03/05/2006

Pronto! A cada um o seu 25 de Abril…

A nossa conversa de há oito dias, onde eu disse (e expliquei porquê) que o 25 de Abril está morto e enterrado, provocou uma série de reacções. Quase todos os que me contactaram directamente – fosse por telefone, fosse por e-mail, fosse pessoalmente – fizeram-no para manifestar a sua concordância com os pontos de vista que aqui defendi. Apenas dois amigos, em quem reconheço honestidade, inteligência, frontalidade e verdadeiro espírito democrático, colocaram algumas reservas e críticas. Disse-me um que, afinal, o 25 de Abril estava vivo, porque me permitia dizer na rádio aquilo que penso, o que antes não podia fazer. Disse-me o outro, que o 25 de Abril é um processo dinâmico, que não começou em 25 de Abril de 1974, nem acabou ainda, porque o caminho dos povos na busca de soluções para os seus problemas sociais, económicos e culturais continua a fazer-se.

Nenhuma destas respeitáveis opiniões invalida o que eu disse – e aqui reafirmo. Ao primeiro respondi que, para mim, o 25 de Abril não se resume ao voto e à liberdade de expressão. Aliás, estou plenamente convencido que isso apenas nos será permitido enquanto servir para dar um ar democrático à actual ditadura do capital sobre o trabalho. No dia em que a palavra influenciar a mudança no sentido do voto, retirando ao poder económico as rédeas do nosso destino, veremos, então, a qualidade dos democratas que por aí temos. De resto, a propósito do voto, basta ver o que PS e PSD querem fazer à lei eleitoral, para impedir «surpresas» desagradáveis, assassinando o princípio da proporcionalidade. E quanto à liberdade de expressão, tenho-a eu e aqueles que dela não abrem mão – e que bem caro a pagamos – mas não a têm muitos portugueses que, por medos vários, se calam ou auto-censuram. Mas – e que ninguém se esqueça disso – o 25 de Abril que eu vivi (e desafio seja quem for a provar o contrário) não nos restituiu só a liberdade de expressão e a capacidade eleitoral. Quis fazer de Portugal um país justo, onde o poder político respeitasse todos os portugueses e garantisse a cada um aquilo que é devido a todos os seres humanos. Trabalho, remuneração capaz de proporcionar uma vida digna, com acesso a uma habitação decente, à saúde, à educação, à cultura e ao desenvolvimento físico e intelectual e, no ocaso da vida, a uma velhice sem o trauma da miséria e do abandono.

Quem viveu o 25 de Abril, sabe que, nessa altura, se acreditou que nunca mais veríamos um pai (ou mãe) de família à beira do desespero, porque perdeu o emprego, e agora não sabe como vai manter a casa, sustentar os filhos e honrar os seus compromissos. Nem crianças ou velhos com fome, frio, ou carecidos de medicamentos ou tecto. Pensámos que a miséria e a desigualdades tinham os dias contados.

Ao segundo amigo, apontei-lhe as últimas palavras da minha crónica, que aqui recordo. «Olha, Zé. Como te disse, “este” 25 de Abril já não é o nosso. Nossas, são a esperança, a luta, a coluna vertebral bem direita, a coragem de sermos homens livres e de dizermos o que pensamos. Nosso, é o 25 de Abril por haver. SEMPRE!». Isto diz tudo o que ele disse. Ou não?

Mas tive, é claro, os críticos silenciosos, os que rosnam para dentro ou em circuito fechado, os que não discutem nada, os que não pensam nada, os que não contribuem seja com o que for para ajudar a formar opinião, a enriquecer, com o seu ponto de vista, o círculo onde se inserem. São os que preferem o silêncio à palavra dita com a honestidade, a que é fruto das convicções próprias. São os que, contrariando até alguma coisa que aprenderam – ou deviam ter aprendido – não gostam da verdade, apesar de só ela ser revolucionária. São os que, não pensando nem analisando – e, por isso, nada dizendo ou emitindo – não passam de meros receptores improdutivos. São os “yes men” da esquerda, uma esquerda que até lhes agradecia outra atitude mais construtiva, frontal, lúcida e corajosa.

Mas com esses não vale a pena gastar mais latim. Por isso, leio-lhes os seguintes trechos, de autoria de dois democratas, e peço-lhes duas coisas: uma, que descubram quem são e onde escreveram isto; outra, que tirem daí – se forem capazes – as devidas conclusões. Oiçam o que disse um deles:

«As classes que se apoiavam na ditadura fascista e foram derrotadas pela revolução de Abril, ascenderam ao poder por via eleitoral. Procuram fazer recuar a história. Reduzem as fronteiras e espaços de exercício da democracia. Começaram por liquidar as bases para a democratização da economia e restabeleceram o domínio económico e político do capital monopolista. Passaram ao desmantelamento das conquistas sociais e dos direitos laborais. E entraram, nos últimos anos, na ofensiva para reduzir e desfigurar expressões da própria democracia política».

E disse o outro:

«Na verdade, não foi para isto que fizemos o 25 de Abril. (…) Regressou o domínio do grande capital e, com ele, a ofensiva contra os direitos dos trabalhadores, a intensificação da exploração, a submissão ao imperialismo, o ataque à própria democracia política. O grande capital é insaciável e, se tiver espaço, não recua perante nenhum crime na corrida ao máximo lucro. Que a taxa de desemprego seja a maior desde o 25 de Abril, que a pobreza aumente a olhos vistos, que a liquidação das funções sociais do Estado esteja a acelerar o processo de desertificação de vastas regiões do país, nada disso lhe tira o sono. O que importa é que os seus lucros cresçam, como de facto estão a crescer em escala sem precedentes».

E se isto quer dizer que o 25 de Abril – o 25 de Abril que o povo português saudou nas ruas, em 1974, com todas as promessas que eu acima referi – está vivo, então eu não sei a diferença entre a vida e a morte. E uma coisa é certa – e devo dizê-la: ninguém, entre os críticos, me acusou de ter mentido ou falsificado factos para chegar às conclusões a que cheguei. Pelo contrário, os muitos que me felicitaram por se reverem no que disse, foi comum afirmarem que era bom ouvir palavras que correspondiam aos seus próprios sentimentos. Guardei, especialmente, um telefonema de um casal de Lisboa, o Fernando e a Isabel Camarinhas, que me disseram da sua emoção – com algumas lágrimas à mistura – face ao retrato fiel que eu fizera da nossa tristíssima situação política, social e económica.

Mas houve também quem se sentisse atingido pelas minhas palavras, não por razões políticas, partidárias ou ideológicas, mas porque pus o dedo numa outra ferida, ela também impossível de existir se o 25 de Abril ainda estivesse por cá. Estou a referir-me aos oportunistas, aos corruptos, aos carreiristas políticos, aos muitos marmanjos que, oriundos das mais variadas origens sociais e partidárias, depressa descobriram que já não conseguiam viver doutra maneira que não fosse à custa da política.

Com eles, a política assume uma das suas faces mais ignóbeis. Habilidosos dentro dos seus partidos, de imediato perceberam como é fácil dominar a estrutura partidária. Tendo o poder, logo aprendem a comprar cumplicidades, distribuindo benesses, satisfazendo ambições, iludindo com promessas. Daí à promiscuidade com os interesses económicos, vai um passo, pois ninguém, a nenhum nível – seja nacional, seja local – quer estar de mal com o poder político, especialmente se este tem capacidade para lhe favorecer os negócios. Sei de empresários que, em campanha eleitoral, apoiam sem a menor hesitação todas as forças políticas concorrentes. Neste quadro, com o político eleito sendo o motor deste rodopio de interesses e favores, transformam-se os partidos em seus reféns, não vão as comadres zangarem-se e dizerem algumas verdades. Acham, caros ouvintes, que isto tem alguma coisa a ver com o 25 de Abril?

Mas tinha eu prometido que hoje falaria do estado da economia nacional, e agora vejo que o tempo se foi todo com o tema de há oito dias. Não faz mal. O que disse o FMI, o Banco de Portugal e a OCDE – e o que respondeu o ministro das finanças – são coisas que podem esperar. E não perdem por esperar. E se ele, como afirmou, não está nada preocupado com os relatórios negativos que esses organismos fizeram do desempenho da nossa economia, eu estou, porque ela está a levar-me o coiro e o cabelo.

De resto, percebo que ele não esteja «nada preocupado» com tais ninharias. Se eu tivesse a vida dele, se ganhasse o que ele ganha, se tivesse o futurozinho garantido quando saísse do Governo e – quando me apetecesse – riquíssimas reformas, sem problemas de idade ou de descontos, enfim, se eu também pertencesse à curtíssima casta de privilegiados deste pobre país, se fosse daqueles que sabem mover-se nas salas, corredores e reposteiros da política e da alta finança, eu queria lá saber se as coisas eram assim, ou assado. Era mesmo para esse lado que eu dormiria melhor.

Ou seja: o 25 de Abril do senhor ministro não é igual ao meu.

Nem ao seu, amigo ouvinte. Nem ao 25 de Abril de mais de 9 milhões de portugueses.

Também era o que faltava, não era?


(Crónica de João Carlos Pereira - Lida aos microfones da Rádio Baía em 03/05/2006)

1997, 2007 © Guia do Seixal

Visões do Seixal Blog Directório Informações Quem Somos Índice