10/05/2006

A bandeira negra

Instituições nacionais e estrangeiras, com destaque para a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Económico (OCDE), o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco de Portugal, pintaram, recentemente, um retrato muito negativo da economia nacional. Se fossem outros a fazê-lo – se fosse, por exemplo, a oposição de esquerda – a coisa era levada à conta da luta partidária, e logo o senhor ministro das Finanças e o aflautado primeiro-ministro diriam que tais afirmações não passavam de atoardas sem fundamento, mais uma peça da guerrilha político/partidária mantida por forças ultrapassadas pela história.

Assim, como a coisa veio de gente amiga – e mesmo de gente da família – o governo comeu e calou, engoliu em seco, e só muito mais tarde, atiçado pelos jornalistas, é que o tal ministro das Finanças, cujo nome ainda nem me dei ao trabalho de fixar (para mim, os governantes têm todos o mesmo nome, e é dos que fica mal dizê-lo aqui) lá declarou que não estava nada preocupado com os relatórios do BP, da OCDE e do FMI.

Tal como afirmei há oito dias, não me custa a crer que ele não esteja nada preocupado com estas ninharias. Se eu tivesse a vida dele, se ganhasse o que ele ganha, se tivesse a futurozinho garantido quando saísse do Governo e – quando me apetecesse – conseguisse riquíssimas reformas, sem problemas de idade ou de descontos, enfim, se eu também pertencesse à curtíssima casta de privilegiados deste pobre país, se fosse daqueles que sabem mover-se nas salas, corredores e reposteiros da política e da alta finança, eu queria lá saber se as coisas eram assim, ou assado. Era mesmo para esse lado que eu dormiria melhor.

Mas acontece que não sou. Eu pertenço àquela imensa maioria que sofre, todos os dias, os efeitos da acção do senhor ministro e do governo onde tem rédea larga. Eu pertenço àquela categoria dos portugueses a quem o PS, através dos seus ministros e deputados, todos os dias vem tirar um pouco mais do que é nosso. Eu faço parte daqueles milhões de portugueses que, todos os meses, ao comprarem o indispensável para a sua sobrevivência – da comida à electricidade, dos medicamentos às consultas, da prestação do empréstimo para a habitação à água, dos transportes às despesas com a educação – concluem que compram cada vez menos, mas pagam cada vez mais.

No entanto, há cerca de uma semana, os jornais disseram que os rendimentos declarados pelo primeiro-ministro Sócrates, em 2005 (ano em que assumiu funções governamentais), haviam subido cerca de 50% em relação ao ano anterior. Talvez por isso, sua excelência, em declarações recentes, dizia que Portugal está melhor. Para ele, sem dúvida… E, como sabemos, também para os bancos e grupos empresariais.

Mas está pior para todos os portugueses que vivem dos seus rendimentos de trabalho, das suas reformas e pensões, para os mais de 500 mil desempregados – número que o governo se esforça por esconder e amaciar através de habilidades informáticas – está pior, em suma, para mais de 9 milhões de portugueses. E pior vai ficar, porque o governo já disse – e já mostrou – que foi este o caminho que escolheu, e que dele não quer sair.

Com os relatórios do BP, do FMI e da OCDE ficou dito – e provado – que os sacrifícios impostos aos portugueses pelo governo, não só não resolveram nada, como até pioraram as coisas. Aliás, também só os distraídos ou os atrasados mentais terão acreditado que este governo – ou outro do género – pratica estas políticas como um meio para resolver problemas. Elas são um fim em si mesmo e, se recordarmos o que nos disseram há dois, três, quatro, cinco, dez, vinte ou trinta anos, vemos que não foi outra a conversa – e só foram outros os resultados, porque nada ficou melhor ou igual. Tudo piorou. É mentira? Volto a perguntar: é mentira?

Sócrates obriga os trabalhadores a perder poder de compra, com os aumentos salariais a serem sempre inferiores à inflação. Contudo, e segundo o insuspeito Jornal de Negócios, os administradores decidem os seus aumentos, que são, em média de 9%, sendo os seus rendimentos, também em média, de 416 mil euros, ou seja, de 83 mil contos anuais. Quantos às empresas cotadas em bolsa, os seus lucros, em 2005, subiram 85%. O país está melhor, garante Sócrates. Então não está!? Só falta é ele explicar de que país está a falar: do país dos trabalhadores, dos pensionistas, dos desempregados, dos excluídos? Ou do país dos senhores banqueiros, grandes empresários e seus homens de mão, os políticos e fazedores de opinião?

Como eu tenho aqui sublinhado várias vezes, o país está nas mãos de apenas 1% da população, que não passam disso, todos juntos, os políticos que governam ou governaram, mais os deputados, mais os presidentes da República (o actual e os idos), mais os senhores capitalistas, mais os senhores comentadores, analistas, jornalistas bem colocados e melhor pagos, economistas, gestores e respectivas cortes. E são estes que decidem e justificam o apertar do cinto da maior parte dos outros 99%, a quem chamam, ainda por cima, madraços e privilegiados.

Também como eu já disse noutras ocasiões, chegámos ao extremo de ouvir esta canalha chamar privilegiado a quem tem trabalho e remuneração certos, a quem tem médico de família e ainda consegue pão para a boca sem grandes sobressaltos. Qualquer dia, são privilegiados todos aqueles que não viverem como se vive no miserável bairro da Jamaica, aqui no Seixal, no Bairro da Ponte, em Camarate, na Cova da Moura, na Amadora, ou em qualquer outra pérola deste colar da nossa vergonha.

São precisamente esses senhores – que têm nas mãos as nossas vidas e, ao mesmo tempo, que podem fixar o valor dos seus ordenados e os respectivos aumentos, que podem determinar quantas reformas vão ter (e quais os seus valores) – que depois vêm exclamar, embrulhados em belos fatos e atados com gravatas que valem mais do que a pensão mínima nacional, que o país não suporta os privilégios dos pés descalços, da arraia-miúda.

Mas o bom povo português (essa nova versão da «enorme e possante besta» de que falava Erasmo de Roterdão, como aqui recordei há meses), suporta e sustenta passivamente tudo o que lhe caia em cima. Por isso, já ninguém se espanta com a última notícia que por aí circula. Santana Lopes já tem um “job”. De facto, segundo a revista “Focus”, vai ser consultor na EDP. Aparentemente, trata-se de consultoria na área do direito na Energias de Portugal, para a qual Santana foi convidado por António Mexia, presidente da administração da EDP. O ordenado deverá situar-se entre os 3 mil e os 5 mil euros por mês (entre os 660 e os 1000 contitos).

Acontece que António Mexia foi ministro das Obras Públicas, Transportes e Comunicações no Governo de Santana Lopes, o que não tem nada a ver com esta admissão, como facilmente até o português mais estúpido compreenderá, mesmo que ninguém se lembre de Pedro Santana Lopes a fazer qualquer coisa que não fosse o que faz a um político profissional: política. Político profissional, que beneficia ainda de um regime especial de reforma, que permite que alguém que tenha exercido funções no poder local possa aposentar-se com 30 anos de descontos, mesmo não tendo idade para a reforma, como é o caso desta feliz criatura, pois, aos 50 anos de idade, recebe desde Outubro de 2005, uma pensão de 3.178,47 euros, por ter sido presidente das câmaras da Figueira da Foz e de Lisboa.

Nada demais, pois conheço outros devotados autarcas que também já se reformaram e agora comem dos dois tachos (da reforma e da autarquia), o que é muito justo, visto terem sacrificado os últimos 16 anitos da sua vida a destruir os respectivos concelhos, coisa que dá um trabalhão enorme. Aliás, porque é que Santana Lopes não há-de ter um “job”, se até é um gajo com piada, se um qualquer ex-presidente de Junta, mais ou menos débil mental, só porque sabe lamber as botas certas e dar à cauda em redor do dono, pode mandar o trabalho às malvas e assolapar-se em sumarentos tachos?

Mas haja futebol, mundial, selecção e bandeiras – e, especialmente, a mais bela bandeira, como eles dizem. Haja isso, que o Zé Pagode – e pagante – esquece o resto. Vejam lá, que até o meu clube me contemplou com um e-mail a convidar-me para ir ao Jamor assistir à composição, por mulheres, da mais bela bandeira humana.

Olha lá a que porta eles vieram bater!

Mas dizia o e-mail:

«Dia 20 Maio, no Estádio Nacional, vamos construir a mais Bela Bandeira Humana no apoio à nossa selecção.

O Sport Lisboa e Benfica associa-se ao maior evento de apoio à Selecção jamais realizado em Portugal, pelo que convida os seus sócios, em especial as sócias e simpatizantes do Benfica, a estarem presentes no Estádio do Jamor, no dia 20 de Maio, na grande festa do futebol para apoiar a nossa selecção na caminhada para o Mundial».

E respondi eu:

«Lamento, mas estas patriotices bacocas nada me dizem. Sou benfiquista, e por aí se ficam os meus «furores» e as minhas paixões em termos desportivos.

Quando se trata de Portugal, só consigo pensar em meio milhão de desempregados, em meia dúzia de senhoritos a banquetearem-se com o dinheiro de 9 milhões; penso no país mais atrasado da Europa, no mais corrupto, penso nas urgências hospitalares, penso nas escolas podres, penso nos bairros degradados, penso no que pagamos a quatro presidentes da República, a deputados, a governantes, ao Mira Amaral e aos outros miras todos.

Penso nas crianças que não bebem leite nem comem carne, penso nos velhos presos numa solidão sem retorno, penso nos homens e mulheres que vêem a firma fechar e ficam a arder com vários meses de salário, penso, enfim, nas coisas séria e trágicas que marcam o nosso país. Penso, em suma, num beco mal frequentado, aproveitando-me da “tirada” de Carlos Queirós.

Depois disto, ainda querem que eu alinhe nessa treta da bandeira mais linda? Porque não antes – para sermos coerentes e sérios – a bandeira negra? Da fome?

Haja juízo e vergonha.

João Carlos Lopes Pereira - Sócio 1668 do SLB»

É isso: a bandeira negra da fome, da injustiça, da miséria.

E por aqui me fico.


Crónica de: João Carlos Pereira

Lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 10/05/2006. (Não deixe de ouvir e participar todas as quartas-feiras entre as 09H00 e as 10H00, em 98.7 Mhz)

2 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Caro João Carlos

Não vou comentar a tua crónica, mas quero dizer-te como me senti triste por aquelas palavras ditas hoje nas “Provocações” por uma “pobre” senhora que considera não ter de se preocupar com os outros, porque para ela tudo está bem.
Tal como disseste, embora essas opiniões nos possam chocar, foi importante ouvi-las para que nos capacitemos que é esse o País real, que o egoísmo e a falta de solidariedade estão no nosso dia a dia e que poucos se preocupam com os problemas alheios.

Interrogo-me:
Tudo isto será fruto de quê ?
Da educação que tivemos ?
Do PREC ou das convulsões que se seguiram ?
Da ausência de fé ou da falência das religiões ?
Da falha ou inexistência ideológica dos partidos políticos ?
Da promiscuidade da governação ?
Já não há valores morais, sociais ou de justiça ?

Então nós, tu e eu, que até nos podemos considerar de certo modo privilegiados (à custa do nosso trabalho honesto) preocupamo-nos com os outros e há gente provavelmente com menos posses que diz aquelas barbaridades só porque tem um sistema de saúde um pouco melhor e a reforma que aufere chega-lhe para as suas necessidades ?
Como é que alguém pode ser feliz sabendo que o seu semelhante passa dificuldades de toda a ordem e que muitas vezes não tem sequer o mínimo para se alimentar ?
Seríamos demagogos e irresponsáveis se pensássemos que podemos sozinhos mudar o mundo e acabar com a miséria humana, fome, doenças e injustiça.
Mas lá que temos a obrigação moral de despertar consciências, lá isso temos e queremos continuar a fazê-lo, independentemente de quem goste ou não de ouvir e ler as verdades.

Celino

10/5/06 3:50 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Que a voz nunca lhe doa. Oiço-o frequentemente e digo-lhe que os sacanas dos mandantes nem ouvem o que diz nem vêm o meu blog. Mas um dia.........

Vá aparecendo

10/5/06 10:26 da tarde  

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