14/06/2006

A CRUZ OU O CHICOTE

Com o mundial a decorrer, a selecção já demonstrou que não é por haver jogadores de luxo numa equipa, treinada por um nome famoso e com ordenado fabuloso, que se ganha bem e joga melhor. Estou a referir-me, é claro, ao Portugal – Angola, onde o resultado e a exibição não espelham o fosso que separa os milionários portugueses, alguns deles actuando nos maiores clubes do mundo (Chelsea, Barça, Inter, MU, Benfica, Lyon, PSG, Estugarda, etc, etc) dos «pobres» angolanos, onde há jogadores que nem clube têm neste momento, enquanto outros servem emblemas pobrezinhos (mas honrados), como o Varzim ou o Barreirense.

Mas não é de futebol, claro está, que vamos falar (e a alusão serviu apenas para dizer que, na gloriosa incerteza do desporto, pode muitas vezes mais o amor à camisola do que os contratos milionários e os vedetismos imbecis). Não! Vamos falar de algo realmente importante e sério.

O Presidente da República, Cavaco Silva, pediu aos portugueses, nas comemorações do Dia de Portugal, para não se resignarem face às dificuldades do país. Disse mesmo – e cito: «que isso seria indigno do nosso passado, um desperdício do nosso presente e o adiar do nosso futuro». Inspirando-se em Jonh Kennedy, Cavaco Silva disse pretender «interpelar directamente» os portugueses, para os exortar «a reflectir sobre o que desejam e o que se dispõem a fazer» pelo país. (JK disse, na sua tomada de posse, que não deviam os americanos perguntar o que poderia o seu país fazer por eles, mas sim o que poderiam eles fazer pelo seu país).

Cavaco afirmou, ainda, que «ambicionamos um país mais rico e mais justo, uma sociedade que não seja atravessada por tantas assimetrias e desigualdades, um território mais equilibrado no desenvolvimento de todas as suas parcelas». Salientou que deveriam ser colhidas lições na «insatisfação colectiva» e na «coragem para enfrentar dificuldades» evidenciada nas descobertas marítimas de há cinco séculos. «Sem ela (a coragem) teríamos ficado reféns da resignação», sublinhou, para apelar depois para que os portugueses «não se deixem vencer pelo desânimo ou pelo cepticismo». O Presidente da República ainda pediu aos portugueses que corrijam «uma certa tendência para atribuir aos outros muito daquilo» que acontece e que desistam da ideia de que o «Estado é, para o bem e para o mal, a raiz e a solução de todos os nossos problemas». Um dos traços do «nosso destino comum», considerou ainda Cavaco Silva, é a «insatisfação colectiva». Mas «também o é a coragem para enfrentar dificuldades».

Sócrates gostou do discurso – e mesmo que não gostasse, diria sempre que sim. É o costume: o cinismo e a hipocrisia fazem parte das normas do «Politicamente Correcto». Mas eu, que não tenho que obedecer a essas normas – nem quero – tenho uma visão mais crítica das palavras de PR.

Em primeiro lugar, Cavaco falou como se tivesse chegado a Portugal no dia em que foi eleito Presidente da República. Parece que nunca foi primeiro-ministro. Parece não saber porque razão Portugal é esse tal país desequilibrado, assimétrico e injusto. Mais: parece que ele, tal como outros governantes – antes e depois dele – não tiveram nada a ver com isso. A crise chegou, caída do céu, instalou-se, e os portugueses, coitados, resignaram-se, perderam a fé e a coragem e – está bom de ver – se a coisa continuar assim, nunca mais passamos da cepa torta. Que chatice!

Então, qual é a receita de Cavaco? Simples. Os portugueses não devem resignar-se (face às dificuldades do país). Devem ter coragem (para enfrentar essas dificuldades). E devem, a partir da sua insatisfação colectiva, dispor-se a fazer qualquer coisa pelo país.

Mais simples do que isto, meus amigos, só um ovo estrelado com salsichas de lata.

Então, um português, logo de manhãzinha, ao acordar, deve dizer lá para si: «O que é que tu, Zé, podes fazer hoje por Portugal?». Põe-se a pensar, pensa, pensa, volta a pensar, e decide: «Pronto! Vou pagar mais impostos, mais taxas e tarifas. Vou pedir para me reduzirem o ordenado. Vou, até, se for preciso, trabalhar umas horitas de borla e, em último caso, pedir ao patrão que me despeça, para a empresa ser mais competitiva».

Como pensou em voz alta, a mulher, que é professora e formada (tal como o professor Cavaco) em Economia, logo lhe berra da cozinha: «Tu estás estúpido, ou quê?! Assim, não ajudas nada, meu burro! Admite que mais dois milhões pensam como tu. O que é que dá, não me dizes? Se te reduzirem o ordenado, como é que podes pagar mais impostos? E se trabalhares de borla ou fores despedido, então nem impostos pagas. E depois, o que é que te ficava para comprar seja o que for? Nem uma carcaça compras, homem! Se não comprares a carcaça, nem a manteiga, nem um bife, nem torresmos, ou pevides, a actividade económica abranda, as fábricas fecham, o comércio definha, a receita do IVA, do IRS e do IRC desce. Conclusão: entramos em recessão. Ou, até, em depressão».

O Zé, que é patriota (também pôs bandeira à janela, para apoiar a selecção), mas, ao contrário da mulher, não tem curso superior (ficou-se pelo 9.º ano, já que teve de dar o corpo ao manifesto bem cedo, para ajudar lá em casa, quando era solteiro, e, depois, foi sempre a esgalhar, para sustentar a sua casa, quando constituiu família) ficou calado um bom bocado. Depois, com cara de quem descobriu a pólvora, gritou para a mulher:

«Ai, não pode?! Ai, não pode?! Mas não é isso que já acontece? Pode, ou não? Cada vez pagamos mais impostos, taxas e tarifas, cada vez ganhamos menos, e até a moda dos salários em atraso pegou de estaca. Não querem pôr-nos a trabalhar mais anos, e dar-nos piores reformas? Pode, ou não?».

A mulher calou-se, mediu as palavras do marido e, depois, cheia de paciência, lá foi explicando: «Tá bem, querido, mas não foi isso que o professor Cavaco quis dizer. Ele até deu a entender que isso está mal. Portanto, o que ele quis dizer é que não nos podemos resignar com essa situação. Percebes?».

O Zé ficou quieto, a lembrar-se do anúncio: «Olha, explica-me essa coisa outra vez, como se eu fosse muito burra».

«Então, o que é que o Cavaco quis dizer com isso de não nos resignarmos, da coragem, do que desejamos que o país seja e do que estaremos dispostos a fazer por ele?», perguntou, seriamente embaraçado. E continuou: «Se eu já trabalho, se já pago impostos, se já aperto o cinto até ao furo zero, se faço tudo isto, o que é que eu posso fazer mais? O que é ter mais coragem do que aquela que já tenho, para aguentar, sem desbroncar, quando vejo tantas desigualdades, injustiças e assimetrias, como ele próprio diz? Sou eu que tenho a culpa delas?».

E ela, cheia de paciência: «Pois, mas o senhor professor não se estava a referir a ti, certamente. Estava a referir-se… olha, sei lá. Aos mandriões, a gente assim, percebes?»:

Ele não percebia. E então, teve um rasgo de argúcia argumentativa: «Tu não me digas que o discurso do 10 de Junho do Cavaco tinha como destinatário apenas meia dúzia de portugueses. Se não era para os que trabalham, como nós, também não era, certamente, para aqueles que estão desempregados e os que todos os dias ficam sem trabalho, porque as fábricas encerram, ou fogem para o estrangeiro. Aos reformados, também não devia assentar a carapuça. Quem é que sobra?».

Ela começou a perder a paciência: «Já vi que estás para desconversar. A verdade é que o país precisa de avançar, não achas? E não avança com gente resignada face à crise, com gente descrente, com imobilismos».

Mas o Zé não se dava por vencido. «A desconversar estás tu. Afinal, em que ficamos? O que é que o homem quer, realmente, que façamos? E tu, que és tão esperta, troca-me lá por miúdos aquilo que ele disse.

Ela ficou calada.

E o Zé continuou: «“Não nos resignarmos”. O que é isso? É nunca mais votarmos nesta gente? É corrê-los à cachaporra? Se não é isto, explica-me lá o que é. (E ela caladinha). “Ambicionarmos um país mais rico e justo, ou uma sociedade que não seja atravessada por assimetrias e desigualdades”. Ambicionar, todos ambicionamos, mas quem é que tem nas mãos os instrumentos políticos para fazer isso? És tu? Sou eu? Ou são os políticos que nos têm governado e, em vez disso, semearam e semeiam a injustiça, a desigualdade e puseram o país de pantanas? (A mulher continuou silenciosa). E o que é isso de “uma certa tendência para atribuir aos outros muito daquilo que acontece”? Por acaso somos nós que queremos fechar a fábrica da General Motors, e que fechámos dezenas de outras fábricas? Somos nós que fazemos subir o petróleo? Fomos nós que vendemos a Siderurgia Nacional aos espanhóis? Fomos nós que demos cabo da Lisnave? Fomos nós que assinámos acordos de pescas ruinosos? Somos nós que decidimos quantas litros de leite é que Portugal pode produzir? Somos nós que decidimos os ordenados do Governador do Banco de Portugal, as reformas do Mira Amaral, os tachos do Armando Vara, e o regabofe dos ordenados e das reformas dos políticos? Somos nós que decidimos sobre a Ota ou o TGV? Somos nós que fechamos escolas e maternidades e aumentamos três vezes as taxas nas urgências?».

O Zé já começava a mostrar alguns sinais de apoplexia. Estava a ficar arroxeado. A mulher, ao vê-lo assim, pôs água na fervura: «Pronto, pronto, tens razão, mas a verdade é que o homem tinha de dizer qualquer coisa no 10 de Junho, não é? E aquelas coisas que ele disse, ficam sempre bem. Não o leves tanto à letra…».

O Zé, porém, estava lançado: «Pode ser. Mas vir cá com esta conversa da “insatisfação colectiva”, da “coragem para enfrentar dificuldades”, reflectir sobre o que desejamos e o que nos dispomos a fazer, e não nos deixarmos “vencer pelo desânimo ou pelo cepticismo”, serve para alguma coisa, a não ser para nos convencer a aguentar todo isto, mas de cara alegre?

Tomou fôlego. Respirou fundo.

E disse, baixinho: «O que é que eu posso fazer pelo meu país? Uma das duas coisas que dizem que Cristo fez. Ou deixar-me crucificar, ou corrê-los à chicotada…».


Crónica de: João Carlos Pereira
Lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 14/06/2006. (Não deixe de ouvir e participar todas as quartas-feiras entre as 09H00 e as 10H00, em 98.7 Mhz)

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