12/10/2005

Repugnância e satisfação

Tinha prometido a mim mesmo que poria de lado as eleições autárquicas mal elas se realizassem. Mas como isto de promessas, à boa maneira da classe política, não é coisa para levar a sério, deixei-me apanhar pelo vírus, e lá vou eu falar das eleições de domingo.

Antes disso – ou a propósito disso – trago para esta conversa outro enorme coice desse grande democrata, republicano, laico e socialista (salvo seja, claro…), de seu nome Mário Soares, candidato às presidenciais de Janeiro, que resolveu, em local e dia para tal interditos, apelar ao voto no seu querido e rechonchudo menino, que concorria à presidência da Câmara Municipal de Sintra. Olhando o país e as leis da República como coisa sua, de que pode fazer gato-sapato a seu bel-prazer – o que, aliás, faz escola e doutrina no Partido Socialista, de que também é progenitor – o futuro grande derrotado nas eleições presidenciais não percebeu que essa atitude, de tão leviana e estúpida, iria ter consequências desastrosas para a sua imperfeita réplica. É claro que João Soares, o grande amigo de Jonas Savimbi, já tinha o destino traçado em Sintra, mas este apelo do papá, ridículo e desesperado, deve ter retirado mais umas boas centenas de votos ao assimétrico infante, bem como ao seu amigo, o troglodita Jorge Coelho, que também concorria à Assembleia Municipal. Não resisto, a este propósito, a ler parte dum e-mail que uma ouvinte do Barreiro me enviou. Diz ela:

«Fiquei muito contente pelos resultados aqui no Barreiro, e porque dei uma ajuda para tirar daqui os socialistas. Eu fiz o chamado voto útil, mas ajudou o facto de me terem esclarecido sobre o candidato da CDU. Assim, fiquei muito mais à vontade. Também adorei ver o Carmona ganhar em Lisboa e derrotar o snob do Carrilho, mas acima de tudo gostei de ver o Rui Rio pôr KO o mafioso do Pinto da Costa. Este fracasso eleitoral do Assis, que Pinto da Costa veio apoiar publicamente, deve-lhe ter sido mais penoso do que uma qualquer derrota do seu FCP, sabendo-se que estavam interesses em jogo que, com a derrota do Assis, se comprometeram e o devem ter deixado completamente vencido, no tapete. Também acho que o Mário Soares deu a estocada final na sua candidatura: um autêntico balázio no próprio pé. Se alguém tinha dúvidas de que ele está senil, com aquela estupidez de pedir votos para o filho ficou mais que demonstrado que o homem não tem carácter, nem lucidez, nem discernimento. Adorei vê-lo derrapar na sua própria porcaria».

Mas vamos lá às autárquicas e deixemos a família real em paz, a matutar na sua adivinhada decadência, com a cacetada final prevista para daqui a mais ou menos três meses, quando Soares – o velho – perceber que afinal, como ele disse antes, ter voltado à política foi um «erro brutal».

As eleições de Domingo provocaram-me dois sentimentos opostos: de repugnância e de serena satisfação.

De repugnância, quando vi e ouvi a raiva boçal de Fátima Felgueiras, Valentim Loureiro e Avelino Ferreira Torres. Já Isaltino, embora eu considere que, tal como os outros três, não deveria ter-se candidatado enquanto a Justiça não esclarecesse o que deve ser esclarecido, adoptou, no momento da vitória, uma postura bastante mais civilizada e inteligente. Todos eles, no entanto, provaram a força que o caciquismo e a manipulação têm na nossa esfarrapada e decadente democracia. Todos eles, afinal, demonstraram que conhecem bem o país em que vivem e afirmaram, implícita ou explicitamente, que não foram proscritos pelos seus partidos por aquilo que fizeram, mas porque deixaram de ser úteis quando caíram nas malhas da lei.

De repugnância, ainda, quando José Sócrates e outros dirigentes socialistas pretenderam negar duas coisas: negar que o PS sofrera uma derrota estrondosa (ainda maior do que a de 2001); e negar que estes resultados estavam relacionados com o descontentamento dos portugueses em relação à sua governação.

De repugnância, também, quando alguns comentadores políticos se apressaram a seguir a mesma tese, tentando com isso branquear a governação socialista, como se ela, com os seus inúmeros malefícios, não passasse de um mal necessário. Uma fatalidade.

De repugnância, mais uma vez, quando Marques Mendes e Ribeiro e Castro se apressaram a proclamar que, embora a derrota do PS seja um reflexo da sua governação, que é nociva para os portugueses, não pode estar em causa a continuidade do governo nem a sua estabilidade. Então, meus amigos, em que ficamos? Ficamos nisto: para eles, se alguém tem de esfolar os trabalhadores e aplicar políticas desumanas e anti-sociais, então que seja o PS a fazê-lo. Ou seja: não é a natureza da política em curso que preocupa o PSD e o PP. Pelo contrário. Com o PS a governar assim, a direita mata dois coelhos de uma cajadada: vê a sua política concretizada sem custos, porque eles são todos debitados ao Partido Socialista.

Mas, também, um sentimento de serena satisfação… porquê? Porque vi e ouvi Rui Rio, depois de saudar Francisco Assis, voltar-se ostensivamente para as câmaras de televisão e dizer, martelando bem as palavras, que destacava a campanha da CDU, porque tinha sido a única força política sua adversária que não recorreu à mentira nem a manobras sujas durante a campanha.

Serena satisfação, porque ouvi Fernando Seara dizer que ninguém espere que o facto de ter sido reeleito – e por margem ainda mais confortável – possa amolecê-lo e embalá-lo para um mandato pouco exigente ou preocupado com os interesses de Sintra. Ao demonstrar saber os perigos que a habituação ao poder traz consigo, as palavras de Fernando Seara devem ser interiorizadas pelos eleitos de todas as forças políticas.

Serena satisfação, quando Jerónimo de Sousa esclareceu, mais uma vez, que a CDU preferiu perder a Câmara de Redondo, do que apoiar um candidato que valorizou os seus interesses pessoais em prejuízo dos interesses da população e dos princípios do PCP. Para os comunistas, a água não é um bem comercializável, nem deve ser negócio para ninguém, muito menos para quem se diz de esquerda e comunista.

Serena satisfação, porque, contrariando ventos e marés, furacões ideológicos e tsunamis desinformativos, como única força política que não depende do poder económico nem se amanha à mesa do orçamento, que não está na política para se governar em vez de governar, que coloca o país e os seres humanos que o habitam como sua preocupação central, a CDU conseguiu, apesar de várias vezes dada como agonizante e até defunta, mostrar a sua enorme vitalidade e espírito combativo, com a conquista ou reconquista de mais câmaras e mandatos.

Serena satisfação, porque, muito para além das simpatias meramente partidárias, este facto significa que, como disse o poeta, «há sempre alguém que resiste, há sempre alguém que diz NÃO!». Significa que a esperança nunca morre e que, a par dos corruptos e dos oportunistas, dos traidores e dos ambiciosos, dos ladrões e dos mentirosos, há homens e mulheres dispostos a construir uma vida melhor para os seus semelhantes, principalmente para aqueles que mais necessitam. E sem nada quererem em troca.

Serena satisfação, porque sei que se abriu, no passado Domingo, uma janela maior sobre os políticos de todos os partidos. Os autarcas agora eleitos vão estar sujeitos a uma outra atenção das populações e dos seus próprios aparelhos partidários. Se outro mérito não tiveram Fátimas e Valentins, tiveram, pelo menos, o de fazer incidir sobre os detentores de cargos públicos um novo e mais atento olhar.

Na CDU, para além da exigência contínua de trabalho, honestidade e competência, importará, certamente, verificar-se se o trabalho desenvolvido emerge dos princípios ideológicos do PCP e dos seus aliados. Não basta ser-se trabalhador, honesto e competente. Julgo que o que tem mantido vivo e vigoroso o PCP, é ter sabido ser diferente e estar do lado de cá da barricada: do lado das pessoas, dos trabalhadores, dos que mais precisam. Autarca comunista que não entenda assim, autarca da CDU que se deixe desviar pelo sabor do cargo – e que veja nele um fim e não um meio para servir – autarca que envaideça ou se limite a aplicar ou defender medidas neo-liberais, como fazem Sócrates e o resto da direita, não pode merecer a confiança de ninguém, muito menos a do PCP. Que se vá. E vá depressa.

Acabo esta conversa lendo parte de texto de Miguel Urbano Rodrigues, publicado no site http://resistir.info, precisamente a propósito disto:
«Afinal, no Barreiro, como em Serpa, em Peniche como em Moura, ao derrotarmos os responsáveis pela transformação do Portugal de Abril num país imperializado e parasitário, estamos também lutando pelos povos do Iraque, da Venezuela Bolivariana, da Cuba socialista. Por quantos na Terra enfrentam com heroísmo uma engrenagem medonha que ameaça a continuidade da vida».

Crónica de João Carlos Pereira - Lida aos microfones da Rádio Baía em 12/10/2005

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