28/09/2005

O triunfo (mais um) dos porcos…

A resposta de Álvaro Cunhal a quem, certa vez lhe perguntou «o que falhou no socialismo?», sendo a mais breve alguma vez dada, é, contudo, a mais completa e rigorosa: «O factor humano», respondeu, sem a mínima hesitação, o grande dirigente comunista. A isto nada há a acrescentar, a não ser considerar que, apuradas as causas de um fracasso, na próxima vez que se virar uma página da História, e o socialismo se impuser como solução para os problemas da humanidade – incluindo a sobrevivência da espécie e a sobrevivência do próprio planeta – os homens e mulheres a quem for confiada a missão de servir o seu povo, deverão ter presente que o exercício do poder é, por natureza, corruptor. Como todos os dias por aí verificamos.
Olhando à nossa volta, quer em termos locais, quer em termos nacionais, vê-se como é frequente os políticos dos diferentes quadrantes equivalerem-se nas práticas e no exercício do poder, apesar dos confrontos verbais e pseudo-ideológicos. E se isso é normal – e até compreensível – no campo vulgarmente designado como «centro-direita» (onde, no mesmo saco, se amanham socialistas, social-democratas, democrata-cristãos e outras forças neo-liberais ou, mesmo, de cariz fascista), já é perfeitamente intolerável quando estamos em presença de quem se reivindica da esquerda – mais precisamente: comunista.
Se, no caso da direita, a governação autocrática, autoritária, arrogante e musculada se mistura com o mais infame amanhanço, e cobre uma orientação política desumana, já que é determinada pelos sacrossantos interesses do poder económico, ao serviço do qual estão – e sujeitam as populações a estar – já no caso da esquerda devem prevalecer a mais absoluta honestidade, o diálogo, a participação, a transparência e, fundamentalmente, a adopção de políticas que privilegiem os interesses da maioria da população, a começar pelos seus extractos mais desfavorecidos.
Se, para a direita (PS incluído), a corrupção, o peculato e a gestão dolosa são instrumentos da governação e atributos do poder, a tal ponto que o poder judiciário raramente se atreve a tocar-lhes – ou, se o faz, nada de especial acaba por acontecer – para a esquerda isso significa o suicídio político, porque são práticas incompatíveis com os seus princípios. Não será por acaso que um truculento dirigente socialista é conhecido como o “Senhor 5 Por Cento”, dada a taxa que se diz ele aplicar aos empreiteiros a quem são adjudicadas obras públicas quando o PS está no governo, ou em autarquias dominadas pelo Partido Socialista. Apesar disso, continua por aí a falar grosso, embora em péssimo português. Como não será por acaso que no processo da pedofilia nem todos os implicados tiveram o mesmo tratamento…
Mas se para a gente do centro-direita é considerado como normal e, até, saudável, que os políticos que servem esta política possam daí tirar enormes vantagens pessoais, quer as que as leis, por eles moldadas, lhes conferem (sob o pretexto verdadeiramente ignóbil de que se trata de dignificar a função), quer as que, sub-repticiamente conseguem, já para a esquerda a sério tais vantagens equivalem à negação da sua ideologia e do seu projecto e ao descrédito e à desonra dos seus intérpretes. E o pior, é que esse descrédito e a essa desonra são logo multiplicados e facturados à força política a que dizem pertencer.
É evidente que tudo isto vem a propósito de Fátima Felgueiras, talvez o exemplo mais escabroso da pouca-vergonha que vem contaminando a sociedade portuguesa. Fátima Felgueiras, Isaltino, Valentim ou Ferreira Torres, tal como disse Marcelo Rebelo de Sousa no passado Domingo, deveriam, em nome da decência e dos valores republicanos e da própria democracia, ter-se afastado da vida pública até estarem totalmente esclarecidas as dúvidas, suspeitas ou acusações que as suas condutas, enquanto detentores de cargos públicos, suscitaram. Mas Portugal transformou-se num país de caciques, de «chicos-espertos», de oportunistas, de ladrões intocáveis, porque, desta ou daquela maneira, todos têm a cobertura, directa ou encapotada, do poder político e dos seus nichos nos vários partidos. E quando essa cobertura falha, uma outra há que não é menos eficaz: é que eles conhecem os podres uns dos outros e, se as coisas caminharem para extremos perigosos, há sempre o risco de alguém dar com a língua nos dentes e arrastar na enxurrada mais meia dúzia de nomes sonantes, sejam ou não do mesmo partido. Se me deixas afundar, afundas-te comigo…
Perante este espectáculo da mais absoluta dissolução de valores, este exemplo vivo da degradação moral e cívica que se abateu sobre o país, o povo português (ou grande parte dele) não só não está a dar a resposta que seria necessária à sua/nossa sobrevivência colectiva – que seria condenar no tribunal da opinião pública esta gentalha – como até estará, com o seu apoio expresso ou facilmente adivinhado, a entrar neste festim de corruptos e ladrões. Já há quem diga que os portugueses adoptaram a célebre divisa «já que não os podes vencer, junta-te a eles», impotentes que se sentem para obrigar os poderosos, instalados no poder políticos e no poder económico, a transformarem-se em gente séria. Sentir-se-ão, assim, desobrigados de cumprir a suas obrigações e legitimados para infringir tudo aquilo que lhes convier. Pois se o exemplo vem de cima…
Depois, há convicção que estes que agora estão a contas com justiça são apenas uma pequena ponta do icebergue, aqueles que só por mero azar foram apanhados nas malhas da lei. O que estes fizeram não é mais nem menos do que fazem quase todos, pensa o povo – e parte dele até se revê nessas práticas, pois, como as coisas estão, só os tolos não se amanham.
A isto chegámos!
Depois, há um outro factor que contribui para que chapinhemos neste lodaçal. Tomemos como exemplo os processos da pedofilia e da corrupção ligada ao futebol, vulgo “Apito Dourado”. Se os presumíveis pedófilos, corruptos ou corruptores são de outro partido ou do clube rival, que a Justiça seja cega, surda e muda. Só se pede – e deseja – que tenha a mão pesada na altura de desferir a espadeirada. Se, no entanto, os alegados malandros são do nosso partido ou do nosso clube, é claro que tudo não passa de uma cabala indecente. E, mesmo que acreditemos que houve ali porcaria da grossa, até somos capazes de ver a coisa com olhos de uma indecente tolerância. É uma vergonha, é uma tristeza, mas é assim mesmo.
Afinal, onde estão a moral e a honra e a vergonha, onde estão os tais valores democráticos e republicanos – como agora todos dizem à boca cheia – se o próprio Presidente da República não se impede de assumir o papel de bombeiro do Governo, sempre que este se vê em apuros com a contestação às suas políticas? Foi antes com os militares, foi agora com os juízes e magistrados do Ministério Público, chamados a Belém numa tentativa clara de travar as suas lutas e proteger o executivo do camarada Sócrates. Alguém deixou de pensar em frete partidário? E não é isto um claro exemplo de ausência de valores e de respeito até por si próprio?
Mas continua tudo em aberto. Até na actual conjuntura mundial, a loucura e a imbecilidade bushiana, que são utilizadas pelas transnacionais da mesma maneira que os monopólios alemães utilizaram Hitler, têm servido para consciencializar e a agrupar um número cada vez mais vasto de seres humanos em todo o mundo. As sociedades humanas têm mecanismos de defesa que, na hora própria, são accionados para a sua auto-protecção. A prova disso é que nenhum império foi eterno.
Por outro lado, o destino do Homem inclui a sua constante superação. Por muito que vivamos sujeitos a um poder ideológico que tem como principal objectivo condicionar as nossas consciências e os nossos comportamentos – a nossa liberdade – sujeitando-nos, subtilmente, às premissas que convêm ao poder por enquanto dominante, são incontroláveis os ventos da liberdade e as faúlhas da razão. Ambos alimentam a fogueira da esperança. Afinal, o «factor humano» também pode ter sinal positivo. Não estamos condenados a ser lixo. Por isso, não estamos condenados a ser governados por ladrões e corruptos.
Assim, e apesar de todos os dias, pelos mais diversos meios – mas onde os meios audiovisuais adquirem uma extraordinária importância – tentarem convencer-nos de que vivemos no melhor dos mundos possível (apesar da corrupção e tudo o mais), e que tudo é feito em nosso proveito e em obediência à nossa vontade (através da arma/armadilha do voto), nada é imutável. Sofremos, sem dúvida, processos de manipulação mais eficazes do que os que resultavam dos cárceres das ditaduras, ou dos seus bastões e pelotões de fuzilamento, mas que servem, igualmente, os mesmos fins: sujeitar milhões de seres humanos aos desígnios de uns quantos. Vencemos os outros. Venceremos estes.
Pela minha parte, ninguém levará o meu voto se não corresponder aos padrões que o lema «Trabalho, Honestidade, Competência» contém.
Seja ele de que partido for!

Crónica de João Carlos Pereira - Lida aos microfones da Rádio Baía em 28/09/2005

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