24/01/2007

POR ESTAS E POR OUTRAS…

Nas «Provocações» de há oito dias, um ouvinte que, pelas posições que aqui defendo, sempre me teceu rasgados elogios e – pelo que dizia – me tinha em grande apreço enquanto cidadão e homem de esquerda, não gostou que, na questão do aborto, eu tivesse manifestado uma posição diferente da sua. Por isso, aparentemente à laia de vingança, logo insinuou que eu seria pessoa de muitas posses, patriarca de uma grande prole, enfim – quem sabe? – um agente da direita reaccionária, insensível e desumano, incapaz de perceber o drama das mulheres que, deliberadamente, abortam – ou, como costuma dizer o povo – fazem os seus desmanchos.

Não vou, hoje, voltar ao tema do aborto – coisa que farei outro dia – principalmente porque a reacção desse ouvinte leva-me a abordar a questão do sectarismo na nossa vida colectiva. Por isso, é bom que diga algumas coisas que, apesar de simples e evidentes, não cabem, segundo parece, na cabeça de muita gente.

Uma delas – e resultado directo do 25 de Abril de 1974 – é que existe liberdade de expressão, direito de opinião e possibilidade de discussão aberta e frontal de qualquer tema. Outra, é que o debate, por mais acalorado, vigoroso e, até, violento que seja, não deve precisar de argumentos baixos ou insinuações mais ou menos torpes, cuja única vantagem é demonstrar que aqueles que desses processos se servem, não têm argumentos válidos para o que pretendem defender. Quem, à falta de melhor, opta pelo baixo ataque pessoal, dá uma péssima imagem de si e, principalmente, das causas pelas quais era suposto lutar.

Outra ainda – e já no que pessoalmente me respeita – é que calar-me ou dizer o contrário do que penso, só para não desagradar a terceiros, ou acompanhar pretensas modernidades, seria, antes de mais, um acto de profunda hipocrisia, para não dizer de enorme cobardia – embora pudesse ser muito simpático. Ou cómodo. Ora, eu não me tenho na conta de cobarde, de mentiroso ou de hipócrita. E acontece, também, que nunca tive medo – nem vergonha – das minhas opções de vida.

Postas as coisas neste pé (e voltando à tal insinuaçãozinha produzida pelo estimado ouvinte, tentando fazer passar a ideia de que eu seria homem de muitas posses) parece-me que houve aqui um tique argumentativo realmente pouco elevado – para não dizer: ligeiramente rasteiro – e que teria como único objectivo desvalorizar a minha opinião, porque contrária à sua. Quase que lhe notei – se os ouvidos e a intuição não me atraiçoaram – uma vontade incontrolável de ofender, de magoar, de me castigar pela minha «afoiteza». Assim como quem diz: «Pelo “Sim” ao aborto estão os pobres e injustiçados sociais, os desfavorecidos, as pessoas que têm dificuldades na vida, enfim, os democratas autênticos, os verdadeiros revolucionários; pelo “Não”, estão todos os outros: os ricalhaços, os indiferentes aos problemas sociais, enfim, a gente má e egoísta deste mundo». Ao pretender colocar-me, como castigo pela minha ousadia em obedecer à minha consciência, e só a ela, numa trincheira onde eu não estou – o que ele está farto de saber – o ouvinte deu mostras, pelo menos, de falta de espírito democrático e – bem pior – de uma evidente má-fé. Direi mesmo: de um sectarismo primário.

Gostaria, por isso, de ilustrar o que então lhe respondi, apenas para que ele possa compreender a dimensão da sua injustiça. Tenho uma vida modesta, igual à de milhões de portugueses, conseguida, apenas, com o meu trabalho e o da minha família, o que é público e notório. Vivo num andar de três assoalhadas, tenho um carro familiar e, como única extravagância, uma mota já com uns anitos, comprada a prestações, tal como o carro. Não viajo, não gozo férias no estrangeiro, e a última saída que fiz, digna desse nome, registou-se há cerca de um ano, quando acompanhei, por razões de saúde, um familiar a tratamento termal. Ah! É verdade: leio muito, oiço boa música. E vou, de vez em quando, assistir a jogos do meu clube.

Quanto ao resto, dei ao mundo quatro filhos – um deles, infelizmente, já não está entre nós – e tive, durante anos a fio, de fazer das tripas coração para os conseguir criar. Quando a minha mulher engravidou do segundo, estava eu na tropa – e numa especialidade e com uma classificação de curso que me levaria a ser dos últimos a ser mobilizado. A minha mulher era operária, ganhava a miséria que se calcula, e eu ganhava, então, apenas 90 escudos por mês, que era o que me pagava a tropa, como miliciano. Face à situação, resolvi antecipar a inevitável mobilização, oferecendo-me como voluntário. Decorria o ano de 1964.

Quando voltei e passei à vida civil, logo ficámos à espera do terceiro filho, que nasceu em 1968, tendo o quarto vindo ao mundo em Março de 1974. Apesar de não «virem nada a calhar», nunca pensei em recorrer ao aborto, porque, já nessa altura, me parecia um acto violento, sujo e, por conseguinte, indigno de um ser humano. Arranjei trabalhos em part-time, nunca fugi a uma hora extraordinária e, como disse, privei-me de muita coisa – comida incluída – para que aos meus filhos não faltasse o essencial. Tenho orgulho nisso e felicito-me, hoje, por não ter sido egoísta. Não tenho vergonha do que passei, mas sei que teria muita vergonha e muitos remorsos se, por pensar apenas no meu bem-estar pessoal, tivesse impedido os meus filhos de estarem cá.

Acrescento, a talhe de foice, que a minha mulher e um dos meus filhos têm ordenados em atraso do tempo em que trabalhavam na Mundet, o que também contribuiu para que alguns anos da nossa vida, já mais recentes, ainda tivessem sido mais difíceis. Por isso, quando oiço um ouvinte dizer-me, contrariado por, neste particular, eu não alinhar com os seus pontos de vista, que serei um homem de bastos rendimentos, bem na vida, e que só por isso sou contra o aborto, só me resta dar esta explicação e encolher os ombros com alguma piedade por tão fraca capacidade argumentativa. E por tão feios argumentos, se argumento se pode chamar a tão despropositada reacção.

Esclareço o mesmo ouvinte que, com pouco mais de dois anos de idade, a minha mãe se viu obrigada a entregar-me aos cuidados dos meus avós paternos, pois o meu pai abandonara-a mal ela ficou grávida de mim. Como a vida em casa dos meus avós não era farta, visto que só o meu avô trabalhava (era sapateiro de profissão), tive uma infância e juventude bastante complicadas, pois, apesar do carinho com que os meus avós sempre me trataram, a verdade é que fui criado sem saber o que era a presença efectiva de pai e mãe. Contudo – e olhando para trás – só posso agradecer à memória dos meus pais por, apesar dos trambolhões e das pancadas que a vida lhes deu – e que, certamente, eles deram na vida – não tenham optado por impedir o meu nascimento.

Assim, e apesar de ter comido, desde pequeno – e em grande parte da minha existência – o pão que o diabo amassou, ter podido vir ao mundo e fazer o meu caminho, é algo de tão bom, que não sei traduzi-lo em palavras. Ou sei dizer apenas: «Obrigado, mãe, por teres posto a minha vida à frente e acima da tua».

Não é fácil expor assim, publicamente, grande parte da minha vida. Talvez nem a necessidade de responder à insídia justifique esta auto-invasão da minha intimidade. Provavelmente, até alguns ouvintes acharão excessivo este relato, considerando que estas confissões são resposta desnecessária a comentários infelizes. Pode ser. Mas está feito.

Aliás, acho que combater o sectarismo e a intolerância exige e justifica esta quase imolação. Custa-me, acima de tudo, que, 33 anos após o 25 de Abril, nem todos nós tenhamos aprendido as regras democráticas essenciais e, principalmente, que se faça do insulto – ou da tentativa de insulto, porque não insulta nem ofende quem quer – uma das armas do debate democrático. Talvez por isso, certas ideias e certos ideais acabem incompreendidos e prejudicados, já que são defendidos por tão fracos defensores.

E é, também, por estas e por outras, que os cravos vão murchando, vão murchando, vão murchando…


Crónica de: João Carlos Pereira
Lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 24/01/2007.
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