19/07/2006

HOLOCAUSTO (II) E IMUNDICE

Esta semana não me faltaram temas inspiradores para as provocações que, em cada quarta-feira, aqui faço. Podia, sei lá, falar-vos do «visível / invisível» que descobri ao assistir, em directo, a etapas da volta a França em bicicleta. Visível / invisível, porque «vi» o que não estava exposto à evidência do olhar. De facto, atravessando planícies, vales e montanhas, regiões luxuriantes ou áridas, alongando-se por zonas florestais ou terrenos agrícolas, cruzando vilas e cidades, enfim, passando por toda a França sob um calor que, muitas vezes, os comentadores diziam ser tórrido, os ciclistas só tinham à sua volta espaços bem tratados, quer passassem em áreas urbanas ou agrícolas, por florestas ou montanhas. Então, o que foi, para mim, visível, sendo, no entanto, invisível? Apenas isto: ressalvando que não assisti a todas as etapas, «vi» a ausência de manchas negras, um só vestígio de incêndio, recente ou antigo. Em Portugal, no entanto, país que cabe num bolso da França, todos os dias ardem centenas ou milhares de hectares. Vamos para onde formos, logo deparamos com o negro dos solos e o esqueleto absurdo das árvores. Pergunto: porquê? Os ouvintes que respondam, se souberem, mas não é com isto que vou hoje provocar ninguém.

Podia, também, agarrar na última descoberta do famigerado FMI, que chegou a duas sábias conclusões, expressas pelo seu representante, senhor Philip Gerson, enviado a Portugal para salivar sentenças: uma, sobre a longa duração do subsídio de desemprego, que, em Portugal, desincentiva a procura de um novo trabalho por parte do desempregado; outra, a que os salários são muito altos e devem baixar. E o cavalheiro explicou a sua ideia: «O aumento da competitividade, através da redução dos salários, é a melhor forma de estimular o crescimento, a curto prazo».

Mas os portugueses merecem isto e muito mais. É que depois do Governo perceber que pode puxar as rédeas e chicotear à vontade (que esta besta dá mostras de aguentar tudo), foi a vez do FMI chegar à mesma conclusão.

Assim, de que serve o Eurostat dizer que o nosso salário mínimo é o mais baixo dos Quinze, e que já foi ultrapassado por dois dos países do mais recente alargamento da União Europeia? Diz ele que Portugal, com 432 euros mensais, foi já ultrapassado pela Eslovénia e por Malta, com 512 e 580 euros, respectivamente. Então, talvez o FMI se estivesse a referir aos ordenados do Governador do BP, dos governantes, deputados, presidentes da República, das câmaras municipais, dos institutos e fundações, ou dos administradores das empresas públicas e privadas. Deve ser isso…

Também o TGV e o aeroporto da Ota estiverem na berra. No primeiro caso, porque Cavaco Silva acha que o TGV deve ser seriamente discutido e analisado antes de se avançar a… toda a velocidade, como Sócrates quer, só para mostrar serviço e porque, como toda a gente sabe, o partido do governo que arranca com grandes obras públicas ganha sempre bastante com isso. No caso da Ota, porque, segundo o professor catedrático António Diogo Pinto, o novo aeroporto vai custar o dobro do que custaria se fosse construído na Margem Sul, e só terá metade do tempo de vida possível. Quando abrir, outro terá de ser planeado. Cada passageiro custará 100 euros, quando podia ficar por 50. Fechar a Portela demonstra falta de juízo do Governo, garante o especialista, um dos responsáveis pelo nascimento do Aeroporto de Macau, ao qual está ligado desde o seu planeamento. Mas o Sócrates é que é o sabichão…

Embora gostasse de falar mais destes projectos megalómanos, onde o nosso dinheiro vai estoirar como bolas de sabão em dia de chuva e vento, não o faço. Aliás, também gostaria de falar do que escreveu o economista Eugénio Rosa, a propósito do SNS, provando, com números, que «as despesas que mais têm aumentado no SNS se referem a negócios com entidades privadas. Entre 2003 e 2005, as "Despesas com Pessoal" aumentaram 10,8%, mas as despesas com "Subcontratos" com privados cresceram 21,3%, praticamente o dobro. E se somarmos às despesas com "Compras", com "Fornecimentos e Serviços de Terceiros" os "Subcontratos", ou seja, se somarmos as despesas de todos os negócios com privados, a soma já representava, em 2005, cerca de 48,5% das despesas totais do SNS. Esta provocação de fazer das nossas doenças um rico negócio para os privados e um péssimo negócio para as contas do Estado, também não é suficiente para me levar a contra-provocar.

Mas, meus amigos, não posso calar o Holocausto em curso no Médio Oriente, nem a imundice informativa que lhe está subjacente. E não farei como a canalha que controla a comunicação social nacional e internacional, os lacaios que fazem e lêem as notícias, os comentadores e analistas chamados a «explicar» o que se passa no Médio Oriente. Não! Eu vou contar a história desta guerra desde que ela, de facto, começou, e não quando foi aprisionado, agora, um soldado israelita. Oiçam com atenção:

Com o fim do Império Otomano, no final da I Guerra Mundial, a Inglaterra obteve da Liga das Nações um mandato para administrar a Palestina e o Iraque. Estava-se num ponto alto das ideias racistas e colonialistas. Recorde-se que os hebreus chegaram à região da Palestina por volta do ano 2.000 a.C., onde já viviam os filisteus, ancestrais dos árabes. Com a decadência dos reinos de Judá e Israel, as populações locais foram dominadas sucessivamente por assírios, caldeus, persas, gregos e romanos. Contudo, no início da era cristã, os judeus foram derrotados pelos romanos, iniciando-se, então, a Diáspora Judaica. A partir do Sec. VII, dá-se o advento do Islão, e quando os turcos otomanos chegaram, toda a região da Palestina já se encontrava sob o domínio dos muçulmanos, que controlavam os lugares sagrados: Meca e Medina, na Península Arábica, e Jerusalém e Hebron, na Palestina. Espalhados pelo mundo, os judeus mantiveram, contudo, a esperança de voltar à Terra Prometida, sonho que começou a materializar-se com o aparecimento do sionismo, um movimento criado por Theodor Hezl, no final do século XIX, e que defendia o retorno ao Sion, nome bíblico de Canaã, a Terra Prometida.

Em 1917, Lord Balfour, o secretário inglês para os Assuntos Estrangeiros, fez publicar a “Declaração Balfour”, onde se apoiava a imigração de judeus para a Palestina e o estabelecimento de um "lar nacional para o povo judeu" na região, afirmando que "nada será feito que possa prejudicar os direitos civis e religiosos das comunidades não judaicas existentes" – uma referência clara aos árabes, que, então, representavam 92% da população.

Comentando esta declaração, o escritor palestiniano, Edward Said, no seu livro “The Question of Palestine”, desmontou assim o seu carácter:

"O que é importante a respeito da declaração é que, em primeiro lugar, durante muito tempo ela foi a base legal para as reivindicações sionistas em relação à Palestina e, em segundo lugar, e mais importante para os nossos objectivos, foi uma declaração cuja força só pode ser avaliada quando as realidades demográfica e humana da Palestina ficarem claras na mente.

Isto é, a declaração foi feita:

a) por um poder europeu,

b) a respeito de um território não-europeu,

c) num claro desrespeito à presença e aos desejos da população nativa residente no território e

d) tomou a forma de uma promessa sobre este mesmo território por um outro grupo estrangeiro, a fim de que esse grupo estrangeiro pudesse, literalmente, fazer desse território uma nação para o povo judeu."

Mas, como seria de esperar, a “Declaração Balfour” foi logo interpretada pelos líderes sionistas como um apoio à criação de um estado judeu soberano, e usada como argumento internacional para a formação de Israel. Nas décadas que se seguiram, dezenas de milhares de judeus fixaram-se na Palestina, movidos pelo ideal do sionismo. Eram, na sua maioria, oriundos da Europa. Se o estímulo sionista à imigração judaica é compreensível, já as vacilações britânicas para contê-la não o são. Mas foram elas que, a par das perseguições nazis, fizeram aumentar o número de judeus na Palestina, criando áreas de tensão com as populações árabes locais. Em 1922, os judeus representavam 11% da população, e em 1949 eram mais de 30%. Nessa altura, cerca de 20% da terra arável tinham sido tirada aos palestinianos, pertencendo já ao Fundo Nacional Judaico.

Após a II Grande Guerra, e sob a capa dos massacres nazis (que não foram praticados apenas sobre judeus, mas, como se sabe, sobre comunistas, socialistas, sindicalistas, democratas sem filiação definida e outros opositores ao nazismo, pois todos estes homens e mulheres alimentaram as câmaras de gás e os fornos crematórios), os judeus reforçaram a exigência de criar um estado. A Inglaterra tinha consciência da instabilidade que a criação desse estado na Palestina provocaria na comunidade árabe, mas os EUA, que emergiam da guerra como uma nova potência, e sob a pressão do sionismo, cuja força económica sempre foi determinante na economia norte-americana, pressionaram a favor da causa judaica.

A tragédia do povo palestiniano tinha início, e sucedia ao drama da ocupação inglesa. Em 1947, a Inglaterra submete a questão às Nações Unidas, cuja Assembleia, ignorando todos os argumentos e apelos dos palestinianos, aprova a partilha da Palestina entre árabes e judeus. Em 14 de Maio de 1948, a Inglaterra retira-se da Palestina e os judeus proclamam o Estado de Israel, ocupando as melhores terras e controlando os recursos hídricos, essenciais numa zona por natureza árida. Face ao roubo, os árabes da Palestina, do Egipto, Jordânia, Iraque, Síria e Líbano declaram guerra ao recém-criado Estado de Israel, ignorando a excelência do potencial bélico sionista, prenda dos brancos ocidentais contra os «selvagens escuros».

Com a vitória dos judeus, em 1949, são estabelecidas fronteiras ainda mais draconianas. Cerca de 75% da Palestina é incluída nas fronteiras de Israel; Jerusalém foi dividida entre Israel e Jordânia. O estado árabe-palestino deixa de existir. Quase 2/3 da população árabe é forçada a abandonar as suas casas e torna-se refugiada. Centenas de milhares de palestinianos emigram para os estados árabes, nos quais passaram a sobreviver em acampamentos precários. Os que permaneceram, ficaram na condição de refugiados na sua própria pátria, de seres humanos de segunda. Jerusalém, então dividida entre cristãos, judeus, e muçulmanos, tornou-se pólo de conflitos que se estendem até os nossos dias. Nos campos de refugiados, desde então, nasceram, sofreram e morreram gerações inteiras de palestinianos. Repito: nos campos de refugiados, desde então, nasceram, sofreram e morreram gerações inteiras de palestinos, alimentados pelo ódio que a potência colonial (haverá outro termo mais adequado?) fez germinar.

Apesar da comunidade internacional pouco mais fazer do que derramar lágrimas de crocodilo pela infelicidade dos palestinianos, e porque é sempre bom, em política, salvar as aparências, foram aprovadas várias resoluções na ONU, apelando à paz, ao retorno dos refugiados às suas terras e casas (as que não tiverem sido ocupadas ou destruídas pelos judeus), exigindo a retirada dos sionistas dos territórios ocupados e o estabelecimento de fronteiras permanentes. Israel não acatou nem uma.

Curiosamente – ou talvez não – os paladinos «justiceiros» norte-americanos, que já invadiram países depois de sobre eles derramaram toneladas de bombas, argumentando que não cumpriam resoluções da ONU, ainda não tiveram oportunidade de invadir Israel e obrigar os judeus a respeitar as resoluções que os vinculam. Aparentemente – e de acordo com a velha filosofia nazi – para norte-americanos e judeus, os palestinianos não deverão ser seres humanos, ou, sendo-o, não se lhes aplica, por qualquer desconhecida razão, a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Nem dos animais, pelo que parece…

Socorro-me de um artigo publicado no “New York Times”, pela altura da célebre visita do Papa, João Paulo II, em 1999, ao campo de refugiados de Dehaishem:

"Quase 10.000 refugiados palestinos, quase todos muçulmanos, vivem em menos de 1 milha quadrada de terra, amontoados em barracas que formam becos salpicados de sucata de carros velhos, velhas bobinas de fio e lixo. Eles são refugiados há 52 anos, e muitos deles ainda guardam as chaves de suas casas, que foram forçados a abandonar, na luta que se seguiu à criação de Israel."

Mas quem conseguir visitar a Faixa de Gaza, perceberá ainda melhor as razões para o descontentamento dos palestinianos. Com uma população de mais de 1 milhão de habitantes, a Faixa de Gaza, (o «Soweto de Israel» em alusão ao gueto da África do Sul), não é um estado e não foi anexada a Israel. As forças de Israel controlam toda a fronteira. Se os moradores de Gaza quiserem sair dessa área, precisam de obter uma permissão dos israelitas. Muitos palestinianos - nascidos a partir de 1967 - nunca saíram dessa faixa, uma tira de terra situada entre o deserto de Negev e o mar Mediterrâneo, que mede 46 km de comprimento e 10 km de largura, Perante este quadro, quem se pode admirar por ataques suicidas? Não perderam os palestinianos tudo o que é possível perder (menos a dignidade e a coragem)?

Esta é a realidade que se vive na Palestina, de 1947 para cá. Liberdade, justiça, democracia, direito a uma pátria e a ser-se independente? Que significam estas expressões para um palestiniano? E para os sionistas, carniceiros brutais, que envergonhariam Hitller ou qualquer um dos seus sequazes? E para Bush, seu digno amigo e protector? O que fica a dever a acção conjunta de Israel e EUA, na Palestina, às acções dos nazis nos anos 30 e 40 do Sec. XX? Falar em neo-nazismo é muito? Não! É o mínimo!

Sabemos agora – e a imundice reinante na comunicação social dá isso como facto natural e imutável – que os soldados e as forças de segurança israelitas podem capturar e assassinar todo e qualquer palestiniano, ou destruir as suas casas e pulverizar as suas terras. Os palestinianos não podem lutar pela sua liberdade e independência, muito menos pela recuperação do chão que foi seu. Capturar um soldado israelita? Nunca! Isso é crime, é terrorismo. Assim vêem e assim nos dizem jornais, rádios e televisões. Israel, que tudo tirou aos palestinianos, pode matar quando e sempre que lhe apetecer, para manter os seres inferiores na ordem e jamais virem a ser obrigados a devolverem o que roubaram.

Então, nos dias que correm, o genocídio do povo palestiniano, e agora também do libanês, continua. O comportamento do estado sionista é mais atroz do que o da Alemanha hitleriana. Isto está a ser cuidadosamente mascarado pelos media «de referência», quando apresentam tais massacres como se fossem uma luta entre iguais. Não são. Trata-se de dizimar populações civis indefesas, homens, mulheres e crianças, e destruir infra-estruturas civis como centrais eléctricas, pontes e edifícios governamentais.

O estado racista judeu (como racistas são todos aqueles que defendem o direito de Israel subjugar os povos a quem roubou terras, casas, água e a própria vida) usa ainda a arma da fome contra o milhão e meio de palestinianos que vivem na Faixa de Gaza, agora às escuras, sem electricidade, sem água e isolados do mundo.

A entidade sionista esmera-se em ultrapassar em barbárie todos os seus feitos anteriores. Revela-se agora a utilização de novas armas não convencionais na Faixa de Gaza. O Dr. Al Saqqa, do hospital central, revelou que "estas munições penetram no corpo e fragmentam, provocando combustão interna que conduz a queimaduras de quarto grau, expondo o osso e afectando o tecido e a pele". E acrescentou: "Estes tecidos morrem, não sobrevivem, o que obriga a executar amputações de braços ou pernas, e há fragmentos que penetram o corpo e não aparecem no raio X. Ao entrar no corpo, eles chispam como uma combustão de arma de fogo, mas não quimicamente. Eles parecem radioactivos". Até mesmo intelectuais de direita, como Vargas Llosa, protestaram contra tais actos de selvajaria. O silêncio do governo português em relação a estes crimes não o dignifica.

E isto, meus amigos, eu não podia calar. Nem o seguinte: se alguém me fizesse, em Portugal, o que os judeus fazem aos palestinianos, na Palestina, também eu era capaz de pôr uma bomba à cintura. E você?


Crónica de: João Carlos Pereira
Lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 19/07/2006.
(Não deixe de ouvir e participar todas as quartas-feiras entre as 09H00 e as 10H00, em 98.7 Mhz)

1997, 2007 © Guia do Seixal

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