26/04/2006

Meu querido e estimado Zé

Escrevo-te esta carta no dia 25 de Abril de 2006. Calhou assim. Calhou – e nada mais. É que é sempre à terça-feira – ou quase sempre – que escrevo as provocações que leio à quarta, aqui na nossa Rádio Baía e, assim sendo, aproveito o facto para, como se costuma dizer, matar dois coelhos de uma só cajadada. Não fora isso, e, meu caro amigo, nem no 25 de Abril tocaria. Acho que tem direito a descansar em paz, a ser respeitado lá no assento etéreo onde subiu, como diria Camões.

Antes de mais, quero dizer-te que, ao contrário do que me aconteceu há 32 anos atrás, em que passei o dia nas ruas de Lisboa, de transístor colado aos ouvidos e, depois, pela noite fora, agarrado à televisão, hoje, cá em casa, decidimos que, tanto rádio como televisão, ficam em silêncio. Hoje, meu amigo, meu irmão, em nome da nossa memória e das nossas esperanças, em nome da minha e da tua dignidade, é dia de recolhimento, e nenhum canalha entrará na minha casa para conspurcar o pão – cada vez menos e cada vez mais duro – que vamos comungar. Hoje, em minha casa, em memória de Abril, os meus e os teus inimigos ficarão a falar sozinhos nos estofos e nos palanques, onde certamente irão bolçar as hipócritas confissões democráticas ou, já sem qualquer decoro ou maquilhagem, a retórica opressora do sacrossanto poder do deus dinheiro, o único a que obedecem, o único em que acreditam.

Perguntou-me alguém, há dias, se eu iria às comemorações do 25 de Abril, feitas de um espectáculo musical, eventualmente antecedido de discurso de circunstância, debitado pelo mandante do sítio, e seguido do habitual fogo de artifício. Respondi-lhe assim: «Não, minha querida amiga e camarada, amanhã não vou assistir às cerimónias litúrgicas por alma do 25 de Abril, pois deixaram de ter, há já alguns anos, qualquer significado para mim (ou só têm esse, o significado de me lembrar que Abril está morto e enterrado). Para além disso, lembro-me sempre que aqui, no nosso caso concreto, onde o 25 de Abril devia – e podia – ser praticado todos os dias, é pura hipocrisia transformá-lo numa efeméride branqueadora da «ideologia» e das práticas em curso. Aqui também se está a enterrar Abril – e a todo o vapor. Por isso, ninguém conte comigo para folclores, nem para ouvir discursos quadrados, sempre iguais, sempre estúpidos e sempre falsos. O meu ABRIL já é outro».

E é isso que eu penso, meu amigo. O 25 de Abril deveria fazer hoje 32 anos, mas não faz. E sabes porquê? Porque morreu há muito, e ainda ninguém (para além de mim e de mais uns quantos loucos) teve a coragem de o dizer. Escondem-nos que o 25 de Abril morreu, para que continuemos a acreditar que tudo o que nos esmaga e tritura é democrático e é, em última análise, bom para nós.

Há dias, dizia um dos muitos espertos que ganham a vida a falar bem dos governos e a tentar explicar a bondade das suas políticas, que a nossa economia não aguenta o Estado Social. «Claro que não», pensei eu. A nossa economia, como sabes, amigo Zé, só aguenta a acumulação de mais e mais riqueza nas mãos de uns quantos. A nossa economia só aguenta os baixos impostos que os bancos pagam sobre os seus lucros fabulosos. A nossa economia só aguenta os “off-shoores”. A nossa economia só aguenta a isenção de impostos sobre os lucros da especulação da bolsa. A nossa economia só aguenta toda a bateria de tachos com que os políticos se presenteiam uns aos outros, com ordenados sobre ordenados, com reformas sobre reformas, com reformas mais ordenados, com ordenados mais reformas, com carros, telemóveis e “plafonds” quase sem limites para despesas de representação que cobrem almoços e jantares grátis, com belos acepipes e uísques com idade superior a (pelo menos) 15 anos.

E neste baile macabro, um verdadeiro «baile dos malditos», dançam quase todos os que, por várias manhas e artimanhas, treparam aos lugares de mando desta indecorosa democracia. Dançam, até, muitos dos que deveriam combater, pelo exemplo de inquestionável honestidade e dedicação, tão repulsiva farra.

A nossa economia só aguenta a paga de favores, também chamada corrupção, com as enormes negociatas a baloiçar entre as grandes obras públicas e os arranjinhos urbanísticos, com toda a gente a comer à conta de ti, amigo Zé, que és tu quem paga, sempre, a factura final.

Dê cá um lote, tome lá mais área de construção: tome lá a minha boa-vontade, dê cá uma piscina para a minha pequena herdade; fecha-me os olhos a isto, toma lá este cargo, que é mesmo à tua medida; sim, concordo com a obra, mas o que é que eu ganho em troca?

Zé, meu querido e pobre Zé, esta democracia transformou-se num bacanal. Cantava, aqui há uns anos, certo cantor de intervenção, que «cravo vermelho ao peito, a todos cai bem. Sobretudo dá jeito a muitos filhos da mãe». E é bem verdade. Foi agarrado aos cravos e a belos princípios que muito oportunista trepou por aí acima. O cravo é o seu balão de oxigénio, o seu salva-vidas, o seu soro fisiológico. Acena com ele no dia em que tira a ridícula pose emproada e a gravata de circunstância, para que tu, amigo Zé, penses que ele ainda é um dos teus. Mas olha bem para o que se esconde atrás das palavras e dos gestos, olha para o teu dia-a-dia, olha para ti, que nunca passaste da cepa torta, e olha para ele, e vê lá se o reconheces, se é que alguma vez o conheceste. E se abres a boca para dizeres que isto não é cumprir Abril, que isto é uma mascarada, que, afinal, talvez o 25 de Abril só esteja a aproveitar a uns quantos, e logo te cairão em cima raios e coriscos, dizendo que o malandro és tu.

Sabes que mais? Acho que chegámos à fase do democrata “Mac Donnalds”. Que raio de democrata é esse? – perguntas tu. E eu respondo: é o democrata “pronto a servir-se”.

Por isso te digo, Zé, que o 25 de Abril foi chão que deu uvas – ou só dá uvas, nos tempos que correm, para a nova aristocracia instalada no poder político, e a velha casta dos Senhores do Cacau – os nossos «coronéis» – que estão melhor hoje do que estavam no tempo da Outra Senhora. E, também para os “boys” e “girls” que povoam os gabinetes da administração central e local, latindo e dando à cauda conforme julgam que o seu amo deseja. Um nojo, meu amigo. Um nojo.

Olha bem para eles, vê o que fazem, pergunta quanto ganham à tua conta, mira-os dos pés à cabeça, vê que carros conduzem, em que moradias moram, onde passam as férias, que perfumes gastam, em que restaurantes comem, e pergunta a ti mesmo se é assim que eles viveriam se – coitados! – não se tivessem dedicado a servir o bom povo português. Um dia, Zé, talvez te mostre uma colecção que eu tenho, composta de pequenos rectângulos cheios de palavras e números, prova acabada do que fazem certos democratas a quem tu, meu ingénuo amigo, na melhor das intenções entregaste o poder. Um dia, se calhar…

Dito isto, talvez agora percebas porque são tão poucos os que hoje, no panorama político/partidário, combatem o 25 de Abril. É que «este» 25 de Abril (este, e não o teu – o nosso – que está morto) lhes serve às mil maravilhas. Vão-se enchendo, asseguram o seu presente e o seu futuro e, o que é mais importante – e verdadeiramente diabólico – é que todos os sacrifícios que te impõem, Zé, são sempre em nome da democracia e – vê lá tu bem a ironia! – em nome desse mesmo 25 de Abril.

Por hoje, Zé, meu querido amigo, fico por aqui. Para a semana, se tiver pachorra, talvez te fale do descalabro da nossa economia, dos dias terríveis e inquietantes que se aproximam, dessas coisas. E doutras.

Mas não quero acabar sem te dar, em primeira-mão, uma notícia espantosa e que reflecte, sem margem para dúvidas, o estado a que esta nossa «democracia» chegou, prova de que o nosso 25 de Abril está mais do que morto. Tens ouvido falar do caso Casa Pia e dos nomes envolvidos (dos que estão na barra do tribunal, e dos que – todos sabemos porquê – não chegaram a sentar-se no banco dos réus), tens ouvido falar disso, não tens? Pois…

O que tu não sabes, é que todo o processo pode ser anulado. «Porquê!?», perguntarás tu, incrédulo. Eu esclareço-te. Lembras-te, logo no início do processo, de um dos advogados ter pedido que o juiz Teixeira fosse substituído pelo juiz «natural», a quem competia pegar no processo? Lembras-te que isso foi parar ao Supremo? Pois foi, e aí é que está o busílis! É que o acórdão, segundo ouvi dizer a fonte bem colocada, rezará que embora o juiz Teixeira não seja o juiz «natural», dado o volume de trabalho do titular, o juiz Teixeira continuará com a instrução do processo. No final do julgamento, se a defesa reclamar, voltará o Supremo a debruçar-se sobre o pedido de rejeição do juiz! Ficaste de boca aberta? Também eu. Já viste, certamente, onde é que isto vai dar: É isso mesmo. Se a defesa, reclamar, porque o julgamento lhe correu mal, então, o Supremo decidirá. Isto quer dizer, para muito boa gente, que o mais natural é… TODO O PROCESSO SER ANULADO!

Será, meu querido amigo – e sempre lixado – Zé, como se nunca tivesse havido processo Casa Pia. Muitos milhões de euros, incalculáveis horas de trabalho, anos de “stress” e de violência física, de sórdida farsa legal... tudo – mas tudo mesmo! – para o lixo! Principalmente as vítimas. Afinal, até já foram indemnizadas, estás a perceber agora?

Olha, Zé. Como te disse, «este» 25 de Abril já não é o nosso. Nossas, são a esperança, a luta, a coluna vertebral bem direita, a coragem de sermos homens livres e de dizermos o que pensamos.

Zé. Nosso, é o 25 de Abril por haver.

SEMPRE!


(Crónica de João Carlos Pereira - Lida aos microfones da Rádio Baía em 26/04/2006)

6 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Amigo João
Quero agradecer-te a carta que me escreveste e dizer-te que estou completamente de acordo contigo, pois se o 25 de Abril de 1974 foi o renovar da esperança num País mais justo e fraterno, hoje já nem a esperança existe dentro de nós.
Quanto à justiça (social) está bem à vista o que “democraticamente” os senhores de cravo ao peito decidiram esta semana: no futuro, como a esperança de vida está a aumentar (o que é uma chatisse para eles), as reformas serão reduzidas em 5% ou então teremos de trabalhar mais e descontar mais.
Tens toda a razão, meu Amigo: isto nada tem a ver com o 25 de Abril.
Quando alguns dizem que não é bem assim porque hoje temos liberdade de expressão, de reunião e até direito ao voto, talvez na sua ingenuidade ainda não se tenham apercebido que isso de pouco ou nada serve a quem não tem dinheiro para sobreviver nesta sociedade com o mínimo indispensável às suas necessidades mais básicas, como sejam a saúde e a alimentação.
Para que nos servem as tais liberdades ? Ao menos no antigamente sabíamos que corríamos alguns riscos, mas tínhamos muito mais entusiasmo em escrever ou reunir clandestinamente e o voto era um mero exercício para tapar o sol com a peneira, tal como hoje, em que os dois partidos que constituem a UNIÃO NACIONAL aprovam as Leis que só a eles podem interessar. Neste sistema, a única coisa que muda de vez em quando é o SALAZAR, porque a política é exactamente a mesma, só se alterando alguns protagonistas.
Meu caro Amigo João:
Desculpa-me este desabafo, mas depois de ouvir e ler a tua crónica tive vontade de te responder, porque tendo participado há 32 anos no Movimento (embora que modestamente) fiz um balanço de todos estes anos e cheguei à mesma conclusão que tu. O 25 de Abril está morto e enterrado.
Um grande abraço de um Zé.

28/4/06 10:55 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Amigo «Zé».

Só nos resta uma saída: denunciar os crápulas, apelar à indignação (mais que legítima) e explicar que pode haver uma outra sociedade, baseada na solidariedade, na justiça - a todos os níveis - e que respeite todos os seres humanos. Uma outra política. E não a rótulo como de esquerda ou de direita, mas apenas com uma simples designação:
HUMANA.

Um abraço.

jc

28/4/06 12:47 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Estas opiniões cheiram-me a fascismo.
VIVA O 25 DE ABRIL

28/4/06 11:22 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

A fascismo cheira-me o teu comentário. Porque é anónimo e, também, imbecil, visto estar totalmente desenquadrado do teor das afirmações que pretenderia
comentar.

É o habitual arroto de quem deve ter por aí um tacho «democrático», mais um que anda a viver (muito bem) à custa do 25 de Abril. Por isso, a mim, ao que me cheira, é a um pidezinho com a roupa do avesso. E, para disfarçar, de cravo na mão.

Mas se quiseres conversar melhor sobre estas coisas, dá o rosto e o nome, coisa que deverias ter feito logo, se tivesses no sítio as várias coisas que é suposto ter-se. Por exemplo? Razão, coragem, dignidade e, principalmente,
se não tivesses, em vez disso, rabos-de-palha a dar com um pau.

Percebeste?

João Carlos Pereira

2/5/06 11:19 da manhã  
Blogger x said...

Caro João Carlos

Quem considera que ter uma opinião (qualquer que ela seja) é “cheirar a fascismo”, só pode vir de alguém frustrado que anda a parasitar por este mundo, escondendo-se atrás do anonimato e que, coitado ou coitada, não sabe o que diz.
Penso que nem vale a pena perder tempo com este tipo de comentários, pois estamos receptivos a aceitar críticas frontais e a discutir opiniões com quem quer que seja, desde que sejam sérias e que possam contribuir para um melhor esclarecimento de todos nós.
Esta página estará aberta (enquanto pudermos) a todos aqueles que honestamente queiram dar a sua opinião, pois, tal como dizes e é bem verdade, cada vez é mais difícil encontrar espaços livres e sem censura.
Isto porque, a censura não é só o “lápis azul” de outros tempos; pode ser também exercida através de meios económicos ou políticos sobre aqueles que não alinham com o poder instituído.
Eu sei que tu sabes que eu sei do que estou a falar e sei também que me compreendes, tal como eu sei e compreendo o que tu sabes.
Deixa que estes pobres e infelizes digam as parvoíces que lhes vai na alma, pois, coitados, só sabem viver agarrados à bajulice e não têm ideias próprias.

Um grande abraço,

Celino Cunha Vieira

3/5/06 4:29 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Sabes o que te digo, amigo.

Este «corajoso» comentador já teve troco demais...

Um abraço.

João Carlos Pereira

3/5/06 5:57 da tarde  

Enviar um comentário

<< Home

1997, 2007 © Guia do Seixal

Visões do Seixal Blog Directório Informações Quem Somos Índice