30/12/2008

A NEGAÇÃO DO NATAL

Já vivi muitos natais. Nasci no tempo da II Grande Guerra, que terminou quando eu tinha três anos. Ainda me lembro de ver, em casa dos meus avós, onde vivia, as célebres senhas do racionamento. Cresci em tempos difíceis, pesados como chumbo. Na escola da Câmara, a 13, das Amoreiras, onde fiz a quarta classe, muitos dos alunos da minha turma iam para a escola de pé descalço, levando uma alcofa com uma panela para, depois das aulas, irem para a fila da sopa dos pobres – a chamada Sopa do Sidónio – ali na Rua de Campolide, ao pé do asilo das Irmãzinhas dos Pobres, instituição que ainda lá está.

A tuberculose, nessa altura, era uma doença fatal, que alastrava impiedosamente. Tal como a fome. Lembro-me de ouvir os lamentos da minha avó, aflita para gerir os parcos recursos da casa, provenientes da magra mesada que o meu pai deixava, e da féria que o meu avô trazia para casa todos os sábados, umas notas de vinte que espalhava em leque, no velho toucador, como se a disposição do dinheiro o fizesse parecer um pouco mais.

A minha tia, solteirona – e que me dedicou toda a sua vida, como se dum filho se tratasse – era uma católica convicta que, todos os anos, armava um presépio no largo parapeito de uma janela da sala de jantar. Nessa tarefa a ajudava, coisa que fazia com prazer, pois gostava de construir caminhos minuciosos, dispor o musgo, encher de algodão a paisagem, imitando neve, esforçando-me para que, ano após ano, o presépio tivesse uma configuração variada. Por isso, o Menino Jesus nascia todos os anos num sítio diferente – num estábulo, numas velhas ruínas, numa gruta, eu sei lá… – já que, para além das imagens tradicionais, tudo o resto era construído por nós. Ela incentivava-me nessa acção criativa.

Sem nunca me sentir atraído pela religião – para grande mágoa dela – o presépio, no entanto, representava para mim uma lição de amor e solidariedade, uma história bonita e doce, algo que só podia trazer ao mundo paz e felicidade. Aquelas figurinhas de barro eram, na minha imaginação, miniaturas de pessoas de carne e osso, que me adoçavam a existência ano após ano, pedindo tréguas numa guerra de sobrevivência que durava o resto do ano.

Longe vão esses tempos de inocência e sonho. O século XX, afinal, não foi um século de paz, de harmonia, de justiça, de solidariedade. Pelo contrário. Para quem acreditar em Deus e no Diabo, não será difícil concluir que, nesse século que há pouco acabou, o Diabo levou a melhor. A humanidade conheceu as duas mais sangrentas e mortíferas guerras da sua história, a par de muitas outras de menor dimensão. O mundo transformou-se num palco de violência, determinada pela ganância e pelo saque que os poderosos levam a efeito sobre os mais fracos e desprotegidos.

Celebra-se o Natal, mas a sua mensagem essencial não tem espaço nem força. Se Cristo veio ao mundo – como filho de Deus, como alguns acreditam, ou, apenas, como simples mortal – para dizer aos homens que todos são iguais e que todos devem viver em paz, de forma solidária e num clima de justiça e fraternidade, o mundo cristão está-se nas tintas para isso. Nunca as sociedades foram tão desiguais, violentas e desumanas. Olhe-se para a história dos últimos cem anos, e veja-se como a civilização ocidental, de raiz cristã, tem estado na origem dos maiores conflitos de sempre, levando a todos os pontos do globo a morte e a destruição em massa. Quem lançou as chamas do nuclear sobre populações indefesas em Iroshima e Nagazaki? Quem lançou toneladas de napalm sobre civis no Vietname? Quem produziu arsenais de armas químicas e as vendeu aos seus aliados conjunturais, e depois os enforcou, por serem criminosos de guerra? Quem saqueia meio mundo, para manter níveis de vida incomportáveis, e faz do negócio das armas uma das suas principais fontes de rendimento?

Quem, depois disto tudo, fala em Cristo e em Deus, como se Cristo e Deus – ou a ideia deles – se pudessem associar a estes crimes?

Mas amanhã é Natal. Um Natal sem paz, sem igualdade, sem justiça, sem amor, sem solidariedade. Um Natal de faz de conta, onde nem o espírito consumista é o que era. As lojas estão às moscas. A baixa, que outrora fervilhava de gente nesta altura do ano, atarefada nas últimas compras natalícias, é um deserto.

Um povo triste encolhe-se em lares frios e vazios de esperança. Desemprego, salários em atraso, baixíssimos salários e reformas, insegurança, medo do futuro. Desdobram-se as televisões na cobertura de acções de solidariedade, que apenas servem para nos mostrar como a miséria alastra por aí e, aviltantemente, é tida como uma coisa natural e comum. Há idosos e crianças com fome, e são vistos como se de habituais decorações de Natal se tratasse. Tudo está bem porque, nesta altura, conseguem-se umas refeiçõezinhas e umas roupitas velhas para atenuar a coisa.

Num país que se diz católico, apenas uma percentagem ínfima da população vive muito bem. As leis são feitas a seu favor e provocam, em consequência, o alastramento das carências – e, até, da miséria extrema – nos restantes extractos sociais. O Código do Trabalho, por exemplo, não é só um instrumento anti-social e anti-democrático. É, também, a negação da mensagem de Cristo.

Assim, duma ou de outra forma, todas as injustiças sociais que sofríamos no tempo do fascismo aí estão, em crescendo. E até a tuberculose volta a florescer, sendo Portugal o país europeu onde a doença mais se faz sentir. Não há palavras mansas – nem cínicas – que apaguem ou disfarcem esta realidade.

«Em verdade vos digo que mais fácil será um camelo passar pelo fundo de uma agulha, que um rico entrar no reino dos céus», terá dito Cristo. Parece-me que os ricos se estão nas tintas para o aviso, provavelmente porque apenas fingem que crêem nas palavras divinas.

Então, lembremo-nos doutras. Aquelas que relatam como os vendilhões foram corridos do templo, pelo mesmo Cristo, à força de chicote.

Estamos à espera de quê?

Um bom Natal!


Lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 24/12/2008.
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