12/07/2006

PORTUGAL SOFRE DE CANCRO

" (...) O que eu invejo, doutor, é quando o jogador cai no chão e se enrola e rebola a exibir bem alto as suas queixas. A dor dele faz parar o mundo. Um mundo cheio de dores verdadeiras pára perante a dor falsa de um futebolista. As minhas mágoas, que são tantas e tão verdadeiras e nenhum árbitro manda parar a vida para me atender, reboladinho que estou por dentro, rasteirado que fui pelos outros. Se a vida fosse um relvado, quantos penalties eu já tinha marcado contra o destino? (...)”

Mia Couto, in “O fio das missangas”


Soube-se dia 27, através do jornal Público, que a distinta advogada Vera Sampaio foi contratada, como assessora, pelo membro do Governo, senhor doutor Manuel Pedro Cunha da Silva Pereira, não menos distinto ministro da Presidência, e amigo muito íntimo do senhor primeiro-ministro (também ele distintíssimo), engenheiro José Sócrates.

Como a tarefa de assessorar o senhor ministro da Presidência não é muito cansativa, foi a novel assessora autorizada a continuar a dar aulas numa universidade privada, onde ganha uns cêntimos para compor o salário e poder aspirar a ter uma vidinha um pouco mais desafogada.

O facto de ser filha do senhor ex-presidente desta República do Figo e das Bananas, que também dá pelo nome de Portugal – e cujos indígenas fizeram rir o mundo inteiro por festejarem um suado 4.º lugar no campeonato do mundo de futebol, como se dum feito heróico se tratasse ou, mesmo, da conquista do próprio título – mas, dizia eu, o facto de a distinta senhora ser filha do doutor Jorge Sampaio não teve nada a ver com este reconhecimento das suas capacidades, juram, pela saúde do engenheiro Sócrates, o governo e quase todo o PS.

Acontece, apenas, é que há famílias a quem a mão do Senhor toca com a sua graça – ámen, e que assim seja “in saecula saeculorum”, que é como quem diz, em linguagem comum, que assim seja até sempre, ou, pelo menos, enquanto esta democracia durar – e que dure o mais possível. Porém, soube-se há tempos que o rebento masculino do mesmo ex-presidente, depois de se ter formado, foi logo para consultor da Portugal Telecom, onde certamente porá toda a sua «longa» experiência ao serviço de todos nós. Agora, como se viu, calhou a sorte à maninha (que o Senhor seja bendito, na sua infinita misericórdia) e lá foi ela, em part-time bem remunerado, servir o governo do partido do papá, onde certamente também porá toda a sua experiência a bem do povo (que lhe paga) e do país.

E o papá, para não destoar, escavacou uns bons centos de milhares de euros na remodelação de um palacete ali para a Ajuda, onde instalará um gabinete à altura das suas altas funções de presidente-que-já-foi-mas-já-não-é, para onde será transportado pelo nosso carro, conduzido pelo nosso motorista e onde certamente porá, também ele, toda a sua vastíssima experiência ao serviço deste heróico povo e desta nação valente. Nação valente e imortal, conforme nos fartámos de ouvir nos últimos tempos…

Parece mentira, não parece? Mas é verdade! Apetece gritar: Às armas! Às armas!

E tudo isto se passa num sítio mal frequentado, onde um milhão e duzentas mil pessoas vivem com reformas abaixo dos 375 Euros por mês, ou seja, menos de 75 contos dos antigos, sendo certo que mais de metade delas não chegam aos 50 contitos. No mesmo sítio mal frequentado onde, todas as semanas, centenas de trabalhadores são atirados para o desemprego, por gestão incompetente ou fraudulenta dos seus patrões, ou, no melhor dos casos, vítimas das sacrossantas leis do mercado, ou seja, das políticas económicas adoptadas e seguidas nos sistemas políticos designados como capitalistas (e, por alcunha, «democráticos»), mas onde os seres humanos não passam de peças descartáveis, a sacrificar em função dos interesses do grande – grande e intocável – patronato.

A este propósito, vou contar-lhes um episódio banal que vivi na segunda-feira, mas que, apesar de banal, é um bom exemplo da espécie de montureira em que vivemos. A senhora abordou-me, mostrando um cartão que trazia pendurado ao pescoço, dizendo que se chamava Fulana de Tal, e que representava uma qualquer instituição que apoiava crianças com determinada doença. Naturalmente, solicitava o meu apoio. Respirei fundo e respondi-lhe algo muito parecido com isto:

«Vai-me desculpar, mas já dei para esse peditório. Sabe quando? Quando cumpri as minhas obrigações fiscais. A partir daí, compete ao Governo tratar das crianças doentes, seja a doença qual for. Por outro lado, mesmo que eu lhe desse tudo o que trago no bolso, acha que iria resolver algum problema? O que eu ia fazer era tirar de cima do Governo parte das suas responsabilidades, ia ajudá-lo a ser ainda mais irresponsável e desumano».

Com um sorriso amarelo, a criatura interrompeu-me para dizer que «pois é, mas infelizmente o governo não faz mais, se calhar porque não pode…». E eu continuei. «Não pode?! Que possa! Quem tem dinheiro para estádios e futeboladas, para novos aeroportos e coisas dessas, deve ter dinheiro para cuidar da saúde das suas crianças, não lhe parece? Ou não acha que isso seja prioritário? Desculpe, mas se participasse nisso, era estar a ser cúmplice com políticos e com políticas assassinas. E, ainda por cima, com a convicção de que não ia resolver nada». A senhora deixou-me em paz, não sei se me rogando pragas, se achando, lá fundo, que eu teria alguma razão.

Eu já tinha, nessa altura, esta crónica engatilhada, inspirada naqueles a quem a «bondade divina», como a família Sampaio, permite tudo ter, mesmo dois ou três empregos e reformas várias, enquanto crianças com cancro ou leucemia, para serem devidamente tratadas, estão sujeitas à caridade pública, porque o país esbanja recursos de forma imoral e improdutiva e deixa que a pouca riqueza criada seja tão mal distribuída. Isto é indecente, é imoral, é criminoso! De cancro sofre o país, cancro, que é esta política do plano inclinado sempre para o lado dos poderosos, dos instalados, dos que mexem e remexem os cordelinhos do poder económico e do poder político, cancro que o apodrece, desfaz e desmoraliza. Pelo menos, é assim que eu vejo a coisa – e se houver algum ouvinte que pense de outra forma, que diga de sua justiça. Mas que o faça de forma objectiva e explicando claramente as razões da sua divergência. E, se for possível, de forma inteligente e elevada. Mas, se preferir o insulto, também serve…

Entretanto, o bom povo português (parte dele, claro…), andou cerca de um mês vestido de vermelho e verde, mascarado de patriota, cantando o hino nacional a toda a hora, embalado por uma competição desportiva onde o que estava realmente em jogo eram os múltiplos e milionários interesses económicos e financeiros, a par das grandes apostas, e não uma mera taça chamada Jules Rimet. Aliás, quem for lúcido e honesto, facilmente concluirá que, em termos desportivos ou competitivos, o campeonato não deixou saudades. Não houve um único jogo empolgante e, sem medo de errar, até se pode dizer que, se alguma emoção houve, ela se resumiu às decisões por grandes penalidades. O que, convenhamos, pouco tem de futebol, pelo menos como eu o entendo. O resto, foi futebol cobarde e calculista, onde o medo de perder foi superior à vontade de ganhar.

Bom, mas como tudo tem sempre um lado positivo, pode acontecer que, um dia destes, o povo português consiga orientar as suas energias para alguma coisa mais séria e infinitamente mais importante do que um campeonato de futebol. Para objectivos verdadeiramente patrióticos, como seja elevar o nível cultural, económico e social de mais de 9 milhões de portugueses, garantir trabalho e remuneração digna a toda a gente, acesso à saúde e à educação, habitação decente, protecção às crianças, aos idosos e a todos os que padeçam de qualquer incapacidade, enfim transformar-se num país desenvolvido e justo. Num país decente e respeitável. Porque isso é que seria ser moderno.

A respeito do moderno, não resisto, a terminar, a contar-vos uma anedota que anda por aí a circular na Internet, a propósito do choque tecnológico.

Está um velho pastor a guardar o seu rebanho, quando pára, ao pé dele, um jeep, 4X4, todo artilhado, de onde sai um jovem com cerca de 30 anos. Veste de negro, fato tipo «Hugo Boss», sapatos «DKNY». Dirige-se ao pastor e diz-lhe. «Se eu adivinhar quantas ovelhas tem você aí no seu rebanho, dá-me uma?». O pastor sorriu e respondeu. «Tá bem, homem. Adivinhe lá, que pode levar um animal».

O jovem volta ao «todo-o-terreno», tira de lá um computador Toshiba, Tecra 9.000 Pentium, a 38 GHZ, com 2 Gb de RAM, liga-se à Net, via satélite, e acede a uma base de dados da 300 MB. Entra numa página da NASA que identifica, por satélite, a zona onde está, calcula a média do tamanho de uma ovelha tipo «merino», através de uma tabela dinâmica do EXCEL e, com a execução de algumas macros personalizadas, em Visual Basic, consegue completar o diagrama do fluxo. Depois de alguns minutos, volta-se para o velho pastor e proclama: «O senhor tem 1.347 ovelhas, 256 são machos e 1.091 são fêmeas, das quais quatro podem estar prenhes».

O pastor olha para ele, ligeiramente admirado, e diz. «Acertou. Olhe, agarre lá no animal e leve-o. É seu». Quando o jovem, com o animal já dentro do jeep, se prepara para partir, o pastor pergunta-lhe. «Oiça cá. Se eu adivinhar para quem você trabalha, devolve-me o animal?». O jovem ri-se e respondeu que podia ser. «Você trabalha para o governo do engenheiro Sócrates, não me enganei, pois não?». Admirado, o jovem volta a sair do jeep e pergunta como é que o pastor tinha adivinhado.

- É simples, é mesmo muito simplex! – responde o velho. – Você tem pinta de maricas, chegou sem ninguém o chamar, disse-me o que eu já sabia e, principalmente, não percebe nada do negócio. É que em vez de levar uma ovelha, já ia levar o meu cão…

E esta, hein?! (Como diria o Peça).


Crónica de: João Carlos Pereira
Lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 12/07/2006.
(Não deixe de ouvir e participar todas as quartas-feiras entre as 09H00 e as 10H00, em 98.7 Mhz)

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