05/04/2006

Um desgosto do caraças!

Se eu hoje tivesse 20 anos, e estivesse, como é natural nessa idade, a pensar em criar família, dificilmente encararia a possibilidade de trazer filhos a este mundo – e, quando digo mundo, quero dizer, principalmente, Portugal. Aliás, se eu tivesse menos 20 ou 30 anos, certamente já teria emigrado, livrando-me, assim, do enxovalho de viver num país onde os bandos partidários se revezam na tarefa de asfixiar milhões de pessoas, e delas tirar o oxigénio que enche os pulmões dos grandes interesses económicos.

Talvez por isso – e por haver muita gente que pensa como eu penso – Portugal seja hoje um país envelhecido, habitado por um povo triste, sem esperança e descrente de, a curto ou médio prazo, ver invertido este estado de coisas. Cada criança que nasce, hoje, em Portugal, é um cordeiro deitado aos lobos do neo-liberalismo reinante (a que alguns preferem chamar capitalismo selvagem), cordeiro destinado a penar nas garras gulosas do poder económico, uma peça descartável no obsceno processo de acumulação de riqueza. Um ser praticamente sem direitos e sem capacidade de intervenção, destinado, unicamente, a produzir mais-valias toda a vida.

Há dias, diziam alguns arautos do-assim-é-que-isto-se-endireita, que a estabilidade de emprego e a segurança profissional e económica são ideias do passado, são coisas negativas para o progresso e o desenvolvimento das sociedades. Pelo contrário – diziam eles – a precariedade, a instabilidade, a necessidade de um ser humano se ter de ajustar (sujeitar, digo eu) ao que aparece e à possibilidade de, de um momento para o outro, se poder ficar sem emprego – e, por consequência, sem dinheiro para o pãozinho para a boca – diziam eles que isso é estimulante em termos da atitude e do desempenho profissional e, portanto, muito bom em termos económicos.

Quem assim falava, curiosamente, tem trabalho certo e remuneração (excelente remuneração, diga-se) certíssima. Eram os habituais comentadores e analistas políticos e económicos e, está claro, três patrões de empresas de aluguer de mão-de-obra, actividade que, mantidas as devidas distâncias, se fosse exercida num barco negreiro dos belos tempos do saudoso comércio de escravos, ninguém se espantaria com o facto.

Hoje, são imorais, negativas, antiquadas, desaconselháveis, crime de lesa pátria, perigosas ou puro suicídio económico quaisquer medidas, ideias ou pretensões que falem em direitos laborais, designadamente salários decentes e estabilidade de emprego. São coisas do passado, inaceitáveis numa sociedade moderna e que se quer desenvolvida. É esta, pode dizer-se, a ideologia dominante, interpretada melhor do que nunca pelo tenor falsete, José Sócrates. E nunca, em momento nenhum deste curto arremedo democrático, que faz este mês 32 anos, os portugueses sofreram uma tão brutal investida contra a sua cidadania e uma tão cínica violação dos seus direitos humanos. Mais de nove milhões de pessoas são consideradas responsáveis pela crise em que vivemos e, por o serem, estão condenadas a pagar o que for necessário para a sua resolução.

É assim, sem mais nem menos, que eles nos apresentam as coisas. Por isso, cortam nos salários e nas pensões, cortam nos direitos sociais, cortam no ensino, cortam na saúde, sangra-se o rebanho o mais que o rebanho deixar. E, pelo que estou a ver, o rebanho está a aguentar lindamente a sangria.

Assim sangrado, abre o redil as portas a outro maná – a especulação da renovada classe dos prestamistas. Floresce, então, a indústria desses agiotas de nova geração, outra forma da cavalgada saqueadora do capital financeiro, ávido dos últimos cêntimos que possam sobrar nos forros da nossa roupa. Na rádio, nos jornais, na televisão, incontáveis empresas oferecem-nos dinheiro de um dia para o outro. Basta telefonar e, num abrir e fechar de olhos, a nossa conta fica recheada com uns milhares de euros. Para muitas (muitíssimas) famílias com a corda na garganta, é difícil resistir às aliciantes propostas. Está ali a salvação. Quatro mil euros vão dar para pagar as duas prestações atrasadas do empréstimo à habitação, carregar o telemóvel, encher, enfim, o depósito do carro, rechear o frigorífico, comprar, talvez, aqueles sapatos (que nem eram caros…), para poder levar estes ao sapateiro e, principalmente, para calar a boca aos miúdos, que são todos os dias humilhados pelos colegas, lá na escola, por ainda não terem telemóvel, mochilas da Nike, ténis da Adidas, e jeans de uma marca qualquer da moda.

Assim são os tempos, é verdade, em que os meninos se julgam todos ricos, ou disso querem fazer figura, mesmo que os pais sejam pobres, ou mesmo muito pobres. É a cultura do shopping center, das vacuidades, do supérfluo, do virtual, do faz-de-conta, do caça-níqueis. Tempos em que ser pobre (ou remediado) é considerado um estigma, quase um crime – ou um falhanço pessoal de quem não soube ser rico nesta sociedade de oportunidades. A culpa da miséria – fazem-nos crer – não é das políticas, não é dos governantes, não é do sistema económico e político em que vivemos, não é desta sociedade injusta e desumanizada, não é, como dizia Almeida Garrett, de serem precisos muitos pobres para se fazer um rico (em boa verdade, ele não dizia, perguntava: «Quantos pobres serão necessários para se fazer um rico?»). Não! Os meninos e as meninas de hoje, com honrosas excepções, julgam que vivem dentro de uma telenovela brasileira – ou naquelas ainda mais imbecis, as nacionais – onde é tudo cor-de-rosa e os dramazinhos dos enredos têm sempre soluções felizes. Os próprios pais, para evitarem o descrédito familiar, com os traumas daí decorrentes para as infantes criaturas, fazem o que podem e o que não podem – ou não devem – para salvar as aparências.

O pior, é que o tal empréstimo milagroso afundou ainda mais a crise orçamental e a liquidez da família. Dentro de um mês ou dois, tudo estará pior. E se um dos elementos do casal perde o emprego, em nome da tal modernidade que ia salvar a economia, o drama transforma-se em tragédia.

Só um exemplo: sei de um casal, com dois filhos já em idade escolar, que vivia com bastante desafogo. Moravam, até há dois anos atrás, na Charneca de Caparica, num belíssimo duplex. Boas roupas, bons carros para ele e para ela, os filhos num dos melhores externatos da zona, boa vida, em suma. Primeiro, foi ela a ficar desempregada, por ter fechado a firma onde trabalhava. Passados alguns meses, foi ele a perder o emprego, numa conhecida estação televisiva. Praticamente de um dia para o outro, todo ruiu para aquelas quatro pessoas. A casa está agora desocupada, depois do banco que financiou o empréstimo para a sua aquisição, ter accionado a respectiva hipoteca. Pais, filhos e carros desapareceram da zona, e sobre os seus destino apenas podemos especular.

Mas, caros ouvintes, quantos dramas como estes não se repetem, todos os dias, um pouco por toda a parte? E quantas destas vítimas não votaram – e, se calhar, voltarão a votar – nos partidos que defendem e praticam as políticas que a estas situações conduzem? As milagrosas políticas da modernidade?

Veja-se e oiça-se como altas figuras da direita e do grande patronato não se cansam de elogiar a coragem e a determinação de Sócrates na concretização dessas políticas, e perceba-se a quem elas, afinal, servem. E se alguém, mesmo assim, ainda não percebeu, eu explico: servem para saquear um povo inteiro em favor de quem detém o poder económico.

E pergunto-me, na sequência do que venho a dizer, que futuro vai ser o destes jovens, cuja mentalidade se forma à margem da realidade social e económica do país que temos? Que capacidade terão para enfrentar a vida quando, perdida a inocência e as ilusões dos seus verdes anos, se virem confrontados com a crueza da luta pela sobrevivência, especialmente se os pais já cá não estiverem para lhes valer, ou se – muito pior – necessitarem, também eles, de uma sopa ou de um canto para dormitar?

Não sei responder a isto. Ou, se calhar, tenho medo da resposta.

No entanto, dizem as sondagens que os portugueses continuam pessimistas em relação à sua situação financeira e à situação económica do país, e sem grandes expectativas de que este panorama negativo possa melhorar no prazo de um ano. Colocados perante a questão de como perspectivam a sua situação económica pessoal e a do seu agregado familiar dentro de um ano, mais de 43% das respostas foram no sentido de uma deterioração e apenas menos de 20% dos inquiridos acreditam numa melhoria. Pouco menos de um terço disse que não haverá alterações. Perante a mesma questão, mas em relação à situação económica do país, mais de 45% dos inquiridos acredita que a economia portuguesa estará pior em Março de 2007, e apenas 26,5% vislumbram uma melhoria.

Ainda no campo das sondagens, ficámos a saber que perto de metade dos portugueses que têm dívidas à banca, ou crédito bancário, confessa que nos últimos meses já teve de reduzir despesas de consumo para poder satisfazer os compromissos que assumiu com o sector financeiro. Este endividamento é mais patente nas mulheres, com mais de metade a confessar que tiveram de cortar despesas de consumo. Por escalão etário, são os inquiridos com mais de 55 anos que mais se encontram nesta situação, tal como os que vivem no interior norte e pertencem à classe média.

Pois é. Como as coisas estão, deitar filhos ao mundo é quase criminoso. Ou vêm os lobos e devoram-nos, ou – outra possibilidade, ainda que remota –juntam-se aos lobos e passam a ser a desonra da família.

É que um homem sério que tenha um filho político, como a política é hoje em Portugal… oh, meus amigos, deve ser cá um desgosto do caraças!

Para mim, é bem pior do que ser o mais pobre dos pobres.

(Crónica de João Carlos Pereira - Lida aos microfones da Rádio Baía em 05/04/2006)

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