23/08/2006

VER E VIVER A HISTÓRIA

Quem ouve ou quem lê estas «provocações» com regularidade, já deve ter percebido que não evito – e que até desejo – o debate de ideias, a discussão dos temas que aqui trago – ou outros que os ouvintes queiram colocar – mas sempre numa base de elevação e inteligência argumentativa.

A ironia, a agressividade, a causticidade, a frase ou a palavra mais duras, que definam a revolta face às injustiças que, em Portugal ou pelo mundo fora, vitimam os povos – e especialmente, os seres humanos mais desfavorecidos ou espoliados dos seus direitos básicos – são (essas formas de dizer, que temperam o conteúdo) ferramentas necessárias ao transmitir das mensagens. Respondam-me na mesma moeda, com argumentos, com agressividade igual ou superior, mas com argumentação honesta e minimamente inteligente, e terão o meu respeito e a minha disponibilidade para a discussão. Mas se os únicos argumentos que alguns têm se resumem ao insulto pessoal, à ordinarice gratuita, ao vomitar de frases onde só há raiva e despeito, e são, ainda por cima, cobardemente anónimas, já sabem que ficam a falar sozinhos.

E agora, vamos ao que interessa, vamos ao tema central da minha provocação desta semana, reflexo do riquíssimo período de aprendizagem que vivi enquanto daqui estive ausente. Sim, ainda é o Líbano e a guerra de agressão que Israel ali tenta manter, mesmo depois de ter recolhido às suas fronteiras com o rabo entre as pernas.

Sabemos, hoje, que Israel e os EUA já tinham combinado a invasão do Líbano muito antes dos dois soldados judeus terem sido capturados. São os próprios norte-americanos que o confessam. Mas também sabemos que os principais objectivos da invasão falharam todos. Aqui estão eles:

1) Matar Hassan Nasrallah – Falhou
2) Impedir que o Hezbollah retaliasse com mísseis - Falhou
3) Ocupar toda a área a sul do Rio Litani - Falhou
4) Empurrar o Hezbollah para norte da região de Litani - Falhou
5) Voltar os libaneses e outros árabes contra o Hezbollah - Falhou
6) Destruir a capacidade militar do Hezbollah - Falhou
7) Desarmar completamente este movimento da resistência libanesa - Falhou
8) Provar a invencibilidade da capacidade militar de Israel - Falhou
9) Provar aos árabes que qualquer resistência seria sempre inútil - Falhou
10) Fortalecer os regimes fantoches da Jordânia, Egipto e da Arábia Saudita, entre outros – Falhou
11) Fomentar a presença dos Estados Unidos no Líbano e no resto do Médio Oriente – Falhou
12) Preparar o caminho para um confronto da aliança Israel/USA com a Síria e o irão, e derrubar os respectivos governos – Falhou

Mas para se compreender todo o alcance da derrota sionista, deveria ter-se estado, como referiu o jornalista do Independent, Robert Fisk, com a resistência no meio da terrível destruição provocada por milhares de bombas e mísseis que, diariamente, os nazis de Israel lançavam, especialmente a sul do rio Litani, no território do qual pretendiam expulsar o Hezbollah. Só assim, segundo ele, se poderia perceber a natureza desta guerra e o seu enorme significado político para o Médio Oriente. Ver o poderoso exército de Israel a bater em retirada da aldeia de Ghandoutiya, depois de perder 40 homens em apenas 36 horas de combate, incapaz mesmo de penetrar na cidade esmagada de Khiam, onde o Hezbollah celebrava a vitória, deu para ficar de pé com os homens do Hezbollah a olhar para estradas vazias a sul, vendo todo o caminho para Israel e para o colonato de Mizgav Am, do outro lado da fronteira. Não seria desta forma que Israel pensava terminar esta guerra.

Diz o jornalista que «longe de humilhar o Irão e a Síria — o que era o plano israelo-americano — estes dois estados foram mantidos intactos e a reputação do Hezbollah cresceu por todo o mundo árabe. A "oportunidade" que o presidente George Bush e a sua secretária de Estado, Condoleezza Rice, aparentemente viram na guerra do Líbano, tornou-se uma oportunidade para os que resistem à América mostrarem a fraqueza do exército de Israel». Os sionistas não conseguiram sequer manter a cidade cristã de Marjayoun (tida por eles como segura). Afinal, ficou claro que o exército invasor, de 30 mil homens, que se dizia estar a correr para o norte do rio Litani, nunca existiu como tal.

E enquanto os invasores retiravam, diz o jornalista que, «desciam de Beirute dezenas de milhares de famílias xiitas, com roupas de cama empilhadas sobre os tectos dos seus carros, muitas delas arvorando bandeiras do Hezbollah e fotos de Sayed Hassan Nasrallah. Nas filas de tráfego, longas de quilómetros, junto a pontes rodoviárias destruídas e às crateras dos bombardeamentos, o Hezbollah distribuía bandeiras amarelas e verdes da "vitória", enquanto avisava os pais para não permitirem que as crianças brincassem com os milhares de bombas não explodidas, que agora jazem por todo o lado». E Robert Fisk pergunta: «Mas porque estão estas pessoas a voltar? Haj Ali Dakroub, um encarregado de construção de 42 anos, perdeu parte do seu lar em 1996, quando Israel bombardeou Srifa. Agora toda a sua casa foi arrasada. “O que há aqui para Israel destruir tudo isto?”, perguntou. “Nós não negamos que houvesse resistência em Srifa. Havia antes e haverá no futuro. Mas nesta casa vivia apenas a minha família. Então porque a bombardeou Israel? Vou reconstruir a minha casa com os meus dois filhos. Israel pode voltar daqui a 10 anos e destruir tudo outra vez e então reconstruirei tudo de novo. Isto foi uma vitória do Hezbollah. Em 1967, os israelitas foram capazes de derrotar todos os países árabes em seis dias, mas aqui não puderam derrotar a resistência em um mês. Estes homens da resistência saíam do chão e disparavam. Eles ainda estão aqui”», garantiu Ali Dakroub.

Deveríamos ter visto, se a nossa televisão passasse coisas dessas, como os soldados libaneses, já com base no sul do Líbano, se juntaram aos homens do Hezbollah, em Srifa, para limpar o entulho de uma casa na qual se acreditava estarem sepultados os corpos de uma família inteira. A Cruz Vermelha Libanesa e o pessoal da defesa civil juntaram-se à busca, e o mukhtar (chefe da aldeia), que é um representante do governo, tratava abertamente os homens do Hezbollah como heróis.

Não resisto agora – e disso peço desculpa, pois vou alongar-me um pouco – a transcrever uma maravilhosa entrevista que a Sky News fez ao deputado britânico, Georges Galloway. Oiçam com atenção, pois tanto as perguntas da jornalista, como as respostas do deputado valem por uma lição de história:

Jornalista: O homem que temos hoje connosco não tem por hábito guardar as suas opiniões para si próprio. Opôs-se com determinação à invasão do Iraque e actualmente defende que o ataque do Hezbollah contra Israel se justifica; o deputado do Respect (um partido político) está connosco no nosso estúdio no centro de Londres. Boa noite… ou aliás, bom dia Sr. Galloway. Como é que justifica o seu apoio ao Hezbollah e ao seu líder, Hassan Nasrallah?

Galloway: Que disparate! Que absurdo! Que maneira tão estúpida de expor o assunto e que pergunta tão falsa e idiota! Há 24 anos, no dia do nascimento da minha filha – acabo de celebrar o seu 24º aniversário – corria eu para o hospital (para a ver nascer) por entre uma enorme manifestação em Londres contra a invasão e a ocupação israelita do Líbano. Israel invadiu e ocupou o Líbano durante toda a vida da minha filha de 24 anos. O Hezbollah faz parte da resistência nacional do Líbano e tenta expulsar – tendo afastado com sucesso a maioria dos israelitas das suas terras em 2000 – Israel do resto das suas terras e resgatar milhares de prisioneiros libaneses que foram sequestrados por Israel nos termos da sua ocupação ilegal do Líbano. É Israel que ocupa o Líbano, é Israel que ataca o Líbano, não é o Líbano que ataca Israel. Vocês acabam de passar uma reportagem em que 10 soldados se apressam a invadir o Líbano e pedem-nos para chorar o resultado da operação, como se se tratasse de um crime de guerra (os soldados israelitas foram mortos). Israel está a invadir o Líbano e matou 30 vezes mais civis libaneses…

Jornalista: (tentando interrompê-lo) Você acaba de identificar…

Galloway: (tomando de novo a palavra com vigor) …que não foram mortos em Israel. Parece-me que deveria ser você a justificar o preconceito evidente que está escrito em todas as linhas do seu rosto e inscrito em todas as nuances da sua voz e que obstrui todas as perguntas que faz.

Jornalista: Você tocou na questão essencial, não é assim? Quando diz que o Hezbollah foi criado nos anos 80 para se livrar dos soldados israelitas que estavam presentes no solo libanês, e como disse agora, isso foi feito, também, já em 2000…

Galloway: Não, isso não foi feito…

Jornalista: (interrompendo) Então, isso foi um fracasso…

Galloway: Não, isso não foi feito, e esse é um aspecto essencial que vocês escondem aos vossos telespectadores. Israel foi obrigado a deixar uma grande parte do Sul do Líbano em 2000, mas continua a ocupar parte do Líbano desde 2000…

Jornalista: (interrompendo) O objecto de uma recente resolução da ONU são terras de cultivo…

Galloway: (continuando) … Milhares de prisioneiros foram sequestrados por Israel, e o Hezbollah, bem como o Governo libanês querem que eles sejam libertados…

Jornalista: (interrompendo) Falei há instantes com o porta-voz do ministro dos Negócios Estrangeiros israelitas e ele disse que três libaneses foram “capturados”, talvez você prefira este termo, e que serão levados perante um juiz num tribunal.

Galloway: Por favor! Tente fazer a sua memória recuar além de 4 semanas! Eu estou-lhe a falar de milhares de prisioneiros sequestrados durante os 18 anos de ocupação ilegal do Sul do Líbano, por Israel. São esses prisioneiros que devem ser libertados em troca dos soldados israelitas que foram capturados no início desta nova etapa da crise.

Jornalista: Posso questioná-lo sobre uma reportagem que saiu no Sunday Telegraph em que se afirma que o Irão deu ao Hezbollah mísseis de longo alcance capazes de atingir qualquer parte de Israel? O Irão, que segundo esse deputado iraniano, ajudou a fundar o Hezbollah… esse deputado disse ainda que o Irão deu autorização à organização para atingir Tel-Aviv… Acha que pode culpar Israel por querer destruir esses mísseis?

Galloway: Mas é incrível! Isso é completamente absurdo! Os Estados Unidos deram a Israel mísseis que podem atingir, não apenas qualquer cidade do Líbano, mas sim qualquer cidade em todo o mundo árabe incluindo o Irão. Por que razão terão os Estados Unidos direito de dar mísseis de longo alcance, incluindo centenas de cabeças nucleares, a Israel, e o Irão não pode ser autorizado a fornecer mísseis?

Jornalista: (interrompendo) Porque os estão a dar a uma organização terrorista!

Galloway: Mas ela não é uma organização terrorista, a não ser na visão da Sky News, do The Times, do The Sun (ele é interrompido) …

Jornalista: Não, não, isso não é assim… Desculpe, mas vou ter de o interromper Sr. Galloway…

Galloway: (ele continua) … do The News of the World, de Rupert Murdoch. O Hezbollah não é uma organização terrorista, é Israel que é um Estado terrorista!

Jornalista: É uma organização terrorista, sim. Mas aqueles que são terroristas para uns, são combatentes da liberdade para outros… isso já sabe! Aos olhos da maior parte das pessoas, eles são considerados terroristas

Galloway: Não. Eles não são!

Jornalista: Eles tinham escolha, não é assim? Diga-se a verdade, eles tinham opção, tal como o IRA, de fazer política…

Galloway: Não, não, não, isso não tem nada a ver com o IRA! Escute Ana, você tem razão, você tem razão…

Jornalista: (interrompendo-o) O que eu estou a dizer é que eles tinham uma opção: fazer política, eles já têm dois ministros no Governo…

Galloway: Não vamos mais discutir este assunto! Ana, você tem razão, aquele que é um terrorista para uns, é um combatente da paz para outros… No entanto, não tem razão quando diz que aos olhos da maior parte das pessoas, o Hezbollah é terrorista. Aos olhos da maior parte das pessoas, Israel é um Estado terrorista, e é isso que você não consegue compreender… e que está na origem do vosso preconceito urdido em todas as vossas reportagens e em todas as perguntas que me fez nesta entrevista.

Jornalista: Posso fazer-lhe uma pergunta? Eu fazia alusão ao IRA e ao Sinn Fein que decidiram abraçar a política; o Hezbollah tinha a oportunidade de abraçar a política, eles já têm dois ministros no Governo, muito bem vistos no Sul…

Galloway: (ele interrompe-a) Mas o que é que está a dizer? Eles já fazem parte da política! São pessoas do Sul do Líbano…

Jornalista: Era o que eu estava a dizer. Escute-me! Eu dizia que eles já têm dois ministros no Governo. Por que razão é que eles capturaram e mataram dois soldados israelitas na fronteira? Certamente isso representa um fracasso na ambição que eles têm de se tornarem uma força política no interior do Líbano democrático…

Galloway: Porque Israel ocupa o país deles e detém milhares dos seus compatriotas, como reféns sequestrados, nos seus calabouços. É muito simples de compreender, a não ser que pense através de um relógio que remonta a apenas quatro semanas. Se você soubesse, e você já é suficientemente crescida para estar mais bem informada, que as origens destes conflitos não remontam a quatro semanas, nem a quatro anos, nem a catorze anos, mas a vários decénios. Vocês querem que as pessoas acreditem que a crise se iniciou quando o relógio começou a trabalhar na Sky News…

Jornalista: Não, não é assim…

Galloway: Felizmente, os libaneses estão mais bem informados.

Jornalista: Queria fazer-lhe uma última pergunta. Acha que as quatro semanas, como referiu, os 26 dias do conflito, retardaram as ambições do Hezbollah?

Galloway: (Galloway sorri) O Hezbollah está prestes a ganhar a guerra!

Jornalista: Deixe-me terminar, deixe-me terminar, deixa-me terminar, ou não? Há um grande número de soldados irrelevantes na fronteira, e eles (o Hezbollah) pretendem ser uma boa organização política para construir um governo libanês democrático com uma (…) que deixou igualmente um estado independente, isso também perpetrou as agressões…

Galloway: Que pergunta idiota! Como você é tola! O Hezbollah está prestes a ganhar a guerra! Pode ver isso na segunda metade do ecrã!

Jornalista: Essa não é a minha pergunta!

Galloway : O Hezbollah é hoje mais popular no Líbano entre os cristãos, os sunitas, os xiitas, entre todos os árabes, entre todos os muçulmanos, como nunca foi antes! Foi Israel que perdeu a guerra, e com ele, Bush e Blair, por terem organizado esta guerra politicamente. Eles perderam do ponto de vista político. Esta é uma derrota para Bush, para Blair e para Israel, só você é que não vê isso!

Jornalista: Deixe-me retomar a minha pergunta de há pouco… não acha que é um fracasso, dado que o Hezbollah foi criado para retirar os soldados israelitas do território libanês, que agora ele tenha mais soldados israelitas no território libanês do que há vinte dias atrás?

Galloway: Em todo o caso, parece-me que eles estão a receber uma boa sova sagrada na outra parte do ecrã que estou a ver. Talvez você não consiga ver, mas eu estou a ver que eles estão a ser bem fustigados nesta guerra. Se isso é uma vitória, não sei o que se pareceria com uma derrota. A verdade é que este conflito se vai perpetuar. As resoluções das Nações Unidas não regulamentam nada. Não dão nada ao Líbano, não dão nada aos prisioneiros das masmorras israelitas, e como um dos meus pares já chamou a atenção, Israel acaba de capturar ainda mais personalidades políticas palestinianas: ministros, deputados e milhares de outros continuam retidos nos calabouços israelitas, e esta guerra vai continuar até que se chegue a um acordo, e esse acordo significa a retirada de Israel de todos os territórios usurpados que ocupa actualmente desde a guerra de 1967, a libertação de todos os prisioneiros políticos, bem como um Estado palestiniano tendo por capital Jerusalém Este. Não há justiça, não há paz! Não ficará sem trabalho tão depressa, enquanto jornalista, em Jerusalém, acredite!

Jornalista : Como de costume, o Sr. Galloway provocou uma enorme reacção via e-mail, tanto a favor como contra si. Vamos acabar por aqui, mas devo dizer-lhe que muitas pessoas acharam as suas declarações chocantes, pois encontram-se ainda a enterrar os seus mortos, ouviram-no dizer que isto era uma boa fustigação sagrada…

Galloway: Vocês estão-se nas tintas! Vocês querem lá saber disso! Vocês não sabem nada das famílias palestinianas. Vocês nem sequer sabem que elas existem! Dê-me um único nome de um único membro daquela família de sete pessoas que foi massacrada na praia de Gaza por um navio de guerra israelita! Vocês nem os nomes delas sabem, mas sabem perfeitamente todos os nomes de cada soldado israelitas que foi feito prisioneiro durante este conflito, porque acreditam, consciente ou inconscientemente, que o sangue israelitas é mais importante do que o sangue dos libaneses ou dos palestinianos. É essa a verdade, mas o discernimento dos vossos telespectadores já o sabe.


Crónica de: João Carlos Pereira
Lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 23/08/2006.
(Não deixe de ouvir e participar todas as quartas-feiras entre as 09H00 e as 10H00, em 98.7 Mhz)

1997, 2007 © Guia do Seixal

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