07/09/2005

O pior furacão

Dizia uma mulher: «que Nossa Senhora me perdoe, mas isto até parece castigo de Deus pelo mal que eles andam a fazer por esse mundo fora». Obra de Deus ou do Diabo, para quem neles acredita, simples ironia do destino, a que a Mãe Natureza deu uma mãozinha indecifrável, fosse lá pelo que fosse, a verdade é que os estados norte-americanos da Florida, Alabama, Mississípi e Luisiana foram duramente atingidos por um fenómeno natural violentíssimo. Provou-se, se necessidade disso houvesse, que ainda ninguém pode mais do que podem as forças naturais. Furacão, tornado, sismo, tsunami, vulcão, seca, dilúvios, nada os pode impedir, nem aos seus inevitáveis estragos. Conseguem os homens, no máximo, prevê-los e, em consequência, precaver-se, para que os danos sejam menos terríveis e fatais. Podem, por isso, os países ricos e mais desenvolvidos proteger-se mais facilmente das catástrofes naturais, prevenindo-se, acautelando-se e socorrendo, depois, mais depressa e mais eficazmente.

Por tudo isto, é demasiado óbvio para mim que o furacão Katrina, fez o que é normal um furacão da sua amplitude fazer, mas que as autoridades norte-americanas não fizeram o que seria exigível que fizessem – nem antes, nem durante, nem depois. E é a explicação desta monstruosa abstenção que todos devemos procurar, pois suspeito que ela trará resposta que nos ajudem a compreender a alma de um sistema económico, político e social – capitalismo, de seu nome – que estabeleceu, para sua sobrevivência, uma escala de valores onde o ser humano não tem lugar no pódio.

Sabemos que a administração Bush estava alertada para a possibilidade efectiva de um furacão desta violência (grau 5) atingir aquela região do Golfo do México e ter consequências devastadoras, caso os diques que protegem Nova Orleans não fossem devidamente reforçados. Em vez de o fazer, Bush decidiu diminuir as verbas para esse fim, seguramente porque a guerra de pilhagem no Iraque e no Afeganistão, bem como as centenas de bases militares que há espalhadas pelo mundo, consumindo centenas de milhões de dólares por dia, o impede de proteger (se acaso quisesse, do que duvido) dentro das fronteiras norte-americanas, o seu próprio povo. Por outro lado, sabendo com vários dias de antecedência que o Katrina se aproximava, as autoridades limitaram-se a exclamar um «Salve-se quem puder!», e daí lavaram as mãos. Salvaram-se os que puderam comprar uma passagem aérea, ou tinham viatura, gasolina, cartão de crédito e local de refúgio. Ficou a maioria, que não tinha como sair, nem para onde ir, nem como sobreviver fora da sua terra.

Espantamo-nos hoje com a imagem de uma América que muitos desconhecem – ou fingem desconhecer – uma América de deserdados, de gente abandonada no quintal das traseiras, entregues à sua sorte, resquícios de uma época de esclavagismo e racismo atávicos, que, na verdade, nunca acabou. A América dos milhões de pobres de carne e osso – que não os sofisticados e estilizados pobres de faz-de-conta da ficção cinematográfica – mas os pobres que esgravatam na miséria, os deserdados de um sistema desumano, muitos deles já retratados pelo Nobel da Literatura, Jonh Steinbeck, na sua obra maior, Vinhas da Ira. Milhões de pobres, brancos e negros (mais negros do que brancos, valha a verdade), que não são a preocupação central de um governo que fala em direitos humanos, em liberdade, em justiça, em democracia e que, destes valores – e à sua custa – quer todos os dias dar lições ao mundo. Especialmente ao mundo onde há recursos naturais a que pretende deitar mão.
Lembro-me que Cuba evacuou 660.000 pessoas quando, há pouco tempo, foi assolada pelo furacão Dennis, de grau 4, que em Julho varreu a ilha, e apenas morreram dez pessoas. Mas Cuba investe na prevenção e, acima de tudo, investe na solidariedade e na justiça social, apesar da falta de recursos que o criminoso bloqueio norte-americano há várias décadas provoca. Em Cuba, todos se preocupam com todos, seja qual for a sua cor. Para além disso, há um sistema a sério de protecção civil e as organizações sociais e de saúde estão ao serviço de toda a comunidade. As infra-estruturas de saúde funcionam, os níveis de literacia ajudam a agir correctamente e, na verdade, as organizações populares e governamentais completam-se em todas as emergências. É esta uma das diferenças entre um sistema político firmado na solidariedade, e outro, o norte-americano, assente na desumanidade e no desprezo pelo ser humano. Aliás, recordo-me de ter visto na televisão o próprio Fidel de Castro a participar activamente nas operações de prevenção e na organização da defesa das populações face à intempérie, enquanto que agora, como todos sabemos, Bush gozava mais um dos seus muitos e constantes períodos de férias no seu rancho texano.
Espantam-se os ingénuos (e fingem-se espantados os cínicos) com o facto de a ajuda às populações ter demorado quase uma semana. Que a tragédia assumiu uma dimensão não prevista, dizem os engraxadores do costume. Que Bush e a sua administração não se aperceberam logo dessa dimensão, acrescentam. Mas não vimos todos, logo no dia a seguir, milhares de pessoas a lutarem desesperadamente por sobreviver, com 80% de Nova Orleans mergulhada numa sopa venenosa, onde as águas dos esgotos e os resíduos tóxicos das fábricas se misturavam com as águas do mar e do rio?

Não vimos, logo no dia a seguir, cadáveres espalhados por todo o lado, gente agonizante, crianças desidratadas, pessoas desesperando por água, comida e medicamentos? Não vimos todos, nos dias seguintes, a tragédia agravar-se, de tal modo que até a CNN deu voz à onda de protestos que várias individualidades fizeram, face à incompreensível ausência de socorro?

Claro que vimos. Todos vimos. É que, independentemente das lentes ideológicas que cada um de nós usa, as televisões estavam lá, em directo, desde o primeiro minuto. Mostraram, em tempo real, o que se estava a passar. Nós vimos. Então, se as televisões chegaram lá – e lá estiveram desde o início – porque não estiveram os socorros, com água, com medicamentos, com comida, com roupas, com meios de salvamento suficientes e eficazes?

A resposta tem duas partes. A primeira, é que a maioria das vítimas do furacão era pobre e, acima de tudo, era negra. A maioria das vítimas era composta por cidadãos de segunda ou terceira categoria, já que os brancos pobres que vimos, tais como os seus compatriotas negros, não fazem parte das preocupações da administração norte-americana. Tivesse a catástrofe sido em Miami ou Los Angeles, por exemplo, e aí a resposta seria, seguramente, muito diferente. A outra parte da resposta é que os recursos humanos e materiais que poderiam rapidamente acudir às populações, estão a ser usados no Iraque e noutros locais, para dizimar outros seres humanos com o furacão das bombas e das balas.
Na verdade, vimos como é possível, no país considerado o mais rico e avançado do planeta, haver grandes partes do seu território que não passam do exemplo mais acabado do que é o terceiro mundo. Vi imagens que, se não soubesse de onde eram, caros ouvintes, me fariam supor estar a ver cenas do Haiti ou da Serra Leoa. E foi possível perceber, também, que entrar em lojas para conseguir alimentos, roupa ou medicamentos, pode ter dois nomes diferentes. Se for um negro, é pilhagem; se for um branco, é um acto de desespero para sobreviver.
Procurem na Internet o que as nossas televisões e jornais escondem, e ficarão a saber que num campo de refugiados, milhares de pessoas, das quais cerca de 90% eram pobres ou de raça negra, foram deixadas horas a fio sob um sol abrasador, no meio de lama e lixo, vigiadas por soldados armados até aos dentes, e depois embarcadas sem qualquer explicação em autocarros com destino a um ponto aleatório. Sem direito a perguntar para onde iam, e muito menos a escolher, dentro dos vários destinos possíveis, aquele que mais lhes conviesse. Em suma, milhares de pessoas a serem tratadas como gado. Eu não consigo imaginar este plano de evacuação, se, em vez de se tratar de gente pobre ou de cor negra, se tratasse de brancos de extractos sociais mais elevados.
«Como foi possível? O que falhou? Porquê, senhor Bush, porquê?», questionava uma das sobrevivente de Nova Orleans ao homem que quer governar o mundo, mas que não sabe governar o seu país. A resposta não é apenas a de Bush ter cortado 80% nos fundos destinados a reforçar os diques. Nem é a da inoperância, que não ocorreu somente no plano da resposta, pois ela começou logo na prevenção, continuou na avaliação e culminou na desorganização.

A resposta certa, caros ouvintes, está na verdadeira natureza do sistema político, económico e social que impera nos EUA – e que se pretende impor a todo o mundo. Ele é o pior furacão de todos. Ameaça a humanidade inteira com ventos de desumanidade e injustiça.

O que falhou? Nada. A resposta ao furacão, foi o capitalismo no seu melhor!

Crónica de João Carlos Pereira - Lida aos microfones da Rádio Baía em 07/09/2005

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