17/05/2006

O direito e o avesso

O telefonema de uma ouvinte de Lisboa, há oito dias, deu o mote para a crónica desta semana. Se eu ouvi bem – e entendi melhor – o que ela quis dizer, parece que o nosso país podia ser pintado assim:

1 – É um país injusto, mas não faz mal, porque injustiça há em todo o lado;

2 – Em Portugal, só há dois tipos de pessoas: os que não querem trabalhar – os vadios, os mandriões, os parasitas – todos por culpa dos pais, que não souberam, nem sabem, ensiná-los; e há a gente trabalhadora, que faz qualquer coisa para ganhar a vidinha e dar um futuro aos filhos.

A partir daqui, temos que os primeiros são uns refilões, uns infelizes e revoltados, e que os segundos são uns pacíficos e felizes cidadãos, daí que aceitem tudo de cara alegre. Alguns ouvintes ainda se exaltaram com esta visão a preto e branco (e, sobretudo, falsificada) da sociedade – e eu também terei elevado um bocadinho o tom da voz – mas acabei por agradecer aos deuses este telefonema, pois, segundo disse então, ele ajudava-nos a perceber melhor porque somos um país miserável e, segundo dizem os entendidos, assim continuaremos por muitas décadas.

Para quem pense como a ouvinte em causa, não há gente que se esgana a trabalhar e mal consegue para a bucha (apesar de as próprias estatísticas indicarem que muitos dos portugueses que são considerados pobres, até trabalham e recebem um ordenado, só que, de tão miserável ou incerto, os mete no saco dos pobres, o que, aliás, também lhe terá acontecido); não há gente que, apesar de trabalhar, não recebe, porque os patrões não pagam; não há gente que, tendo trabalhado no duro e descontado toda a vida, recebe, apesar disso, uma pensãozita miserável; não há famílias inteiras lançadas, do dia para a noite, no desemprego; não há jovens que se formaram e, depois, não conseguem nem um simples emprego de caixa no hipermercado ou de vigilante numa empresa de segurança – e, se conseguem, é, mesmo assim, com contrato precário (são aqueles que não têm cunhas nem paizinhos engraxadores); não há pequenos e médios empresários que, trabalhando quase 24 horas por dia, 30 (ou 31) dias por mês e 12 meses no ano, vão à falência porque a crise é enorme e os grandes grupos económicos comem tudo e não deixam nada; nem há crianças e idosos perdidos nos meandros da fome e do desamparo.

Para essa nossa ouvinte, nada disto existe. E também não existem os senhores que nada fazem, mas andam de Ferrari; os senhores doutores que souberam escolher bem o partido e que, agora, aprovam, na Assembleia da República, as leis que lhes garantem uma vidinha dourada até ao fim dos seus dias, com várias e substanciais reformas, seja na política, seja nas empresas que souberam alimentar enquanto governantes ou deputados, e para onde vão acabar de encher o baú: Galp, PT, CGD, TAP, CP, REFER e tantas outras que não cabem nesta espaço, porque a lista é longa. Ou tudo junto, com a reforma a somar aos proventos do trabalho político. Não há os empregados de luxo da democracia, que o povo elege para que o sirvam e ao país, e, no fim, são eles que saem servidos como nunca seriam se no trabalhinho tivessem ficado. É o tal 25 de Abril ao contrário.

É claro que, segundo a própria confessou, o seu filho nunca será despedido, nem a sua empresa há-de fechar, porque… Bem, não sei… mas perante tão augusta certeza, dada num país onde se despedem trabalhadores à pazada, cada um pode pensar o que quiser. De facto, em Portugal, hoje em dia, só pode garantir uma coisa destas quem estiver bem encostado ao poder político, ou seja um bom lambe-botas do poder económico. Ou as duas coisas ao mesmo tempo. Como a senhora é beneficiária dos SAMS, vêm-me à ideia nomes como o Banco de Portugal, a CGD, a UGT ou o próprio Sindicato dos Bancários do Sul e Ilhas, tudo instituições ligadas umbilicalmente ao poder político e económico, ou uma daquelas que referi há pouco. Mas cada um sabe de si, embora, como se ouviu, haja muito boa gente que só quer é mesmo saber de si e os outros que lixem. Parabéns por ser tão feliz, cara ouvinte e, pela minha parte, só desejo que nunca lhe bata à porta aquilo que bate, todos os dias, à porta de milhões de portugueses sérios e trabalhadores. Nessa altura, se mudar de opinião, talvez já seja tarde demais. Aliás, partir do princípio de que todos os que estão mal na vida, o estão por culpa própria, é uma bela maneira de aliviar a consciência e, por outro lado, fazer o frete a quem, pela certa, lhe sabe pagar o favor. Aos donos da roça onde, pelos vistos, se dá lindamente.

Isto foi, com toda a sinceridade, o que eu extraí do telefonema da ouvinte de Lisboa. Discordo do que disse, como facilmente se percebe, faço-o, até, numa linguagem ríspida e tirando as conclusões que me parecem lógicas, mas estou pronto a aceitar a réplica que entender fazer, na linguagem que também quiser usar. Nada melhor do que uma pessoa abrir a alma e a boca para deixar sair o que tem lá dentro. Se todos fizessem assim, o mundo seria muito mais são e transparente. Deixemo-nos do politicamente correcto, essa cínica ferramenta que serve para desfocar a realidade e esconder os podres da nossa vida, e chamemos os bois pelo seu nome. Que a nossa ouvinte não se acanhe com as minhas provocações. E pague-me na mesma moeda.

Mas quem já arranjou uma nova ocupação – felizmente, diga-se, porque era uma pena aquele vulto insigne da nossa querida pátria estar desocupado – foi o doutor Sampaio, que, para sua grande surpresa e satisfação («senti-me muito honrado por o senhor Secretário-Geral da ONU se ter lembrado de mim», disse ele, muito sério…) foi designado não sei o quê no âmbito do combate à tuberculose no planeta inteiro. Pus-me a pensar que Sua Excelência foi, durante dez anos, presidente da República em Portugal e, nesse período, a tuberculose, a par da SIDA, colocaram-nos à cabeça dos países onde essas doenças mais se revelaram. Se a experiência, neste caso, valer de alguma coisa, lá vai o bacilo de Koch infectar o resto do mundo. O currículo, de facto, não podia ser melhor: formação na área e provas dadas no combate à tuberculose cá no beco. Mas a nossa ouvinte deve ter sorrido de satisfação, ou não fosse ela uma fã destas pessoas que, à custa de muito trabalho e sacrifício, lá conseguem em empregozito (ia a dizer job, tacho, mas contive-me a tempo) numa idade em que não é fácil arranjar tal coisa. Aliás, com aquela idade, já o madraço do povo quer ir para a reforma. Estão a ver o que é um português a sério? Estão? Nunca lhe falta trabalho!

Mas… vá lá! A nossa ouvinte teve coragem. Telefonou. Não deu a cara, mas deu o nome, deu a voz, honra lhe seja feita. Gostei disso. De alguns sei eu que andam há tempos para ver se me puxam as orelhas pelas minhas opiniões, por eu ter a oportunidade de, sendo um homem livre, poder – graças à Rádio Baía, é justo que se diga – falar das coisas que me preocupam e, porque sou um entre milhões, preocupam de igual modo milhões de portugueses.

(Um parênteses para dizer que só espero que os democratas de aviário que por aí cacarejam, não se lembrem, um dia destes, de se vingar nesta rádio, por aqui ainda se usar uma das últimas coisas que nos restam de Abril: a liberdade de expressão. Fim de parênteses).

Querem, então, puxar-me as orelhas pelas minhas opiniões, ou denúncias, talvez consideradas delitos de opinião, que não, certamente, pelas mentiras, pois mentir é coisa que não me pesa na consciência. Mas se alguma imprecisão, sem querer fazê-lo, alguma vez aqui proferi, basta que mo digam cara a cara, que terei todo o gosto em reparar o meu erro. Aliás, penso que não se passa uma semana sem que um ou outro ouvinte afirme que as minhas «provocações» dizem aquilo que é preciso dizer, que só é pena que esta rádio não vá até mais longe, que aqui tocamos nos podres que infectam a nossa vida colectiva, que, em suma, defendemos uma sociedade justa e solidária e, em contrapartida, atacamos e denunciamos as políticas e as práticas que violentam as pessoas e sujam a democracia.

Os ouvintes já perceberam que não venho aqui defender interesses pessoais ou de grupos, mas valores e princípios em que acredito e que são os meus desde antes do 25 de Abril. Por isso, um job é sempre um job, seja qual for a cor do boy. Por isso, um corrupto oportunista é sempre um corrupto oportunista, seja qual for o cartão partidário que trouxer no bolso. Por isso, a política do utilizador / pagador é sempre uma má política – uma política de direita – seja qual for o hipócrita que a levar à prática. Por isso, para mim, as políticas e os actos valem por si próprios, e não alinho nessa – que aqui tenho bastas vezes denunciado – de que as políticas que atentam contra o povo passam a ser boas quando somos nós a executá-las.

Nunca aqui disse – e nunca direi – a que partido pertenço. Mas garanto-vos que tudo – ou quase tudo – o que acabei de dizer me foi ensinado por esse partido.

E depois, há algo muito – mas muito – importante: os partidos existem – ou deviam existir – para servir o povo e o país, e não para funcionarem como centros de emprego ou balcões de conversa fiada.

E, se não for assim, anda tudo do avesso. Não é?


Crónica de: João Carlos Pereira
Lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 17/05/2006. (Não deixe de ouvir e participar todas as quartas-feiras entre as 09H00 e as 10H00, em 98.7 Mhz)

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