19/04/2006

Amêndoas amargas

Passou a Páscoa. Os mais endinheirados puderam sair das rotinas diárias, quer isso significasse uma viagem à terrinha, ou, noutros casos (e isto, a acreditar no que nos foi dizendo a televisão, que insistiu na tecla), uma ida até aos Algarves. Os tesos, ficaram por aí. Dos muito endinheirados – os super-ricos, quer sejam os do costume, quer sejam os novos-ricos que por aí vão florescendo à custa da política e doutras habilidades – desses, não soubemos nada, mas deve ter sido bem doce e suculenta a sua festa pascal. Se Cristo os visse, certamente se perguntaria porque carga de água tanto se esforçou há dois mil anos – até se deixando crucificar para limpar tanta sujeira – se as coisas estão hoje bem piores do que nesse tempo.

É. O mundo está mais perigoso, mais violento, mais desigual e mais injusto, a tal ponto, que já se diz que é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha, que, algum dia, um pobre sair do inferno em que vive. E como os ricos se estão nas tintas para o reino dos céus (embora finjam o contrário) – que para paraíso já lhes chega este que na terra têm – Cristo que volte e resolva isto de uma vez por todas.

É claro que se Jesus voltasse para acabar a sua obra, seria o pandemónio lá para as bandas do Vaticano, que – diga-se a verdade – não se tem dado nada mal com este estado de coisas. Aliás, como explicar ao Nazareno tanto luxo, tanto ouro, tanta opulência, tanto príncipe da Igreja tão bem paramentado, tão reluzente e anafado, tão saciado de tudo o que são bens materiais, tão perto e tão afim dos poderosos desta terra, e tão distante de milhões de seres humanos famintos, doentes, os Lázaros deste tempo, que suas eminências, do alto da sua santidade, só sabem de ouvir contar? E do Banco do Vaticano nem é bom falar, pois Judas, ao pé de qualquer banqueiro, passa por santo entre os mais santos.

(Aliás, desde que, no ano 313 D.C, o Imperador Constantino, aproveitando a grande difusão do Cristianismo entre um povo farto de sustentar as loucuras do Império, deitou a mão à religião emergente, para dela tomar conta e a modificar conforme os seus interesses, levando a que, alguns anos depois, no Concílio de Nicéia, fosse fundada, oficialmente, a Igreja Católica e materializada a primeira grande traição a Cristo – parece que as de Judas e Pedro nem traição terão sido – nunca a hierarquia católica se deu mal com o poder temporal, passando a usar Jesus de Nazaré de acordo com o que mais conviesse aos poderosos).

Mas, queria eu dizer que, ou Cristo volta e resolve isto de vez, ou os pobres e os remediados vão ter de abrir os olhos e resolverem eles a questão, o que também seria cumprir os Evangelhos. Afinal, os desfavorecidos sempre estão em maioria e, diga-se lá o que se disser, haverá paz na terra no dia em que houver trabalho e pão por todos – e por todos bem distribuídos.

Para os pobres, então, a Páscoa foi cheia de amêndoas amargas. Já falámos, há oito dias, na queda dos benefícios fiscais para as míseras poupanças dos reformados e deficientes. Hoje, falamos de mais do mesmo, ou seja, do aumento de impostos para os reformados. É que o governo acabou de publicar a tabela de retenções de IRS que será aplicada às pensões já a partir deste mês. A simples comparação entre a tabela que vigorou em 2005 e a que se aplicará em 2006, mostra que centenas de milhares de reformados verão o IRS que pagam aumentar e, em muitos casos, significativamente. E isto porque, contrariamente ao que seria normal, os valores dos escalões de 2006, a começar pelo mais baixo, para idêntico nível, são inferiores aos de 2005, o que leva a que milhares de pensionistas sejam prejudicados de duas formas.

Em primeiro lugar, devido à diminuição do valor do escalão, o que determina que uma parcela do seu rendimento que não estava sujeita a IRS em 2005 passe a estar em 2006, ou que, embora sujeita em 2005, passe a estar sujeita a uma taxa de retenção maior.

E em segundo lugar, são também prejudicados pois, contrariamente ao que seria de esperar, não se verificou a actualização do valor dos escalões, necessária para compensar os reformados pelo aumento de preços que se verificará em 2006. Por exemplo: o valor do 1.º escalão era, em 2005, de 808,36 euros mas, em 2006, é apenas 767 euros, ou seja, menos 41,36 euros. O mesmo sucede em relação aos outros escalões. Esta diminuição determina que pensões que em 2005 estavam isentas de retenção de IRS, em 2006 já não o estarão. Assim, uma pensão mensal de 800 euros a que, em 2005, não era feita qualquer retenção para IRS, em 2006 já sofre uma retenção (redução) de 1%. E situação semelhante se verifica relativamente a valores de pensões mais elevados, que passam a estar sujeitos a taxas de retenção mais elevadas. Por exemplo, em 2005, uma pensão de 900 euros sofria uma retenção de 1%; mas em 2006, uma pensão mensal com esse valor já sofre, não uma retenção de 1%, mas sim de 2%, ou seja o dobro; e assim por diante.

Resumindo: a redução de 8.283 euros para 7.500 euros da dedução especifica que incide sobre os rendimentos de pensões, aprovada pelo governo, determina que rendimentos de pensões que antes não pagavam IRS, o paguem em 2006, ou então que rendimentos que pagavam IRS em 2005, continuem a pagar em 2006, mas sujeitos a uma taxa mais elevada. Por outras palavras, todos os reformados com pensões mensais superiores a 535 euros (7.500 euros por ano) pagarão mais IRS em 2006 do que em 2005 por igual rendimento. E isto resulta do facto de que uma parcela do rendimento no valor de 783 euros – a diferença entre 8.283 euros e 7500 euros – que não estava sujeita a IRS em 2005, em 2006 já estará sujeita. E não se pense que o seu número é pequeno, como afirmaram o ministro das Finanças e o deputado do PS, Carlos Candal, pois, só na Administração Pública, corresponde a cerca de 74,5% dos aposentados e reformados existentes em Dezembro de 2005.

E para quem teve aumentos de 2% nas pensões, como sucedeu com muitos reformados, uma subida de um ponto percentual na retenção corresponde a metade do aumento que, desta forma, é «comido». Fica assim claro, que grande número de reformados sofrerão efectivamente um aumento do IRS em 2006, contrariamente ao que afirmou o ministro das Finanças e o porta-voz do grupo parlamentar do PS.

Em Novembro de 2005, aquando do debate do Orçamento do Estado, o deputado do PCP, o economista Eugénio Rosa, cujos estudos pirateei na Net para fazer esta crónica, solicitou, através de um requerimento, ao Ministério das Finanças, que o governo informasse qual seria o acréscimo de receita fiscal ou, por outras palavras, quanto custaria aos reformados, em aumento de impostos, a redução da sua dedução especifica de 8.283 euros para 7.500 euros. E a resposta foi a seguinte: “de acordo com os exercícios de simulação levados a cabo para o efeito, estima-se um acréscimo de receita de cerca de 26 milhões de euros em 2006”.

Na mesma altura em que o governo propunha – e a bancada parlamentar do PS caninamente aprovava – esta medida a aplicar aos reformados, que determina um aumento de impostos que o próprio governo avaliou em 26 milhões de euros, o mesmo governo e a mesma bancada do PS recusavam eliminar o art.º 59 do Estatuto dos Benefícios Fiscais, que estabelece que apenas 50% dos dividendos das empresas adquiridas em processos de privatização estão sujeitos a imposto. E fique-se a saber que a receita fiscal que o Estado perde devido a este benefício é quase igual ao aumento da receita a pagar agora pelos reformados. Isto é: enquanto tira aos pobres e remediados, o governo recusa-se a tocar nos lucros fabulosos que a especulação bolsista e os processos de privatização rendem aos grandes grupos económicos e aos seus donos. É a «esquerda moderna» e socialista do engenheiro Sócrates a funcionar no seu melhor.

Mais – e pior: os rendimentos superiores a 250 mil euros (50 mil contos anuais) continuam isentos de impostos na parte que excede esse valor, mas a tal «esquerda moderna» que o PS diz ser, aí não toca. Enquanto se agacha face aos muito ricos, entra à ganância nos bolsos dos que mais precisam.

Ainda na mesma altura, o governo e a bancada do PS recusavam também uma outra proposta, apresentada pelo PCP, que visava introduzir uma norma travão, de forma a impedir que os bancos continuassem a pagar taxas de IRC que correspondem a menos de metade da taxa legal de IRC (em 2004, a taxa efectiva média de IRC paga pelo sector bancário foi apenas de 12,1%, quando a taxa legal de IRC é de 25%, que é a taxa que incide sobre a maioria das PME. E esta situação verificar-se-á certamente em relação aos lucros escandalosos obtidos pelos bancos em 2005).

«Ó Cristo, não venhas cá abaixo ver isto!» peço-lhe eu, que nem sou crente. Mas, à cautela, sempre acho melhor evitar a repetição da história, já que não duvido de que hoje, como naquele tempo, (fez agora 1.973 anos, pois JC nasceu há 2006 anos e crucificaram-no tinha ele aos 33, logo… é só fazer as contas, como gaguejou o outro), pois não duvido, dizia eu, que novo Calvário se haveria de inventar para lá sacrificar o atrevido, desta vez, seguramente, sobre a acusação de terrorista ligado ao Eixo do Mal.

Mas há mais amêndoas amargas – e já não falo do aumento dos combustíveis, que já subiram 3 vezes este mês. Em Portugal, a carga fiscal cresceu durante o ano passado ao ritmo mais alto desde 1999, fazendo com que Portugal tenha sido o segundo país com uma variação mais acentuada deste indicador em toda a União Europeia. Segundo dados divulgados pela Direcção-Geral do Orçamento, no âmbito do acordo de divulgação de dados com o Fundo Monetário Internacional, passou de 34,2% em 2004 para 35,2% em 2005.

Esta subida de um ponto percentual no peso dos impostos e contribuições na economia é uma das mais fortes registadas em Portugal. Nos últimos 20 anos, de acordo com a Comissão Europeia, apenas por quatro vezes a variação anual deste indicador foi idêntica ou superior a um ponto percentual do PIB. A última vez que foi superior foi em 1999, ano em que a carga fiscal portuguesa aumentou 1,1 pontos percentuais do PIB.

Em comparação com os outros países da União Europeia, Portugal está entre os que viram a pressão fiscal exercida sobre as empresas e os particulares crescer mais. Entre as economias que em 2005 viram a carga fiscal diminuir, destaque para as do Leste europeu, notando-se a tentativa de países como a Polónia, Lituânia e Estónia se tornarem competitivos em termos fiscais. A Alemanha, Itália e a Grécia, que, tal como Portugal, enfrentam problemas orçamentais graves, registaram ainda assim uma redução da carga fiscal durante o ano passado.

Por isso, meus amigos, quem pode vai viver para Espanha, como se prova pelas constantes notícias sobre portugueses que fogem deste barco negreiro chamado Portugal.

Para acabar, vou ler-vos o que escrevi, há dias, a um amigo meu, no meio de um texto sobre estas e outras coisas. Disse eu:

«Vivi quase 32 anos em ditadura, e vou com quase outros 32 em “democracia”. Mas nunca me senti tão pouco livre, tão amarrado, tão sem soluções, tão sem esperança de viver numa sociedade justa. No fascismo, dizíamos: «um dia... mais tarde ou mais cedo, a coisa vai». Com estes, estamos presos na armadilha democrática, que é infinitamente mais eficaz que Caxias ou Peniche, ou que a PIDE e a Censura. Mas que levam a água para o moinho dos mesmos».

Ou por outras palavras: Nunca tive natais tão tristes e nunca provei amêndoas tão amargas.


(Crónica de João Carlos Pereira - Lida aos microfones da Rádio Baía em 19/04/2006)

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