13/08/2005

Como dizia o Eça há 140 anos ...

Na semana passada, dediquei grande parte da nossa conversa à gestão exemplar que a presidente da Câmara Municipal de Almada – e a sua equipa – têm vindo a fazer no concelho; e fi-lo a propósito da inauguração do Teatro Azul, um dos melhores equipamentos culturais do nosso país. Ouviram bem: um dos melhores equipamentos culturais do nosso país.

Volto ainda ao assunto para dar aos ouvintes da Rádio Baía mais alguns dados sobre este teatro municipal, que foi – note-se bem – quase integralmente pago pelos cofres do município e, a propósito disso, falarmos de outras coisas. De facto, a obra custou 10,6 milhões de euros, dos quais a autarquia suportou 8,1 milhões, e o Governo apenas 2,5. Não significa isto que eu ache que o Governo deu pouco (cá para mim, mesmo que se o governo não desse nada, a obra fazia-se na mesma), mas quero apenas dizer, cá na minha, que, até nisto, Almada é diferente do resto do País. Em muitos casos, os autarcas, depois de consumirem os recursos municipais em actos improdutivos, numa dolce vita de novos-ricos, só porque pensaram que tudo o que luzia era ouro, vêem-se agora na situação de tesos absolutos e, para disfarçar a sua gestão irresponsável e a obra que não fazem, trespassam a culpa para a crise e para o Governo, que acusam de não cumprir o que deveria cumprir. Pelo meio, vão assumindo atitudes próprias de caloteiros encartados, atirando para cima de fornecedores, munícipes e trabalhadores das autarquias o ónus da sua irresponsabilidade e incompetência.

Não quero dizer que não haja crise, ou que os governos sejam coisas honradas e responsáveis. O que eu quero dizer é que não se pode dissolver as culpas próprias nas culpas alheias e que, em vez de se seguir o mau exemplo da administração central, deve seguir-se pelo único caminho decente que existe, que é gerir os dinheiros públicos com critério e respeito pelos cidadãos. Cidadãos que almoçam (os que almoçam) todos os dias, mas pagam do seu bolso as côdeas que mastigam. A maioria dos cidadãos não tem cartão de crédito da empresa nem verbas para ajudas de custo, e tudo o que come ou bebe, paga do seu bolso – incluindo os belos uísques e os vinhos de marca, pois autarca que se preze não bebe «vinho da casa».

Conheci um destes «artistas», que era especialista em marcar reuniões de trabalho para a hora do almoço ou do jantar e, naturalmente, para os melhores restaurantes do concelho. Era ali que ele era «produtivo», porque era ali, depois do excelente repasto, que as coisas ficavam adiadas para a próxima reunião… isto é: para a próxima almoçarada.

Outro autarca dizia-me, há anos, justificando-se quando o censurei pela catadupa de admissões que começou a fazer mal segurou nas rédeas do seu município, que não era nada demais, pois Almada ainda tinha um rácio de trabalhadores municipais por habitante muito superior. Incapaz de perceber a diferença que há entre quantidade e qualidade, e que cada conselho tem características e processos evolutivos diferentes, rodeou-se, até deitar por fora, de técnicos, adjuntos, assessores e outros crânios. Encheu a Câmara de uma corte de gente de gabinete, bem refastelada no ar condicionado, gente que teria como objectivo ajudá-lo a traçar o rumo do concelho e a magicar o futuro. Hoje, nem rumo nem dinheiro para o cumprir, caso rumo tivesse havido. Esgotaram-se os recursos nos cérebros e nos gabinetes. Adiou-se o futuro e, em muitas situações, recuou-se no tempo.

Mas voltando ao Teatro Azul. Com 446 lugares, a boca de palco do novo auditório tem 30 metros de altura, devendo dizer-se que, em Portugal, apenas o palco do Centro Cultural de Belém é maior. Com uma área de cerca de 8 mil metros quadrados, o edifício dispõe ainda de uma sala experimental e outra de ensaios. Os indispensáveis camarins, uma galeria de exposições, espaço para café-concerto, livraria, ludoteca, sala de vídeo e cafetaria, completam o equipamento cultural, projectado pelos arquitectos Graça Dias e Egas Vieira. Note-se que Almada também dispõe de um Fórum Cultural, o Fórum Romeu Correia, com todas as valências próprias deste tipo de infra-estrutura cultural. Em Almada, meus amigos a crise dá-se mal com a honestidade e a competência. Passa ao lado. E, quando entra, é só pela mão do governo da nação.

Mas o que desejo aqui realçar – e é esse o tema central da conversa de hoje – é que há um outro equipamento que foi – e ainda é – muito badalado na comunicação social, apesar de ser, em tudo, semelhante ao Teatro Azul. Falo da Casa da Música, no Porto: é semelhante em dimensão, capacidade, funções e, até, no tempo de construção. Têm, contudo, uma grande diferença. Custou dez vezes mais do que o Teatro Azul (BIS). E não sou só eu a dizê-lo. Ou melhor: se eu o digo, é porque também o ouvi a um repórter de uma das nossas insuspeitas televisões, que disse (e passo a citar): «O novo Teatro Municipal de Almada tem as mesmas dimensões da Casa da Música, no Porto, com uma única e grande diferença: custou um décimo do que se gastou para construir o equipamento do Porto».

Fica-se assombrado! Como é possível duas obras semelhantes apresentarem custos tão diferentes? Uma custa dez vezes mais do que a outra! Bem…Uma, a mais cara, é da responsabilidade dos governos do PS e, depois, do PSD/CDS; a outra, a mais barata (dez vezes mais barata!) é da responsabilidade de uma autarquia, por sinal muito bem gerida, por gente séria e competente, que essa coisa da competência (ou da incompetência), como se prova, não tem nada a ver com ser-se público ou privado. Tem a ver, quanto a mim, com outra coisa, com outro mal que alastra por este país, a pontos de Portugal já ser considerado o maior especialista na matéria. Estou a referir-me, como é fácil de perceber, a um fenómeno chamado corrupção.

E é aqui que eu tenho um sobressalto. Ou melhor: dois sobressaltos. Um, chama-se TGV; outro, chama-se Ota. Há dias, no célebre programa Contra Informação, parodiava-se o facto, pondo-se o boneco de Jorge Coelho (e não foi por acaso que era Jorge Coelho o visado, suponho eu) a publicitar o aeroporto da Ota, com um cartaz da sua invenção, que dizia: «Construir o aeroporto é dar de comer a um milhão de empreiteiros», acrescentando logo a seguir, para Sócrates e outros membros do Governo, que a coisa era mesmo assim, pois quem quer ganhar eleições tem de as pagar.

Era uma alusão aos dinheiros que escorrem por fora (e que fazem duplicar, triplicar e, até decuplicar os preços finais das obras, como acontece amiúde). Dinheiros para financiar partidos políticos que, por sua vez, pagam isso com novas adjudicações e favores de toda a ordem, mal chegam ao poder, já para não falarmos no que recebem, em dinheiro, ou em espécie, os políticos que entram nesta jigajoga. É, meus amigos, a corrupção na sua esplendorosa normalidade. A corrupção como instituição Nacional. Democrática

Mas disto só fala o Contra Informação em ar de brincadeira, fala-se às mesas do café, nas conversas de amigos e nas tertúlias partidárias, falo eu aqui, mas não falam os analistas, comentaristas e outros palhaços pagos a peso de ouro pela comunicação social para nos levarem no engodo, nem fala o senhor Presidente da República nem o Governador do Banco de Portugal, como se o dinheiro, com o seu toque, cor e cheiro, não fosse um esgoto que escorresse aos milhões por debaixo da mesa, e não representasse uma grande fatia no buraco do filho da mãe do défice.

Não, disso não se fala, porque toda a gente sabe que as coisas são mesmo assim – e assim é que grande parte da distinta classe política se amanha – enquanto outra parte espera a sua vez, ou aspira vir a amanhar-se um dia.

Entretanto, faz-se aquilo que é democrático. Vai-se ao bolso dos pequenos, porque ir ao bolso dos outros, é antidemocrático, é uma irresponsabilidade política, é um atentado à economia. A economia não aguenta que se vá ao bolso dos grandes, só admite que se vá ao bolso dos pequenos, da ralé. Por isso, eu sou forçado a concluir que a justiça social, o bem-estar das pessoas comuns, o acabar com a pobreza e a miséria, com as crianças com fome, como acabar com os comilões que têm várias e grandes reformas, e ainda mais tachos por cima, acabar com tudo isso é, naturalmente, antidemocrático. Então, meus amigos, do alto deste microfone, proclamo que esta democracia é uma coisa que cheira mal, que cheira a fezes, para não dizer aquela palavra que o povo vulgarizou e que todos vocês sabem qual é.

E acabo (mais uma vez) com o Eça, aqui há 140 anos atrás.
O défice
"Sempre que no Parlamento se levanta a voz plangente dum ministro, pedindo que cresça a bolsa do fisco e se cubra de impostos a fazenda do pobre, para salvação económica da pátria, há agitações, receios, temores, inquietações, oposições terríveis, descontentamentos incuráveis. O povo vê passar tudo, indiferente, e atende ao movimento da nossa política, da nossa economia, da nossa instrução, com a mesma sonolenta indiferença e estéril desleixo com que atenderia à história que lhe contassem das guerras exterminadoras duma antiga república perdida.
Temos um défice de 5 mil contos. Esta é a negra, a terrível, a assustadora
verdade. Quem o promoveu? Quem o criou? De que desperdícios incalculáveis se formou? Como cresceu? Quem o alarga? É o governo? Foram estes homens que combatem, foram aqueles que defendem, foram aqueles que estão mudos? Não. Não foi ninguém. Foram as necessidades, as incúrias consecutivas, os maus métodos consolidados, a péssima administração de todos, o desperdício de todos. Depois, as necessidades da vida moderna, de terrível dispêndio para as nações. Como na vida particular, cresceram as superfluidades, o vão luxo, o aparato consumidor, mais precisões, mais gastos, a vida internacional tornou-se tão cara que mais ou menos todas as nações estão esfomeadas e magras.
O défice tornou-se um vício nacional, profundamente arraigado, indissoluvelmente preso ao solo, uma lepra incurável."
O Eça de Queiroz, em 1867, já falava do Portugal de 2005. Essa é que é essa!

Crónica de João Carlos Pereira - Lida aos microfones da Rádio Baía em 27/07/2005

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