11/01/2007

PAÍS MODERNO, COMPETITIVO E DESENVOLVIDO

Sempre que o nosso governo pretende explicar as medidas que asfixiam o bom povo português, vem dizer que elas são a única via para nos transformarmos num país, moderno, competitivo e desenvolvido. Assim como quem diz: «Para sermos felizes um dia que há-de vir, é preciso sermos muito infelizes nos dias que correm».

Transpondo esta ideia para a realidade do nosso dia-a-dia, devemos todos sentir uma enorme satisfação quando, por exemplo, sabemos de mais 533 despedimentos promovidos – em nome da nossa felicidade, pois então – por uma multinacional, a Yzaki Saltano. A empresa diz que talvez possa transferir cerca de 100 dos actuais despedidos para a sua fábrica de Vila Nova de Gaia, mas não diz que tem mais 400 despedimentos na calha, quando deixar de produzir as cablagens para o Toyota Avensis.

Seja como for, o que importa reter é que a preocupação dos trabalhadores despedidos em relação ao seu futuro, não tem qualquer razão de ser. Ouvimos os lamentos do costume, coisas do género: «Agora não sei o que vou fazer à minha vida. Tenho encargos para respeitar, como as prestações da casa e do carro, tenho um filho a estudar. Enfim, onde é que eu, com esta idade – e como está hoje o mercado de trabalho – vou arranjar emprego?». Ou como dizia outra: «Ficamos – eu e o meu marido – sem trabalho. Não sei como vai ser o futuro, mas vejo-o muito negro». Como se uma família fosse mais importante do que uma empresa ou, até, do que a própria economia. Gente ignorante, já se vê!

Ora, em vez destes lamentos parvos e nada patrióticos, os trabalhadores deveriam era juntar-se à porta da fábrica, erguerem bem alto bandeiras nacionais, enquanto entoavam, em coro emocionado, o hino nacional, assim como se faz quando joga a nossa querida selecção das quinas. Em suma: deveriam sentir-se orgulhosos por estarem a contribuir, com o seu singelo sacrifício, para a salvação da pátria e para sermos, no futuro, um país moderno, competitivo e desenvolvido.

E o mesmo deveriam fazer os cerca de 70 trabalhadores de uma fábrica de calçado, ali para os lados de Paços de Ferreira, que, para além irem engrossar o exército de desempregados, ainda não receberam os salários de Dezembro. Ou os mais de 200 contemplados com a mesma receita, de outra empresa de construção civil e obras públicas, que, lá para o Norte, resolveu fechar as portas, deixando o pessoal «a arder» com salários em atraso.

Protestam, refilam, lamentam-se. Mas esta gente não perceberá que o desemprego e os salários em atraso são situações absolutamente necessárias à construção de um país moderno, competitivo e, acima de tudo, desenvolvido? Onde está o patriotismo destes portugueses, que só pensam em regalias, privilégios, direitos e coisas absolutamente imorais, como emprego e salários, para depois desatarem por aí a comprar andares de 3 assoalhadas, mais um carro e, ainda por cima, porem os filhos a estudar?!

Novecentos médicos estão impedidos de iniciar o internato no Serviço Nacional de Saúde – e estas coisas acontecem mesmo no país do Choque Tecnológico – porque um erro informático está, há dois meses, a provocar o atraso nas colocações. Dizem as más-línguas – as línguas viperinas – que o erro não passa de um reles embuste para levar o Governo a poupar uns cobres, ainda que à custa de médicos e doentes, pois a colocação desses novos clínicos, se elaborada à mão, era coisa para um dia de trabalho. Este governo era lá capaz de uma pulhice dessas…

Sem nenhum sentido patriótico, nem compreensão pelas ciclópicas tarefas que os nossos governantes têm entre mãos, o presidente da Secção Regional da Ordem dos Médicos do Centro acusou o ministério de «desorganização e incapacidade» por este atraso na entrada ao serviço dos novos médicos internos. Cruel e insensível, acrescentou: «É inacreditável que num país europeu, no século XXI, numa colocação de internos que é feita da mesma forma todos os anos, possa haver uma justificação informática para tentar explicar um atraso de um mês no início da especialidade».

Não percebem os novos médicos, nem o responsável da Ordem, que, para sermos um país moderno, competitivo e desenvolvido, é imprescindível que se usem algumas artimanhas, pois o povo, bronco, ignorante e egoísta como é, não compreenderia as medidas tomadas, se elas não viessem embrulhadas numa desculpa qualquer.

Também as clínicas que fazem tratamentos de hemodiálise parecem não compreender as medidas governamentais para que sejamos, no futuro, o tal país, moderno, competitivo e desenvolvido de que vimos falando. Vejam lá, que querem receber a comparticipação correspondente a cada doente tratado, sem o que não aceitarão mais doentes enviados pelo SNS!

A coisa é muito simples – e explica-se assim: o governo decidiu não pagar, em 2007, às clínicas com quem tem acordos para tratamentos de hemodiálise feitos a doentes enviados pelo SNS, mais do que pagou em 2006. Assim, se – por exemplo – uma clínica, em 2006, tratou 100 doentes e, por isso, recebeu 5 mil euros, em 2007 não receberá nem mais um cêntimo, ainda que venha a tratar um número superior de doentes. É claro que o presidente da associação que representa estas clínicas já disse que, nesse caso, não serão aceites mais doentes, pois considera que, se «não há dinheiro, não há palhaços».

Que ingratidão! Anda o poder político há tantos anos – com justo destaque para o actual governo socialista – a encher a bolsa do sector privado que opera na área da Saúde, à custa dos utentes do serviço público, e agora, que se lhes pede um sacrificiozinho, voltam as costas desta maneira?

Ou será que sou eu que estou a ver mal a coisa, e a ideia é outra, ainda com mais alcance e maior visão política? Para sermos um país moderno, competitivo e desenvolvido não será conveniente despachar já para o jardim das tabuletas uma mão-cheia de doentes com insuficiência renal? Assim como quem vai limpando o país das coisas nefastas e incómodas, que só dão mau aspecto e custam dinheiro, muito dinheiro.

Mais! Não competiria, agora, aos doentes renais a necessitarem de hemodiálise, mostrarem o seu patriotismo e prescindirem, desde já, de todo e qualquer tratamento? Não estariam, assim, como bons portugueses, a aliviar o governo do peso que representam, imolando-se, patrioticamente, a um futuro de modernidade, competitividade e desenvolvimento? Que belo exemplo não seria esse para os restantes doentes crónicos, cujo egoísmo obriga o governo a não fechar tantos serviços como gostaria – e o nosso futuro como país moderno, competitivo e desenvolvido exige!

Queridos ouvintes! Portugueses que me escutam! Façamos, todos nós, um esforço nacional e patriótico em apoio às não menos patrióticas, justas e humaníssimas políticas do Governo PS, liderado pelo senhor engenheiro Sócrates. «A Bem da Nação», abdiquemos já de todo e qualquer direito – seja ele o direito ao trabalho, à remuneração, à educação, à saúde (ou outro qualquer direito) – para que os nossos queridos governantes, sem as forças do bloqueio que, pelo simples facto de estarmos vivos, representamos, possam, em finais deste século – ou, o mais tardar, em inícios do próximo – colocar Portugal entre os países mais modernos, competitivos e desenvolvidos da Europa.

Se ainda houver país, é claro.


Crónica de: João Carlos Pereira
Lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 10/01/2007.
(Não deixe de ouvir em 98.7 Mhz e participar pelos telefones 212277046 ou 212277047 todas as quartas-feiras entre as 09H00 e as 10H00).

1997, 2007 © Guia do Seixal

Visões do Seixal Blog Directório Informações Quem Somos Índice