22/10/2005

Os ricos, os pobres e os camelos

Na segunda-feira passada, foi assinalado o Dia Mundial para a Erradicação da Pobreza. Como acontece sempre que se assinala um dia de qualquer chaga social, toda a gente descarrega a consciência debitando as mais angélicas intenções. Todos têm, para resolver o problema, receitas milagrosas, projectos infalíveis, panaceias fantásticas e, acima de tudo, todos têm a certeza de que ninguém tem culpa do estado a que as coisas chegaram. E assim foi agora. No caso da pobreza e da fome, parece considerar-se que elas são uma fatalidade, uma espécie de cataclismo natural, sem quaisquer responsáveis, por acção ou omissão. Há ricos e pobres, e acabou-se. Talvez umas acções beneméritas, um esforçozinho aqui e acolá, duas mesas redondas, um simpósio, um chilrear de passarões, duas declarações de princípios… e já está. No dia a seguir, já ninguém se lembra de nada… e a vida continua no seu ritmo triturador.

Por estas alturas, também é hábito divulgarem-se estatísticas sobre o tema em questão, verificando nós que, no ano seguinte, nem um só dos problemas focados foi resolvido, como todos eles se agravaram. É assim, também, com a pobreza e a fome que lhe está sempre associada.

Recordo, por isso, alguns dados vindos a lume a propósito do tal Dia Mundial para a Erradicação da Pobreza.

Primeiro (e horripilante): Morrem de fome por dia, em todo o mundo, mais de 2 milhões de seres humanos;

Segundo: Em 2003, morreram de fome 841 milhões de pessoas e, em 2004, esse número subiu para 852 milhões;

Terceiro: No entanto, a ONU garante que o planeta tem recursos suficientes para produzir alimentos para o dobro da população actualmente existente;

Quarto: Portugal é o país da União Europeia onde é maior a desigualdade entre ricos e pobres;

Quinto: No nosso país, por cada cinco habitantes, há um que vive no limiar da miséria, o que dá a vergonhosa cifra de dois milhões de compatriotas nossos que vivem em condições verdadeiramente aviltantes;

Sexto: Esta situação, de acordo com os parâmetros de avaliação internacionais, coloca-nos na condição de um país em vias de desenvolvimento. E contra este facto não há argumentos, mesmo que sejam 10 novos estádios de futebol e outras fantasias absurdas e criminosas;

Sétimo: As 100 maiores fortunas portuguesas representam 17% do Produto Interno Bruto (PIB) e 20% dos mais ricos controlam 45,9% do rendimento nacional (quase metade da riqueza produzida); Se sobre isto se pagasse imposto, o problema do défice já tinha sido resolvido;

«E o Governo não faz nada para atenuar esta situação?», pergunta, entre inquieto e escandalizado, o amigo ouvinte. Claro que faz! Então, não sabemos todos que o PS é um partido socialista, dos trabalhadores, e que está, naturalmente, atento a estes problemas? Então, fique a saber que para combater este vergonhosa situação, o Governo de Sócrates tomou medidas extraordinárias, de largo alcance social, que serão definitivas para erradicar a miséria que avassala o país. «E Quais são?». Quer saber, quer?

Então, oiça: no Dia Mundial da Erradicação da Pobreza, o Governo do engenheiro Sócrates decidiu:

1 - Que o ministro do Trabalho e da Solidariedade Social, Viera da Silva, visitasse a Associação Cais e as instalações da "Escola das Profissões", onde assistiu à evolução de vários projectos de combate à pobreza e à exclusão social na Área Metropolitana de Lisboa;

2 – Que o mesmo ministro presidisse à abertura da sessão de trabalho "Contratos de Desenvolvimento Social – um instrumento contra a pobreza e exclusão social".

E pronto! Uma visita do senhor ministro a uma instituição de solidariedade social e a uma escola de profissões, para além de assentar o traseiro na cadeira central da mesa onde presidiu a uma conversa da treta, chegam para deixarmos de ser um país em vias de desenvolvimento (ou em vias de deslizamento para o Terceiro Mundo), para passarmos logo a país desenvolvido. Um país do pelotão da frente…

Mas como o Governo PS está seriamente empenhado em combater a pobreza, por esta mesma altura, um grupo de doutores e engenheiros, por sinal todos colegas ou camaradas do senhor ministro, fechados numa sala a cheirar a passado, com salazarentas poeiras e mofos marcelistas, decidiu que as tarifas dos transportes públicos deveriam subir quase 4%, atirando para perto dos 8% os aumentos desde o início do ano.

Esta inteligente maneira de motivar os portugueses para o investimento – isto é: para adquirirem transporte privado, no qual passa a ser mais barato um tipo deslocar-se para o emprego ou para a escola, ou para passar a andar a pé, que é porreiro para baixar o colesterol – foi logo acompanhada de mais uma medida de largo alcance social e económico, como foi essa de aumentar o gás e a electricidade em mais 3,7%.

Entretanto, nada de aumentos salariais, antes pelo contrário. Tire-se aos trabalhadores tudo o que puder ser tirado, sem que se corra o risco de eles caírem para o lado de fome e desespero. (Então, depois, quem é trabalhava neste país e produzia, ou transportava, ou distribuía aquilo que os ricos, a tal meia dúzia de pessoas gostam e precisam de comprar e consumir, até mesmo o simples papel higiénico?)

Obrigue-se a malta a trabalhar até aos limites. Pague-se-lhe o mínimo possível, retire-se-lhe, pelos impostos e pela inflação, o último cêntimo perdido no forro do casaco, pois só assim se salvará esta república feudal do descalabro anunciado. Deixe-se aos ricos o problema de não entrarem no reino dos céus, que os camelos passarão pelo fundo de uma agulha, o qual fundo, face à magreza patriótica que nos é imposta, mais parece o arco da Rua Augusta.

«Mas quem são os culpados disto?», oiço alguém murmurar, encostado ao rádio. Apetece-me dizer-lhe que somos nós, os camelos. Mas não digo. Os meus quase trinta e dois anos desta ditadura enfeitada de democracia, permitem-me identificar os principais criminosos – e se houver alguém que não concorde e saiba de mais culpados, ou de outros culpados, que não estes, faça o favor de me informar. Basta ligar para os números do costume.

Até lá, meus amigos, os responsáveis pela nossa fome, pelo nosso atraso, pela nossa apagada e vil tristeza, chamam-se Mário Soares, Pinto Balsemão, Cavaco Silva, António Guterres, Durão Barroso, Santana Lopes e José Sócrates. Têm cúmplices, sim, senhor: todos os ministros e secretários de Estado dos governos que lideraram. Eles tiveram o poder absoluto nas mãos ao longo destes últimos 30 anos. Se aqui – a isto – chegámos, a eles – e só a eles – o devemos.

Deste ponto de vista, podemos chamar aos respectivos partidos, verdadeiras associações criminosas. Mas o ouvinte quer saber mais: «E a quem lucrou o crime?», pergunta. Ao poder económico, pois claro. A sua curiosidade é insaciável: «E quais foram as armas do crime?». O decreto, o decreto-lei, a portaria, o despacho, respondo eu.

«E o voto? Não é também uma arma?», volta a perguntar você.

Devia ser, devia… Mas você não sabe que os camelos são animais que aguentam tudo – até a fome e a sede extrema – sem se queixarem?

E depois, quando é que se viu um camelo aos tiros?

Crónica de João Carlos Pereira - Lida aos microfones da Rádio Baía em 19/10/2005

1997, 2007 © Guia do Seixal

Visões do Seixal Blog Directório Informações Quem Somos Índice