12/04/2006

Somos doidos, ou quê?!

Vamos começar a nossa conversa de hoje pegando ainda na conversa da semana passada. E se quero fazê-lo, não é por nos termos confrontado, há oito dias, com opiniões contraditórias – coisa que, como sabem, muito me agrada (e só lamento que não aconteça sempre) – mas porque a discussão havida resultou de um equívoco. Isto é: não tivemos pontos de vista diferentes sobre uma mesma situação, mas duas situações diferentes tomadas como se de uma só se tratasse.

Eu explico:

Para mostrar como a vida dos portugueses é, nos dias que correm, um mar de insegurança e um atentado à sua dignidade, dei como exemplo o que aconteceu a um casal com dois filhos, na altura residentes na Charneca de Caparica. Qualquer dos elementos do casal tinham um bom emprego, aparentemente estáveis, e nada fazia prever que, no curto espaço de meses, ambos o perdessem. Naturalmente que haviam assumido responsabilidades compatíveis com a realidade do seu orçamento, designadamente a compra de um duplex, dois automóveis e, como seria natural, tinham os filhos a estudar num bom colégio.

Não se tratou de um caso de falta de cabeça para governar a vida, como também não é disso que se trata quando um jovem casal, face aos seus rendimentos, mais ou menos modestos, decide iniciar a sua vida comum, comprando um pequeno andar, a mobília e os equipamentos necessários a um conforto mínimo, um carrito em segunda mão, coisas assim. Num caso e noutro, quando esta bela sociedade democrática resolve dar o coice, não há volta a dar-lhe. Vai tudo com a trouxa às costas para casa dos pais ou, na pior das hipóteses, para um bairro de lata ou para debaixo da ponte.

O que acontece é que uma ouvinte de Lisboa meteu no mesmo pacote estes casos e aqueles – que todos também conhecemos – de má governação, ou seja, daquelas pessoas que gastam o que têm e o que não têm e que, haja ou não a mão do capitalismo a funcionar no seu melhor, acabam por encravar a vidinha sem remédio que lhes valha. Conheço casos dramáticos desta natureza, nascidos apenas da má cabeça das pessoas, e que acontecerão sempre, sejam quais forem os governos ou as políticas em curso.

Por isso, tive o cuidado de esclarecer a ouvinte que, embora estando de acordo na crítica a esse tipo de irresponsabilidade – que aqui reafirmo – não era disso que eu estava a falar quando deu o exemplo do casal da Charneca de Caparica. Uma coisa, é ser-se irresponsável e não saber governar a vida que se tem; outra, é ser-se vítima das políticas assassinas e desumanas com que os governos, pela arreata do grande capital, vão chacinando franjas cada vez mais vastas do povo português.

Mas pronto! Estava armado o baile. Que a ouvinte – e eu, por tabela – defendíamos que as pessoas não tinham direito a uma vida digna, com casas decentes, férias, conforto, que deviam fazer sacrifícios toda a vida para não terem surpresas desagradáveis, etc. etc. Não me custa – e até gosto – que me contradigam e provoquem (e é mesmo para isso que eu aqui estou, para me sujeitar ao debate e à troca de ideias), mas, quando isso acontecer, que seja por algo que eu realmente diga e defenda, e não por coisas que eu não digo nem penso. Estamos esclarecidos?

E salto já daqui, a propósito, para o que disse o presidente da Rede Europeia Anti-Pobreza, de Portugal, padre Jardim Moreira, ao denunciar que as assimetrias sociais no país «são escandalosas», sendo urgente «encontrar um equilíbrio para a distribuição da riqueza». «Portugal tem ainda dois milhões de pobres», o que equivale a cerca de 20 por cento da população, constatando-se que «muitos deles são empregados», pelo que «não basta uma política de emprego» para resolver a situação, acrescentado que «é preciso qualificar as pessoas para terem competências que lhes permitam chegar a um emprego, mas um emprego que lhes possa dar rendimento suficiente». «O trabalho tem que estar ao serviço das pessoas e não as pessoas ao serviço do capital», disse ainda o presidente da REA-PN, na Marinha Grande, na abertura do seminário «As políticas sociais em Portugal: O que são? Como estão? Para onde vão?».

Dando o exemplo do aproveitamento dos fundos estruturais, este responsável sublinhou que «a Irlanda investiu mais na educação e nós no betão», o que originou que «hoje tenhamos uma sociedade mais atrasada».

Ainda há padres assim…

Entretanto, a esquerda moderna de José Sócrates, já faz muita gente ter saudades da direita antiga. Velha direita que, diga-se a verdade, com uma esquerda destas está como quer – e sem custos políticos. E não se pense que isto é um elogio a essa direita – porque não é – mas, isso sim, uma acusação tremenda a um PS que, sem ponta de vergonha, está a fazer aos portugueses aquilo que depois do 25 de Abril nem o mais retinto cavaquismo conseguiu – ou, antes dessa data, jamais passou pela cabeça de Salazar ou Marcelo. E se sou assim tão peremptório, é porque sei – como sabem todos os que sob o fascismo viveram – que se os ditadores o quisessem fazer, não precisariam de pedir licença a ninguém, e muito menos usar desculpas de mau pagador, como acontece no caso que vamos tratar a seguir.

É que veio, agora, o Grupo de Trabalho nomeado pelo ministro das Finanças para reavaliar a aplicação dos benefícios fiscais, recomendar que sejam abolidos os benefícios de que gozam as contas poupança-reformados e as dos deficientes. Dizem eles, para justificar a medida, que os efeitos da isenção de imposto sobre os juros dos depósitos a prazo de reformados e pensionistas é um benefício tão pequeno, que mais vale não haver nenhum! Ouvimos isto, e não sabemos se havemos de rir… ou de chorar, tal o cinismo que embrulha a afirmação. Mas os senhores sábios das Finanças acrescentam mais: «Também não é por este incentivo que se levam os reformados a constituir poupanças, nem será pela queda dele que se verificará uma redução da taxa de aforro dos contribuintes reformados ou deficientes». Assim como quem confessa, descaradamente, que «nem os bancos viram aumentar substancialmente a sua carteira de depósitos, nem a mesma se perderá se os reformados pagaram imposto sobre as suas miseráveis poupanças». Ora, se o fim dos benefícios não vai prejudicar os bancos, e como a sua existência também não os beneficiava grandemente, acabe-se com a mama, que sempre serão mais uns cobres para os cofres das Finanças, em vez de ficarem nos magros bolsos dos reformados e deficientes.

Ficamos a saber, então, que sempre que um benefício for pequeno, mais vale a acabar com ele. E já dizia a minha avó, que «para pouca saúde, mais vale nenhuma». Sendo assim, seguindo este velho aforismo, o melhor é acabar com as pensões miseráveis que são pagas a milhões de portugueses, pois ninguém sabe para o que servem (se há quem viva com aquilo, também pode viver sem nada), além de ser para prolongar a agonia que é ter-se nascido em Portugal e ver chegada a última das idades. De vivermos sobre a pata desumana de uma «esquerda moderna» que – e como me custa dizer isto – deve fazer Salazar, lá no sítio onde está, chocalhar os ossos de tanto casquinar.

A compor este ramalhete, temos à nossa frente um relatório do Conselho da Europa, onde são apontadas falhas graves no combate à corrupção em Portugal. Corrupção em Portugal? Políticos a enriquecerem à custa da delapidação dos dinheiros públicos? Partidos a serem financiados para influenciarem políticas de favorecimento aos grandes interesses económicos? Responsáveis partidários, com cargos governamentais, a cobrarem 3, 5 e, até, 10% por cada obra adjudicada? Trabalhos a mais e revisões de preços que fazem as obras públicas custarem o dobro ou o triplo (como a casa da Música, no Porto) do valor inicialmente adjudicado? Alterações aos PDMs, para permitir que se construa em zonas protegidas, ou classificadas para outros fins?

Oh, meus amigos, isso, em Portugal, não é corrupção! Isso é poder negocial, é agilizar os processos de desenvolvimento, é vencer os obstáculos burocráticos, é o maravilhoso lubrificante que faz trabalhar sem ruído e avançar sem paranças o motor da nossa democracia.

Corrupção, é um agente da BT fechar os olhos a uma infracção do Código da Estrada a troco de uns litros de azeite ou de uma lembrança monetária pela Páscoa ou pelo Natal. Corrupção, é o fiscal municipal não ver o muro, e receber duas notas, inspirado, se calhar, no presidente da Câmara e restante vereação, que não «viram» como certa urbanização devia figurar no Guiness, por os lotes se terem multiplicado como cogumelos e as respectivas áreas de construção terem inchado como sapos fumadores.

Não, meus caros ouvintes. Os políticos nunca são corruptos. E os grandes empreiteiros e os senhores da alta finança nunca são corruptores. São pessoas com uma visão mais esclarecida sobre os métodos necessários para a economia se dinamizar. Dá cá uma urbanização cinco estrelas, toma lá uma discreta vivenda perdida numa herdade tranquila. Dá cá um benefício fiscal, toma lá um cargo numa instituição que vou criar só para te pagar o favor. Dá cá um cargo para a minha mulher, que eu arranjo outro igual para a tua filha.

Corruptos, são os badamecos lá de baixo, que não se contentam com os seus ordenaditos, e querem – esses pelintras – à custa da segurança das pessoas e do bom-nome das instituições fazer vidinha de lordes. Era só o que faltava!

Aliás, até me parece que nem o senhor Pinto da Costa, nem os senhores árbitros, nem os senhores majores, nem a D. Fátima são corruptos. Agiram sempre no interesse das instituições que serviam. E se daí escorreu qualquer coisa, deve ter sido para cobrir despesas, já que os rebuçadinhos e chocolates estão pela hora da morte. Vão ver se não vai ser assim…

E se não for assim, qualquer dia não há políticos, nem agentes desportivos, nem árbitros, nem partidos políticos, nem instituições, nem – que horror! – órgãos de soberania. Acabava a democracia. Pior: acabava o país.

Combater a corrupção?! Somos doidos, ou quê?!

Onde é que já se viu – a não ser num manicómio – um tipo aos murros a si mesmo?


(Crónica de João Carlos Pereira - Lida aos microfones da Rádio Baía em 12/04/2006)

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