06/10/2005

Essa enorme e possante besta

Foi o holandês Erasmo que um dia caracterizou, com cruel ironia, o povo como sendo «essa enorme e possante besta». A sua obra mais importante, o “Elogio da Loucura”, onde critica a sociedade da época, incluindo a Igreja, da qual era parte, desanca os poderosos de então, ridicularizando-os e expondo a podridão dos poderes instituídos – os poderes do costume: o político, o económico e o eclesiástico.

Sendo o humanista mais célebre do séc. XVI, não espanta sabermos que, apesar de conviver com as mais altas personalidades do seu tempo, não teve a vida fácil. Por exemplo: em 1524 afasta-se das posições de Lutero e vê-se coagido a procurar refúgio em Friburgo, durante alguns anos É aí que escreve os seus “Colloquia”, nos quais as polémicas anti-medieval e anti-monástica, para além da excelente forma literária que a obra assume, resultam da sua visão social bastante avançada para a época.

Mas tudo isto vem a propósito da excelente expressão «enorme e possante besta», que, ainda hoje, quase quinhentos anos depois, muitíssimo bem, na minha modestíssima opinião, nos caracteriza. Hoje, como há meio milénio atrás, poucos são os que sabem – e, sabendo-o, se atrevem a dizê-lo – que o mundo é território de uns quantos – muito poucos – que conseguem, por artes, manhas e artimanhas (ou pela força bruta, se necessário) pôr esta «enorme e possante besta» a encher-lhes as arcas e as panças. Enorme e possante besta e – acrescento eu – quase sempre mansa que nem cordeiro pascal.

Não é assim?! Então, oiçam: há dias, dentro da maior legalidade, se reformou Santana Lopes, com cerca de 600 continhos (e este é dos mais baratuchos). É também dentro da mais estrita legalidade, como não podia deixar de ser, que o socialista Vítor Constâncio se amanha com um ordenado de tal modo indecente (com a garantia de reforma ao fim de cinco anitos de função) que o Governo PS se recusa a dizer a um deputado da AR quanto pagamos nós, com os nossos impostos, ao seu camarada. Consta que é quase o dobro do que aufere o seu homólogo norte-americano. É também dentro da mais absoluta legalidade que a Galp se parece, no dizer da voz do povo – e de um texto que anda por aí a circular, via Internet – com um albergue de parasitas e uma toca de incompetentes.

Tome nota do que diz o povo e diz o texto:

«Um quadro superior da GALP, admitido em 2002, saiu com uma indemnização de 290.000 euros, em 2004. Tinha entrado na GALP pela mão de António Mexia, e saiu de lá para a REFER, quando Mexia passou a ser Ministro das O.P. e Transportes do governo PSD. O filho de Miguel Horta e Costa, recém-licenciado, entrou para a Galp com 28 anos e a receber, desde logo, 6.600 euros mensais. Freitas do Amaral foi consultor da empresa, entre 2003 e 2005, por 6.350 euros/mês, além de gabinete e seguro de vida no valor de 70 meses de ordenado. Manuel Queiró, do PP, era administrador da área de imobiliário, com 8.000 euros/mês.

A contratação de um administrador espanhol incluiu 15 anos de antiguidade, pagamento da casa e do colégio dos filhos, entre outras regalias. Guido Albuquerque, cunhado de Morais Sarmento, foi sacado da ESSO para a GALP. Custo: 17 anos de antiguidade, ordenado de 17.400 euros e seguro de vida igual a 70 meses de ordenado. Ferreira do Amaral, presidente do Conselho de Administração, um cargo não executivo, era remunerado de forma simbólica: três mil euros por mês, pelas presenças. Mas, pouco depois da nomeação, passou a receber PPRs no valor de 10.000 euros, o que dá um ordenado "simbólico" de 13.000 euros. E da badalada reforma de Mira Amaral, já nem vale a pena falarmos…

Outros exemplos: um engenheiro agrónomo, que foi trabalhar para a área financeira a 10.000 euros por mês; uma especialista em Finanças, que foi para o Marketing por 9.800 euros/mês. Neste momento, o presidente da Comissão executiva ganha 30.000 euros e os vogais 17.500. Fernando Gomes, entrou para a administração. Com a nova situação e os novos aumentos, Murteira Nabo passa de 15.000 para 20.000 euros mensais».

É tudo isto que nos faz dizer que o clássico «é fartar, vilanagem», já perdeu cor e força perante este banquete feudal, feito nas barbas e à conta da enorme e possante besta de que falava Erasmo. Do povo. De você, de mim, de todos nós.

Mas enquanto o regabofe decorre, e suas excelências, sempre dentro da maior legalidade, determinam os seus ordenados e as suas reformas ao fim de escassos anos, o PS prepara-se para golpear ainda mais a enorme e possante besta que nós somos. Agora, são quase 2 milhões os trabalhadores que poderão ver as suas reformas futuras reduzidas, se o ministro do Trabalho e da Segurança Social, Vieira da Silva, conseguir fazer acelerar o sistema de transição para a nova fórmula de cálculo das pensões. Os prejudicados pela redução do período de transição defendido pelo governante, são todos os contribuintes para a Segurança Social que têm actualmente entre 30 e 50 anos, isto é, aqueles que começaram a descontar antes de 2001 e que deixarão de ver as suas pensões calculadas com base na média dos últimos dez anos, para passar a ser calculada como a média de todos os anos de contribuições.

Diz o Governo que esta alteração é para garantir a sustentabilidade da Segurança Social. Mas não diz que há milhões de euros que não entram na Segurança Social, porque milhares de empresas não só não pagam o que devem, como ainda ficam com o valor das contribuições que descontaram aos trabalhadores. E dessas empresas, muitas há que faliram ou estão à beira disso, porque as políticas governamentais as têm asfixiado e conduzido à destruição de grande parte do aparelho produtivo.

O que o Governo não diz, para não se desmascarar, é que obedece a Bruxelas nas pescas, na agricultura, na indústria siderúrgica e metalomecânica pesado, e vende a nossa capacidade produtiva a troco de subsídios que, por azar nosso, vão parar sempre aos bolsos dos mesmos, directamente ou através do betão e das obras megalómanas. O que o Governo não diz, é que por cada fábrica que fecha ou que, criminosamente, se deslocaliza para o estrangeiro, são centenas de pessoas que ficam sem emprego, e por isso deixam de contribuir para a Segurança Social, mas vão aumentar a conta do subsídio de desemprego que é pago. Que perdem poder de compra, que deixam de consumir e, por consequência, aumentam o círculo vicioso da redução de vendas / queda de produção / despedimentos / encerramento de empresas / diminuição dos impostos e contribuições / aumento das importações / mais subsídio de desemprego. Tudo isto é igual a crise, a recessão, a descrença, a desespero, a raiva, a vontade de explodir e pôr esta canalha toda com dono.

E o que o Governo esconde, é que foi o governo socialista do engenheiro Guterres que decretou esta medida em 2001, fixando um período de transição, e que é outro governo socialista, este do engenheiro Sócrates, a tentar antecipar a sangria das reformas ainda mais baixas. O que o Governo também esconde, é que, de acordo com um estudo do economista Eugénio Rosa, elaborado a partir de dados oficiais, os lucros líquidos das 500 maiores empresas não financeiras em Portugal somaram, em 2004, 3.111 milhões de euros (623,7 milhões de contos), tendo aumentado neste mesmo ano 42,1% relativamente a 2003. Se considerarmos o período 2001-2004, o aumento dos lucros destas empresas atingiu 86,7%. Estes dados mostram que a crise económica não está a afectar as maiores empresas, revelando-se até como anos dourados, contrariamente ao que sucede com as pequenas e médias empresas.

Diz o economista que aquele crescimento dos lucros parece ter sido conseguido fundamentalmente pela redução da percentagem do VAB (valor da riqueza criada) destinada ao pagamento de impostos ao Estado e ao pagamento de remunerações aos trabalhadores, já que as vendas não registaram o correspondente crescimento.

Um povo que aguenta isto e – pior ainda – alimenta isto com sangue, suor lágrimas e votos, bem pode, como se disse há quinhentos anos, ser considerado uma enorme e possante besta.

É como dizem, perguntando, alguns ouvintes que nos telefonam: «Mas esta gente não abre os olhos?».

Pois não! E nós, os mais lúcidos, os mais esclarecidos? Porque não seremos capazes de lhos abrir?

Crónica de João Carlos Pereira - Lida aos microfones da Rádio Baía em 05/10/2005

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