21/09/2005

As gamelas e os grunhidos

Estamos a menos de um mês das eleições autárquicas, e já alguns milhares de figurões, afectos aos diversos partidos e partidelhos, andam por aí na roda-viva da caça ao voto do cidadão/eleitor/pagador. Todos nos prometem um futuro melhor, todos dizem que são capazes de fazer mais do que os outros. Uns, os que estão no desemprego (ou seja: sem tacho), declaram que eles serão a aposta certa para a mudança necessária, enquanto os outros, os que já estão no poder, (ou seja: os que já estão aviados) dizem que a opção certa é a da continuidade. Uns e outros, claro está, só querem a felicidade do povo…

Como quadro de fundo, os partidos políticos, padrinhos e mandantes desta cada vez mais fastidiosa liturgia eleitoral, baralharam em devido tempo as cartas e, num passe de mágica em que são férteis os artistas deste jogo, tiraram os reis, valetes e damas que tinham reservado para o efeito. Os aparelhos partidários sabem o que lhes convém. As bases, se são chamadas a discutir nomes – ou a propô-los – confrontam-se com o caldinho já feito ou muito bem preparado, e depois é só apelar às fidelidades partidárias, à disciplina, ao espírito de grupo, e lá vão todos, cantando e rindo, encontrar maneira de se ganhar as eleições. É a acefalia no seu esplendor.

Se lermos os programas de acção que por aí são distribuídos por esta altura, e se os compararmos com os de anteriores eleições, fartamo-nos de rir. Na maior parte dos casos, são cópias mal disfarçadas uns dos outros, de onde se retiraram uma ou duas obras que, finalmente, se fizeram, se mantêm as que já têm barbas, e se acrescentam mais duas ou três para encher espaço e adoçar a boca ao eleitor. Depois, é o arraial de cartazes e folhetos, os carros de som, os comícios e sessões de propaganda, o porta a porta, as arruadas, enfim, o carnaval do costume. Conversa e mais conversa.

Depois das eleições, festejam os que votaram em quem venceu, resmungam raivinhas e desculpas parvas os que perderam, e, a partir daí, já se sabe: para os primeiros, aconteça o que acontecer, mesmo que seja o contrário do prometido e o mandato se revele desastroso, estará sempre tudo bem; para os segundos, mesmo que os vencedores consigam realizar um excelente trabalho, tudo será péssimo. Será, sempre, o bota abaixo, porque o que interessa não é o que interessa ao povo, mas, simplesmente, conseguir o poder e dele beneficiar à fartazana.

Ao fim e ao cabo, quase todos se confundem nos actos e nas palavras, nos processos e nos objectivos, nos tiques e nos truques, no discurso obtuso, oco e bacoco. Quase todos olham para o povo da mesma maneira – daquela maneira que na Idade Média a nobreza usava para olhar a plebe – e quase todos vêem agora, nos queridos cidadãos do período eleitoral, nada mais do que uma chusma de sujeitos inconvenientes, que pensam que Roma e Pavia se fizeram num dia e que, se calhar, querem que o autarca vá roubar para lhes dar este mundo e outro. O candidato, que, na campanha, atravessava a rua para cumprimentar a senhora idosa ou dar um beijinho ao menino – depois de se certificar que o fotógrafo apanhava a cena – é agora o senhor presidente ou o senhor vereador, e só recebe com dia e hora marcada. Na campanha, conhecia toda a gente, amava toda a população, a todos apertava a mão, a todos sorria afável e prazenteiro. Agora, não conhece ninguém, só fala grosso e em pose, usa gravata da moda e telemóvel de última geração, e utiliza, na maioria dos casos, o poder para gozo próprio, tanto material como espiritual. Já não exerce um cargo em prol da população; ele é o cargo. Ele é o poder, ele é o objectivo da sua função. Incha, transforma-se, enfarpela-se, e fica luzidio que nem foca bem tratada. Os outros, são os pagadores-utilizadores, os chatos, os ignorantes, os mal-intencionados, os invejosos. E gosta de lembrar de vez em quando, caso alguém se atreva a questioná-lo, republicanamente, de igual para igual: «Eu sou o presidente da câmara, ouviu?»

É claro que os partidos querem dos seus autarcas alguma coisa em troca da oportunidade que lhes deram de serem alguém na vida. Em muitos casos, não será só um bom trabalho que dignifique o autarca e o respectivo partido. São os empregos, são os fundos, são as facilidades aqui e acolá, são uns contactos com certas pessoas da comunidade, cuja actividade depende muito da autarquia, são tantas, tantas coisas… E de bom grado se prestam muitos autarcas a estes jogos, porque, ao fazê-lo, fazem os partidos seus reféns e, a partir daí, já sabem que não lhes falha a próxima candidatura, por muito incompetente, desajeitado ou coisa ainda pior que tenha sido no desempenho do cargo.

Há dias, o socialista Almeida Santos, afirmou que Cavaco Silva lhe fazia lembrar Salazar, por se dizer afastado dos partidos. Almeida Santos parece que não sabe algumas coisas que todos nós sabemos. Faz-se de parvo, para vender o traste velho que o PS teve de ir buscar ao baú das antiguidades para ser o seu candidato à Presidência da República. Cavaco não está à margem dos partidos (de alguns partidos) nem do sistema partidário. Finge que está, para dar um ar de independência e fabricar uma pose de estadista iluminado, pairando sobre um país à espera do seu caudilho. Ele só odeia um partido, como Salazar também odiava, mas aí nenhum deles é diferente de Soares ou Louçã. E Salazar não gostava dos partidos, em geral, porque era um ditador e, como tal, não queria discussões acerca da sua visão da sociedade e do mundo. Mas, tal como eu – e como você – amigo ouvinte, ele também sabia (porque de parvo não tinha nada…) que as máquinas partidárias são, na sua quase totalidade, um coito de oportunistas que fazem da política uma carreira, um modo de vida, e onde os principais proventos – e proveitos – nem são os das chorudas remunerações que para si próprios estabelecem, mas o que escorre por fora e das mais diversas fontes. Os partidos, tal como se apresentam nesta democracia, são máquinas de fazer empregos, de construir casulos dos mais variados – e grandes – interesses, alavancas de negócios onde a coisa pública é a moeda corrente, o que se multiplica por milhões sempre que um deles consegue trepar ao poder, seja central, seja local, se o município for de peso. Os partidos são fábricas de corruptos, de sanguessugas do erário público, e que não visam, na sua esmagadora maioria, o bem das populações, mas apenas a opulência pessoal e da tribo.

E é esta – e não outra – a razão dos nossos males, a raiz da nossa tragédia, a explicação do nosso atraso. Os partidos que vão ao poder não querem saber de nós – ou só querem na justa medida em que somos a caixa forte onde se abastecem.

A política e democracia, como as coisas são, hoje em dia, alimentam milhares de parasitas bem falantes, que se revezam nos variados estofos do poder, dos mais elevados aos mais insignificantes, e para os quais o seu bem-estar pessoal e os interesses da seita a que pertencem prevalecem sobre os interesses do povo e do país. Os partidos fabricam candidatos como quem fabrica cuecas ou peúgas, e espalham-nos ao desbarato pelo país fora, como quem deita milho aos pardais. Na sua maioria, ninguém os conhecia antes de lhe ver a fronha no cartaz ou no folheto, nada dizem e em nada se relacionam com as populações locais, pois não passam de pára-quedistas de ocasião, como Alberto Antunes em Almada, João Soares em Sintra, um tal Menezes no Seixal, ou Assis no Porto. São autarcas de aviário, cuja função é caçar votos, lugares e – principalmente – muitos fundos para eles e para os respectivos partidos.

Recordo os meus queridos ouvintes que generalizei, mas não absolutizei. Há, felizmente, excepções. Pena é que não seja a regra. Mas quando alguém com as responsabilidades que tem um presidente da República, vem dar lições de ética republicana ao país, mas consente, sem um simples tugido, que o seu partido distribua indecentemente por Varas, Gomes, Martins ou Vitorinos, grossas fatias do nosso dinheiro, é escusado falarmos de um futuro melhor.

O país está a saque. A República caiu no seu pior chiqueiro depois do 25 de Abril. Grunhindo, a classe política discute a posse das gamelas. E a nós, que lhas enchemos, ainda é pedido que escolhamos os comilões que se seguem.

Crónica de João Carlos Pereira - Lida aos microfones da Rádio Baía em 21/09/2005

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