23/11/2008

O PARTO DOS MONTES

Bush mostrava-se feliz com Lula à sua direita, no jantar da Cimeira. À esquerda, colocou Hu Jintao, a quem respeita pelo enorme mercado do seu país, pela capacidade de produzir bens de consumo a baixo preço e pelo caudal das suas reservas em dólares e bónus dos Estados Unidos.

Medvedev, a quem ataca com a ameaça de colocar os radares e os mísseis estratégicos nucleares próximos de Moscovo, foi colocado num assento distante do anfitrião da Casa Branca.

O rei da Arábia Saudita, um país que produzirá num futuro próximo 15 milhões de toneladas de petróleo leve a preços altamente competitivos, ficou também à sua esquerda, junto de Hu.

O seu aliado mais fiel na Europa, Gordon Brown, primeiro-ministro do Reino Unido, não aparecia perto dele na mídia.

Nicolas Sarkozy, descontente com a ordem financeira actual, ficou distante dele, com o semblante descontente.

Ao presidente do governo espanhol, José Luís Rodríguez Zapatero, vítima do ressentimento pessoal de Bush, presente no encontro de Washington, nem sequer o vi nas imagens televisivas do jantar.

Assim, foram colocados os participantes no banquete.

Qualquer um teria pensado que no dia seguinte se produziria o debate de fundo sobre o complicado tema.

Cedo, na manhã seguinte, as agências informavam sobre o programa que teria lugar no National Building Museum de Washington. Cada segundo estava programado. Seriam analisadas a crise actual e as medidas a serem tomadas. Começaria às 11h30, hora local. Primeiro, sessão fotográfica: "fotos de família", como as chamou Bush; vinte minutos depois, a primeira sessão plenária, seguida de uma segunda, na metade do dia. Tudo rigorosamente programado, até os nobres serviços sanitários.

Os discursos e análises durariam aproximadamente três horas e 30 minutos. Às15h25 (hora local), o almoço. A seguir, às 17h05, declaração final. Uma hora depois, às 18h05, Bush iria descansar, jantar e dormir placidamente em Camp David.

O dia decorria, para os que acompanhavam o evento, com a impaciência para saber como em tão pouco tempo, seriam abordados os problemas do planeta e da espécie humana. Estava anunciada uma declaração final.

O facto real é que a declaração final da Cúpula foi elaborada por assessores económicos pré-seleccionados, bastante afins ao pensamento neoliberal, enquanto Bush nos seus pronunciamentos pré e pós-Cúpula exigia mais poder e mais dinheiro para o Fundo Monetário Internacional, para o Banco Mundial e para outras instituições mundiais que estão sob o rigoroso controle dos Estados Unidos e dos seus aliados mais próximos. Esse país tinha decidido injectar US$700 bilhões para salvar os seus bancos e as suas empresas transnacionais. A Europa oferecia uma cifra igual ou maior. O Japão, o seu mais firme alicerce na Ásia, prometera uma contribuição de US$100 bilhões. Esperam da República Popular da China, que desenvolva crescentes e convenientes vínculos comerciais com os países da América Latina, outra contribuição de US$100 bilhões procedentes das suas reservas.

De onde sairão tantos dólares, euros e libras esterlinas a não ser endividando seriamente as novas gerações? Como se pode construir o edifício da economia mundial sobre notas de papel, que é o que realmente se está colocando em circulação, quando o país que os emite está sofrendo um enorme deficit fiscal? Valeria a pena tanta viagem aérea rumo a um ponto do planeta chamado Washington para se reunir com um presidente a quem lhe restam apenas 60 dias de governo, e assinar um documento que já estava formulado de antemão para ser aprovado no Washington Museum? Teria razão a comunicação radiofónica, televisiva e escrita dos Estados Unidos ao não dar destaque especial a esse velho jogo imperialista desta enfadada reunião?

O inacreditável é a própria declaração final, aprovada por consenso dos participantes do evento. É óbvio que constitui uma aceitação plena das exigências de Bush, antes e durante a Cúpula. A vários países participantes não restava outra alternativa que aprová-la; na sua luta desesperada pelo desenvolvimento, não desejavam ficar isolados dos mais ricos e poderosos, bem como das suas instituições financeiras, que constituem a maioria no seio do Grupo G-20.

Bush falou com verdadeira euforia, usando palavras demagógicas, leu frases que retratam a declaração final:

"A primeira decisão que tive que adoptar ― disse ― foi indicar quem viria à reunião. Decidi que deveriam estar presentes as nações do Grupo dos 20, em lugar de apenas o Grupo dos Oito ou o Grupo dos Treze.

"Mas, uma vez adoptada a decisão de ter o Grupo dos 20, a pergunta fundamental é com quantas nações de seis continentes, que representam diferentes etapas de desenvolvimento económico, será possível chegar a acordos que sejam substanciais, e me compraz informar-lhes que a resposta a essa pergunta é que o conseguimos.

"Os Estados Unidos tomaram algumas medidas extraordinárias. Os senhores que acompanharam a minha carreira, sabem; eu sou um partidário do livre mercado, e se a gente não toma medidas decisivas, é possível que o nosso país se afunde numa depressão mais terrível que a Grande Depressão."

"Começámos a trabalhar recentemente com o fundo de US$700 bilhões que está começando a libertar dinheiro para os bancos."

"Portanto, todos entendemos a necessidade de promover políticas económicas a favor do crescimento."

"A transparência é muito importante para que os investidores e os reguladores possam saber exactamente o que está acontecendo."

O texto do resto do que disse Bush é do mesmo estilo.

A declaração final da Cúpula, que, pela sua extensão precisa de meia hora para ser lida em público, define-se num grupo de parágrafos seleccionados:

"Nós, líderes do Grupo dos 20, celebrámos uma reunião inicial em Washington no dia 15 de Novembro entre sérios desafios para a economia e para os mercados financeiros mundiais…"

"…devemos colocar as bases para uma reforma que nos ajude a assegurar-nos que uma crise global como esta não volte a acontecer. O nosso trabalho deve estar norteado pelos princípios do mercado, pelo regime de livre comércio e investimento…"

"…os actores do mercado procuraram rentabilidades mais altas sem uma avaliação adequada dos riscos, e fracassaram…"

"As autoridades, reguladores e supervisores de alguns países desenvolvidos não constataram nem deduziram adequadamente os riscos que se geravam nos mercados financeiros…"

"…as políticas macroeconómicas insuficientes e as suas coordenadas inconsistentes, e as inadequadas reformas estruturais, conduziram a um insustentável resultado macroeconómico global."

"Muitas economias emergentes, que ajudaram a sustentar a economia mundial, sofrem cada vez mais o impacto do obstáculo mundial."

"Sublinhamos o importante papel do FMI na resposta à crise, saudamos o novo mecanismo de liquidez a curto prazo e urgimos para a contínua revisão dos seus instrumentos para garantir a flexibilidade.

"Encorajaremos o Banco Mundial e outros bancos multilaterais de desenvolvimento para usarem a sua plena capacidade em apoio da sua agenda de ajuda…"

"Garantiremos que o FMI, o Banco Mundial e os outros bancos multilaterais de desenvolvimento tenham os recursos suficientes para continuar desempenhando o seu papel na resolução da crise."

"Exercitaremos uma forte vigilância sobre as agências de crédito, com o desenvolvimento de um código de conduta internacional."

"Comprometemo-nos a proteger a integridade dos mercados financeiros do mundo, reforçando a protecção do investidor e do consumidor."

"Estamos comprometidos a avançar na reforma das instituições de Bretton Woods, de maneira a que possam reflectir as mudanças na economia mundial para incrementar a sua legitimidade e efectividade."

"Reunir-nos-emos de novo no dia 30 de Abril de 2009 para rever a entrada em funcionamento dos princípios e decisões tomadas hoje."

"Admitimos que estas reformas só terão sucesso se estiverem baseadas no compromisso com os princípios do livre mercado, incluindo o império da lei, respeito à propriedade privada, investimento e comércio livre, mercados competitivos e eficientes e sistemas financeiros regulados efectivamente."

"Abster-nos-emos de colocar barreiras ao investimento e ao comércio de bens e serviços."

"Estamos cientes do impacto da actual crise nos países em desenvolvimento, de modo especial, nos mais vulneráveis.

"Enquanto avançamos, temos a certeza de que mediante a colaboração, a cooperação e o multilateralismo superaremos os desafios que temos diante de nós e conseguiremos restabelecer a estabilidade e a prosperidade na economia mundial."

Linguagem tecnocrática, inacessível para as massas.

Cortesia ao império, que não recebe crítica alguma aos seus métodos abusivos.

Louvores ao FMI, ao Banco Mundial e às organizações multilaterais de créditos, criadores de dívidas, despesas burocráticas fabulosas e investimentos encaminhados ao fornecimento de matérias-primas às grandes transnacionais, que, além disso, são responsáveis pela crise.

E assim por diante, até ao último parágrafo. É aborrecida, repleta de lugares comuns. Não disse absolutamente nada. Foi subscrita por Bush, campeão do neoliberalismo, responsável por chacinas e guerras genocidas, que investiu nas suas aventuras sangrentas todo o dinheiro que teria sido suficiente para mudar a face económica do mundo.

No documento não se diz uma só palavra do absurdo da política de converter os alimentos em combustível que propugnam os Estados Unidos, do intercâmbio desigual de que somos vítimas, nós, os povos do Terceiro Mundo, nem sobre a estéril corrida armamentista, produção e comércio de armas, ruptura do equilíbrio ecológico, e as gravíssimas ameaças à paz que colocam o mundo à beira do extermínio.

Só uma pequena frase perdida no longo documento menciona a necessidade de "encarar a mudança climática", quatro palavras.

Pela declaração ver-se-á como os países presentes no conclave demandam reunir-se de novo em Abril de 2009, no Reino Unido, no Japão ou em qualquer outro país que possua os requisitos adequados ― ninguém sabe qual ― para analisar a situação das finanças mundiais, com o sonho de que as crises cíclicas nunca voltem a repetir-se com as suas dramáticas consequências.

Agora caberá aos teóricos de esquerda e de direita opinarem fria ou acaloradamente sobre o documento.

Do meu ponto de vista, não foram tocados nem com a pétala de uma flor os privilégios do império. Quem tiver a paciência necessária para lê-lo do princípio ao fim, poderá constatar como se trata simplesmente de um apelo piedoso à ética do país mais poderoso do planeta, tecnológica e militarmente, na época da globalização da economia, como quem roga ao lobo que não devore o Capuchinho Vermelho.


Fidel Castro Ruz

1997, 2007 © Guia do Seixal

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