31/01/2009

A ESPELUNCA

E, de repente, aquilo que parecia inviável – e já por duas vezes fora rejeitado – apareceu aprovado em poucos dias. Num vê-se-te-avias. O país ia ter, finalmente, um empreendimento fantástico e nunca visto cá na parvónia, uma espécie de centro comercial a céu aberto, com uns repuxos e outras tretas. Pouco importava se ficava em cima – e até abocanhava um bom bocado – de uma Zona de Protecção Especial do Estuário do Tejo, reconhecida e protegida pela própria União Europeia. O que interessava era que o negócio ficasse assente antes que as eleições legislativas, que iriam ter lugar daí a dias, pudessem pôr as rédeas noutras mãos, como se previa e, de facto, aconteceu. As rédeas e, como logo se disse (em 2002), as luvas.

Milagre! gritaram uns, a começar pelo presidente do Câmara Municipal de Alcochete (um empresário socialista, cuja principal acção à frente da autarquia foi dar tacho a um número incalculável de boys e girls), e a acabar no ministro do Ambiente, o então ainda pouco conhecido José Sócrates Pinto de Sousa. Milagre! gritou também Pedro Nunes, ex-sócio do inglês, Smith, que esteve desde o início no negócio da FreePort, da qual chegou a ser administrador, e é conhecido em Alcochete como o Mané Pedro, e também ele ligado ao PS.

Aldrabice! gritaram outros, já que Fátima não fica por aquelas bandas, e não consta que a Santa se preocupe com negociatas de natureza tão terrena e, acima de tudo, duvidosas.

De facto, a coisa cheirava a esturro. As mentes doentias logo disseram que por ali andavam fumos de corrupção. O primeiro juiz de instrução do que ficou conhecido como caso FreePort, estranhou a «celeridade invulgar» e «um andamento inusitado» no processo, segundo o que escreveu num despacho de Fevereiro de 2005. «O processo que conduziu à construção e funcionamento do complexo industrial apresenta várias irregularidades e um andamento inusitado», escreve o magistrado do Tribunal do Montijo, no despacho datado de Fevereiro de 2005. O juiz salientou ainda que, quando o projecto obteve o parecer pretendido, o desenvolvimento do processo «conheceu uma celeridade invulgar, decorrendo em 20 dias e não nos 100 dias usuais». Apesar de não ter licença de utilização, o FreePort foi inaugurado em Setembro de 2004.

Antes disso, o projecto tinha recebido pareceres desfavoráveis em dois estudos de impacto ambiental, de Outubro de 2000 e Dezembro de 2001. A terceira avaliação ambiental, de Janeiro de 2002, acabou na aprovação do projecto, a 14 de Março do mesmo ano. Nesse mesmo dia, zelosamente, o Governo alterou os limites da Zona de Protecção Especial (ZPE) do Estuário do Tejo, criada em 1994 com cerca de 44 mil hectares. A ideia desta área era proteger uma zona especial de interesse para a conservação da avifauna, servindo de tampão entre zonas naturais mais relevantes e espaços urbanos. Ao diabo a Natureza, já que a outra natureza – a humana – tem prioridades bem mais exigentes.

Por essa altura – e segundo a polícia inglesa apurou – saíram de Inglaterra, onde os promotores do FreePort tinham sede, 4 milhões de euros a caminho de Portugal e, se milagre foi a aprovação do projecto, no Santuário de Fátima esse valor não entrou. Nem na Santa Casa da Misericórdia de Alcochete. Nem no meu bolso, nem de nenhum tio, primo ou qualquer parente meu. Nem – presumo eu – no seu bolso, amigo ouvinte/leitor. Para onde foi, nesse caso, a bagalhuça? Penso – e volto a pensar – e o que me vem logo à cabeça é que tudo isto só pode ser uma miserável cabala para deixar alguém muito mal visto. Se calhar, nem o FreePort existe. É tudo uma ilusão. Um passe de mágica.

Apesar disso, por altura da luz verde dada pelo Ministério do Ambiente à construção do FreePort de Alcochete, o então Instituto de Conservação da Natureza, que dependia do MA, ultimou também um acordo de cedência de uma das suas instalações na zona à empresa Smith & Pedro. É sobre esta firma de consultoria que recaem suspeitas de «pagamentos corruptos» no âmbito do licenciamento daquele empreendimento. A existência do acordo foi confirmada ao jornal PÚBLICO por um dos responsáveis da Associação Portuguesa de Guardas e Vigilantes da Natureza, que na altura denunciou o caso. E se o senhor Smith garante que nunca reuniu com Sócrates, o seu sócio, o tal senhor Pedro, afirma que, sim, senhor, reuniu com o cavalheiro. Sócrates não se lembra. Acontece, às vezes, termos memórias selectivas…

(Sócrates também não se lembrava de ter sido sócio da Sovenco, empresa criada em 1990, destinada à venda de combustíveis, que, para além de Sócrates, tinha como sócios Fátima Felgueiras, Armando Vara e Virgílio de Sousa. De D. Fátima, todos sabemos a história – e as histórias. De Vara, sabemos muito, mas poucos sabem que foi condenado a 4 anos de prisão com a pena suspensa. Foi corrido do governo de Guterres, pelo próprio Jorge Sampaio, devido aos escândalos da célebre Fundação para a Prevenção e Segurança, mas é hoje administrador do BCP. Virgílio de Sousa, esse, foi condenado a prisão devido a um processo de corrupção no Centro de Exames de Condução de Tábua. Exemplar. Tudo bons rapazes!).

Sócrates, é claro, irritou-se com as notícias sobre o FreePort. Disparou para esquerda e para a direita, para cima e para baixo. Sócrates é impoluto. Nunca mente. Nunca pratica uma acção menos boa, quanto mais uma má acção… Relembre-se o caso exemplar da sua licenciatura.

Da Universidade Independente nem vale a pena falar, pois as histórias vindas a público e o seu consequente encerramento (pelo governo de Sócrates, ora bem…) dizem tudo. Só os tolos não perceberam que aquilo era uma fábrica de canudos e de outras coisas ainda mais repugnantes. Ao ser encerrada, encerrou-se também a hipótese de vasculhar os seus arquivos e perceber que espelunca seria aquela. Quantas provas não desapareceram desde então?

Mas vamos à licenciatura. Na VI Legislatura, José Sócrates entrega na Assembleia da República, um Registo Biográfico onde consta, escrito pelo seu punho, que a sua profissão é a de «engenheiro» e que as suas habilitações literárias são «engenharia civil». Tal e qual. Como se sabe, quando esta mentirinha foi descoberta, logo apareceu uma segunda versão desse mesmo documento. E onde estava escrito «engenheiro», foi acrescentada a palavra «técnico», e onde estava escrito «engenharia civil» foi igualmente acrescentado, em espaço anterior, a abreviatura «bach», de Bacharelato, que era o que ele tinha.

Isto é: o Registo Biográfico de José Sócrates foi rasurado, alterado, adulterado por ele próprio, sem que alguém responsável na Assembleia da República consiga explicar como é que isso foi possível. E nada lhe aconteceu. Ou seja: continuamos num ambiente de espelunca.

Ora, em 31 de Julho de 1979, termina o Bacharelato no Instituto Politécnico de Coimbra, apenas com média de 12 valores. Mais tarde, em 27 de Dezembro de 1994, o aluno n.º 20.382, José Sócrates Carvalho Pinto de Sousa, inscreve-se no Instituto Politécnico de Lisboa, no curso de Transportes e Vias de Comunicação. Repentinamente, assim que toma conhecimento que a UnI foi aprovada pela portaria 496/95 de 24 de Maio de 1995, sem que se conheça qualquer justificação, muda-se de armas e bagagens para esta instituição. É aqui, neste local, que haveria de se revelar um antro de facilitismo e promiscuidade, que José Sócrates consegue aquilo que sempre ambicionou – uma «licenciatura» em Engenharia.

Eu recordo como.

Das 31 cadeiras que teria de fazer, deram-lhe equivalência a 26.

Nem mais, nem menos... 26 disciplinas. Assim, apenas teria de fazer... 5 disciplinas!

Mas isto não fica por aqui. Destas 5 disciplinas que lhe faltava fazer, 4 delas – os chamados "cadeirões", por serem as mais difíceis – foram dadas por um único professor, por sinal seu amigo e conhecido de longa data, de nome António José Morais, adjunto do secretário de Estado – e também seu amigo e velho compagnon de route, – Armando Vara e colega do mesmo governo em que estava nessa altura José Sócrates, como secretário de Estado adjunto. Que notas o amigo professor Morais lhe deu? Análise de Estruturas – 17; Projecto e Dissertação – 18 (dezoito); Betão Armado e Pré Esforçado – 18 (dezoito); Estruturas Especiais – 16 (dezasseis).

Nada mau, para quem vinha com média de 12 do Politécnico. Ah! É verdade, e nessa altura José Sócrates ainda era secretário de Estado adjunto do Ministro do Ambiente, tinha pouco tempo para estudar, para trabalhos e para aulas e preparação de exames. Vejam bem que notas ele teria se tivesse mais tempo para se dedicar às aulas.

Mas falta ainda a cereja em cima do bolo. Uma cadeira, de entre as 5 que o «obrigaram» a fazer – Inglês Técnico. Teve 15. Isso mesmo, teve 15. Foi seu professor o reitor Luís Arouca, entretanto preso por falsificação de documentos. Ao Arouca, enviou Sócrates um fax, em papel timbrado do Ministério do Ambiente, do Gabinete do Secretário de Estado Adjunto, numa clara atitude de promiscuidade e de pressão, terminando de forma muito pouco formal e excessivamente familiar, com um "Seu Sócrates".

Ora, para concluir toda esta trapalhada, o certificado de Habilitações da UnI, lá diz que «concluiu o curso em 08-09-1996» que, curiosamente, foi a um...domingo. Ele há cada uma...

E se estas coisas mirabolantes vos recordo, é porque há muita gente, nesta espelunca chamada Portugal, que gostaria de ver morto e enterrado este processo. Que vive e convive bem com estas baixezas, numa constante negação da realidade.

E porque, naturalmente, quero que percebamos bem o país em que vivemos e que gente nos governa.

Universidade Independente. FreePort. Tábuas da mesma canoa.


Lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 28/01/2008.
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