24/08/2005

Os Incendiários

Os incendiários

Quanto, há três semanas atrás, li aqui a minha última crónica, já o país ardia há cerca de dois meses. Florestas, aldeias, habitações dispersas, terrenos de cultivo, pomares, pastagens, currais, galinheiros, celeiros e armazéns, a par de uma fábrica ou outra, ardiam como tochas. Parques naturais, também. Agora, o fogo até entrou numa das principais cidades portuguesas.

A seca e a perspectiva de um verão quente faziam, há muito, adivinhar o pior. Tirando um dia ou dois, em que o território nacional foi bafejado por umas escassas gotas de água, não passou um único dia sem que o país não fosse devorado por dezenas de fogos. Entretanto, em Lisboa, o poder político espreguiçava-se, tranquilo, à beira das férias, já que mansão de rico e morada de político nunca constou que ardessem. O poder económico, esse, partira para o Dubai ou para paraísos semelhantes.

Mas o país das pessoas comuns, ardia – e arde. Os bombeiros e os meios de que dispõem não podem acudir a todo o lado, e as populações desesperadas, pedem à santa que faça aquilo que os homens não são capazes. Aparentemente, a santa e os outros santos, mesmo os de maior peso, prestígio e influência, terão partido para férias, pois também eles, tal como o senhor engenheiro José Sócrates, merecem uns dias de repouso, longe dos problemas dos míseros mortais. E as preces não foram ouvidas.

Sabemos hoje – quando as chamas ainda por aí continuam a devorar o que lhes dá na gana – que em Portugal já ardeu mais do que nos restantes países da Europa do Sul. E quem der uma olhadela às fotos que os satélites enviam, observará as manchas negras do território ardido, o clarão laranja dos incêndios, com os respectivos penachos de fumo alongando-se por quilómetros. Nada disso se vê em Espanha, França, Itália ou Grécia, onde os incêndios são fenómenos excepcionais e não uma praga crónica e endémica, como acontece neste braseiro à beira-mar plantado. Ou seja: o país mais pequeno arde mais do que os maiores todos juntos, com condições climatéricas e geográficas muito semelhantes.

Dizia, há dias, um responsável pelo combate aos fogos, que mal se verifica a regra dos Três Trintas, o perigo de incêndio sobe em flecha. E explicou: vento acima dos 30 nós; humidade abaixo dos 30 por cento; e temperatura acima dos 30 graus. Eu diria que, em Portugal, o mais correcto é falar na regra dos Quatro Trintas. Isto é: falta acrescentar outro 30 – o de trinta anos de atraso em relação aos países desenvolvidos.

Ardemos mais, porque somos os mais pobres da Europa. Ardemos mais, porque somos os mais corruptos da Europa. Ardemos mais, porque somos os mais desorganizados (entenda-se: mal governados) da Europa. Ardemos mais, porque somos os mais tristes e infelizes da Europa. Ardemos mais, porque somos os mais doentes da Europa. Ardemos mais, porque somos o povo mais submisso e manipulado da Europa. Ardemos mais, em suma, porque não somos capazes de pensar que este país é nosso e não de meia dúzia de políticos canalhas e incompetentes que, ano após ano, deixam tudo ao abandono, salvo as suas contas bancárias – cá, na Suiça ou em qualquer paraíso fiscal – e só querem a governação para assegurar o seu futuro e o dos seus familiares e compinchas.

Mas não se diga que os fogos só têm coisas más. Os fogos que por aí lavram, pelo menos para uma coisa serviram: para queimar também a capa diáfana da fantasia que tapava a nudez crua da triste verdade que é o engenheiro Sócrates como primeiro-ministro (e Eça que me desculpe este quase plágio). De Sócrates e do seu governo, especialmente de António Costa, esse ministro da Administração Interna, cada vez mais gordo e luzidio, sempre com um meio sorriso alvar afivelado.

Estado de Calamidade? Não, porque isso só iria beneficiar as seguradoras! Intervenção dos Bombeiros Sapadores, que, aliás se ofereceram para combater os fogos? Não, porque o Governo não manda nos sapadores! Pedido de ajuda ao estrangeiro? Cuidado, que essa ajuda pode ser perigosa se não for estritamente necessária. Amanhã, com uma situação realmente grave, podemos pedir, e, depois, já ninguém ajuda. Pedir ajuda comunitária, através de fundos destinados a estas situações? Não pode ser, porque ainda não ardeu área suficiente! Mas a situação não é gravíssima? Então, para que interrompeu as férias o presidente da República, embora não tenha dito nada que se aproveitasse? Bom, na opinião de Sócrates, só houve um dia realmente preocupante, com uma série anormal de incêndios fora de controlo. Bem vistas as coisas, segundo este notável governante, a situação até está melhor do que em 2003, ano em que ardeu mais área do que este ano. Se isto não é canalhice política no seu esplendor, então já não sei o que será canalhice, seja política ou seja da outra.

Afinal (que remédio!), a ajuda estrangeira acabou por chegar, vinda de Espanha, de Itália, de França, da Alemanha, da Holanda, países onde os meios aéreos de combate a incêndios, pelos vistos, são excedentários. Nós queremos é 10 estádios de futebol, para embasbacar o Zé Povinho e entretê-lo com apitos dourados, migueladas e penaltis. Nós queremos é helicópteros, submarinos e carros de combate para ir fazer o frete à NATO e ao Bush, e mamar resíduos de urânio no Afeganistão, no Iraque, no Kosovo ou onde o mentecapto nazi mandar. Nós queremos é TGVês e novos aeroportos, para engordar empreiteiros e para fazer certos «responsáveis» partidários lamber os grossos beiços à espera das chorudas comissões, que escorrerão para os seus democráticos bolsos e para os cofres dos seus partidos.

Limpeza das matas nacionais? Torres de vigia e detecção de incêndios estrategicamente espalhadas pelo território? Equipas móveis de ataque rápido a fogos? Compra de meios aéreos suficientes? Dotação dos bombeiros com meios bastantes e eficazes? Calma, há um tempo para tudo, e agora é só tempo de apagar os fogos. Lá mais para o Natal falaremos disso.

Já ouvi essa conversa no ano passado, e no outro, e no outro. Eu até já ouvi isso nos anos em que o primeiro-ministro se chamava Guterres e o ministro do Ambiente se chamava Sócrates... E todos os anos, quando chega a altura da classe política mergulhar numa merecidíssimas férias, sejam elas no Quénia, ou em Kuala Lampur, ou na Malásia (o local mais procurado pelos pedófilos endinheirados), a macacada perdida por essas matas e aldeias remotas entretém-se a apagar fogos – ou a morrer queimada.

Morre o gado, ardem as hortas, as alfaias, as casas, as colmeias, arde o sustento e ardem os meios de sobrevivência de milhares de pessoas. Morrem populares e bombeiros. O ambiente deteriora-se, a fauna e a flora sofrem golpes irreparáveis, perdem-se milhões de litros de água, o ar fica irrespirável. Mas sua excelência está no Quénia e acha que não faz cá falta nenhuma. Não foi para apagar fogos que lhe deram uma maioria absoluta. O substituto Costa que se desenrasque. Os bombeiros que façam o que lhes compete. Quando chegar, vai pôr um ar pesaroso e pensativo, e vai dizer que está solidário com as populações.

Irá à Pampilhosa da Serra dez dias depois do flagelo ter começado. Chamará demagogos e politiqueiros aos que o censuraram por não ter decidido interromper as férias para voltar ao seu país em chamas e estar, de facto, solidário, com os portugueses, acompanhando a situação de perto e participando activamente na tomada de decisões. Chamará ignorantes aos que fazem perguntas incómodas e não conseguirá controlar a sua arrogância e tendência para se irritar com os que não concordam com ele. Ele sabe tudo, de resto. Ele também nunca se engana. Ele manda, e acabou-se.

E o país a arder. Diz-se, entretanto, que já foram apanhados cento e tal presumíveis incendiários. Não me custa a crer. Mas falta engavetar os verdadeiros incendiários, os maiores, os que não são presumíveis, mas comprovadamente incendiários. São eles todos os governantes que, ao longo dos anos, nada fizeram para que a época dos fogos não fosse o inferno que todos os anos é. Eles, sim, é que são os incendiários.

Não resisto, ao terminar, a contar-vos uma cena deliciosa a que assisti há dias num café, onde tomava a bica. Na televisão, as imagens dantesca dos incêndios, os populares atacando as chamas com tudo o que tinham à mão, os bombeiros sem mãos a medir, uma casa tomada pelas chamas, um mar de faúlhas em fundo negro. É então que um homem que, encostado ao balcão, saboreava um copo de cerveja, se volta para os outros clientes e pergunta: «Eh pá! Já chegaram os americanos? Se calhar, pensam que escondemos o bin Laden…».

Crónica de João Carlos Pereira - Lida aos microfones da Rádio Baía em 24/08/2005

1 Comments:

Blogger x said...

Caro João Carlos
Depois de ler a tua crónica não posso deixar de estar mais de acordo contigo, mas isso não resolve absolutamente nada.
Sabes João, tal como eu me sinto, provavelmente também tu e outros se sentem impotentes para fazer alguma coisa quando vemos pessoas hunildes que perderam tudo aquilo que conseguiram construir ao longo de toda uma vida de árduo trabalho.
Infelizmente esses não têm as tais contas na Suiça ou noutros paraísos fiscais.
A sua "grande" riqueza eram as galinhas poedeiras, o pedaço de terra com alguns batateiros e talos de couve e uma cabra velha que já não dava leite mas que lhes fazia companhia.
Se calhar estou a exagerar, mas sinto-me nostálgico cada vez que vejo os serviços noticiosos e me deparo com a realidade que têm sido estes dias.
Até quando vamos aguentar tudo isto ?

Celino

24/8/05 5:12 da tarde  

Enviar um comentário

<< Home

1997, 2007 © Guia do Seixal

Visões do Seixal Blog Directório Informações Quem Somos Índice