direito, como o de alguém (das classes baixas, note-se) se alimentar convenientemente, ter trabalho e a respectiva remuneração, mandar os filhos à escola ou só pagar uma taxa moderadora para ser visto durante cinco minutos por um médico, passe a ser considerado um privilégio imoral, ou uma regalia incompatível com a situação de crise em que o país está mergulhado.

É o cinismo no seu esplendor. Mas que a isto chegássemos num consulado socialista, só espanta a quem não os conhecer.

Ou fingir que não conhece.

Crónica de João Carlos Pereira - Lida aos microfones da Rádio Baía em 26/10/2005

2 Comments:

Blogger x said...

Caro João Carlos
Não me vou referir em concreto àquilo que têm sido as tuas crónicas - porque na generalidade estou totalmente de acordo com as opiniões que exprimes - mas gostaria que soubesses existirem por aí muitas pessoas que te ouvem na Rádio Baía ou que te lêem aqui no Guia do Seixal.
Fico muito satisfeito por este espaço poder complementar a comunicação oral, com a possibilidade de réplica, ou, como agora se diz, dar a oportunidade ao contraditório.
Só é pena que até agora não tenha existido qualquer comentário às tuas ou às minhas crónicas, independentemente de concordarem ou não com o que escrevemos, parecendo que, quem nos lê, está amordaçado ou não tem coragem para exprimir aquilo que pensa.
Cada vez mais me assusta esta forma de silêncio e de aceitação generalizada daquilo que nos querem impor, não existindo uma séria e forte contestação às medidas ditatoriais do (des)governo que temos.
Pela nossa parte continuaremos a defender as nossas ideias – mesmo que politicamente incorrectas – mas de cabeça levantada e de consciência tranquila.
Aqui fica o repto aos nossos leitores para que colaborem e digam o que lhes vai na alma sem medos e sem qualquer tipo de constrangimentos.
Celino

27/10/05 6:26 da tarde  
Blogger x said...

Caro Amigo Celino
Também eu tenho a noção que, embora sendo uma rádio regional, a Rádio Baía tem uma audiência maior do que poderíamos supor. Curiosamente, encontro pessoas na rua que me dizem ouvir as minhas crónicas das quartas-feiras, a par de outras que apenas pretendem confirmar se aquele João Carlos Pereira referido no programa serei, de facto, eu. Até para o meu e-mail são enviadas algumas mensagens a propósito das minhas «Provocações».
Como o mundo é pequeno, sei que existe um auditório «silencioso», a quem o tema das crónicas afacta e incomoda. São, é claro, os situacionistas, os que comem - ou esperam vir a comer - alguma coisa à conta da democracia em curso, os que batem palmas ao que nos cai em cima, designadamente quando é o partido a que pertencem - ou onde votam - que está no poder. São, quanto a mim, os acéfalos.
Só uma vez, em cerca de ano e meio de crónicas, alguns indivíduos resolveram ligar e rebater o tema em discussão. Com nomes falsos (mas a voz traiu-os...), defenderam a sua dama, no caso o PS e as suas políticas. Tão pobre e tão imbecil foram as intervenções e os argumentos, que, claro está, «levaram para contar». Nunca mais apareceram.
Mas o mais preocupante é o «silêncio dos inocentes», o silêncio daqueles que ainda estão convencidos que o homem nasceu para comer e calar, que a vida é mesmo assim, que sempre houve ricos e pobres, etc, etc.
Há, é claro, uma outra minoria silenciosa, composta pelos profissionais da política, os beneficiários da democracia, pelos instalados, para quem a vida vai correndo bem e a quem interessa que as coisas nada mudem. O poder económico enche-lhes a gamela, e vivem satisfeitos. Até ver...
Mas, afinal, se ninguém contesta com verdade e honestidade os meus pontos de vista, isso só significa que não têm argumentos críveis para o fazer. Só os estúpidos, como os outros que acima referi, caem nessa.
E assim vai o nosso país...
Um abraço.
JC

28/10/05 2:07 da tarde  

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