13/12/2006

É NORMAL…

As nossas provocações de hoje vão cirandar à volta de coisas muito normais. O «normal» é – pode dizer-se – o grande tema desta conversa.

Comecemos pelo secretário-geral da ONU, Kofi Annan. Agora que está prestes a abandonar o cargo, proferiu, anteontem, um lindo discurso. Depois de acusar os EUA de terem violado os princípios fundadores da ONU, pediu-lhes para apostarem na diplomacia, em vez de privilegiarem o uso da força. Acusando os norte-americanos de terem abandonado aquilo que diziam ser os seus ideais e objectivos, Annan referiu os abusos em Abu Ghraib, o presídio militar de Guantánamo e as prisões secretas da CIA. «os direitos do Homem e o Estado de direito são vitais para a segurança e a prosperidade globais», sublinhou o ainda secretário-geral da ONU, num discurso que assumiu um claro tom de repreensão.

Numa alusão à invasão do Iraque, lançada em 2003 à margem das Nações Unidas, disse que a «força militar só pode ser considerada legítima» quando usada para defender «objectivos comuns, em concordância com normas globalmente aceites». E precisou: «temos de reconhecer, qualquer que seja a nossa força, que não temos o direito de agir como bem entendemos». E foi mais longe, quando disse: «mais do que nunca, os americanos, como o resto da humanidade, precisam de um sistema global, através do qual as populações possam enfrentar, unidas, os desafios globais», como a proliferação nuclear, as alterações climáticas, o terrorismo ou as pandemias. E não podia ser mais claro ao dizer: «face a estes perigos, nenhum país pode garantir a segurança enquanto tenta dominar os outros».

Foi, como disse antes, um lindo discurso, que apenas confirmou aquilo que os sectores lúcidos e decentes da humanidade há muito vêm dizendo. Como nós, aqui, várias vezes dissemos. Porém, foi um discurso tardio, quase inútil. Um lavar de mãos próprio de quem nunca assumiu com firmeza e coragem as suas responsabilidades. Um pôr a tranca nas portas depois da casa assaltada. O discurso de Anann não traz à vida centenas de milhares de iraquianos mortos, não reconstrói um país arrasado à bomba, não faz parar a mortandade que é hoje a realidade quotidiana no Iraque.

Por isso, meus amigos, foi um discurso normal. Normalíssimo.

Pinochet morreu sem pagar pelos seus crimes. Não foi julgado em Haia, nem em sítio nenhum. Os EUA não puseram a sua cabeça a prémio. Morreu rico, com uma fortuna por explicar. Tendo sido o responsável directo e confesso pela morte de milhares de chilenos e cidadãos de outras nacionalidades (costumava dizer: «no Chile, nem uma folha se mexe que eu não saiba»), foi a prova provada de que os ditadores e os assassinos são intocáveis, desde que constem da folha de salários dos norte-americanos.

Tudo, por isso, muito normal. Normalíssimo.

Onze mil portugueses, que trabalham para o Estado em regime de avença ou de prestação de serviços, podem ser despedidos já em Janeiro. A maioria, com vários anos no desempenho das suas funções, será, pelos vistos dispensável. Provavelmente – penso eu… – andariam pelos vários ministérios sem fazer nada. Ou será que não? Também não interessa matar a cabeça com estas ninharias, Afinal, serão, «apenas» mais 11 mil pessoas no desemprego.

Tudo muito normal. Mais do que normal: normalíssimo…

Entretanto, o governo prepara-se para criar uma empresa para gerir a Função Pública. (Eu pensava que isso competia aos governos e aos governantes, através dos vários ministérios e seus ministros, mas já vi que estava enganado). Essa empresa, que terá, certamente, uma administração e muitos – muitíssimos! – funcionários, cobrará os seus serviços aos vários departamentos do Estado. A «coisa» terá a cargo a gestão e acompanhamento dos funcionários em mobilidade especial, mais conhecidos por supranumerários (ou emprateleirados), mas também todas as actividades relacionadas com a prestação de serviços de suporte à Administração Pública. Ou seja: os novos funcionários farão, entre outros, o papel de cangalheiros dos trabalhadores que vão ficar sem trabalho ou com vencimento reduzido.

Entre essas actividades constam, assim, todas as relacionadas com os recursos humanos – como sejam o processamento de vencimentos e análise do desempenho, e acompanhar os infelizes até ao olho da rua – mas também a contratação centralizada de bens e serviços, no âmbito do sistema nacional de compras públicas, e a gestão da frota automóvel do Estado. Prevê-se que o processo de empresarialização dos serviços públicos não fique por aqui, pois a nova empresa poderá parir outras. Esta giríssima possibilidade de reprodução em cadeia, já levou a que o Sindicato dos Quadros Técnicos do Estado dissesse que «o Governo tira da sua cartola, de surpresa, um coelho, que gerará cada vez mais coelhinhos».

Mas giro – muito giro, mesmo – é que a nova empresa poderá fazer compras de bens e serviços por ajuste directo (isto é: sem concurso público) até 31 de Março de 2007, desde que sejam consideradas imprescindíveis à concepção, instalação e funcionamento dos sistemas de informação e de gestão relativos à mobilidade especial de funcionários e agentes. Mas enquanto a administração central está obrigada a recorrer à nova empresa para todas as aquisição de bens e serviços, os institutos e as entidades do sector público e empresarial e da administração autónoma, não estão. No fundo – e para além de uma clara manobra de privatização – eis uma nova possibilidade de grandes negócios em marcha e – ora bem! – um novo mundo de tachos para os “boys” que ainda não tenham conseguido o seu “job”.

Nada mais normal – normalíssimo! – nestes dias cor-de-rosa, não é?

Grupos de seres humanos, portugueses e estrangeiros, homens e mulheres, novos e velhos, foram vistos, numa interessante reportagem da SIC, assaltando, literalmente, os contentores do lixo onde um supermercado deita, diariamente, os géneros alimentares fora de prazo, ou à beira disso. Parece que se trata de um espectáculo que se repete todas as noites. País feliz, este, onde há sempre uma sobra – uns restos – para uma boca faminta.

Ao vê-los, escolhendo entre o lixo comum toda a paparoca aproveitável, fiquei a pensar que, afinal, ali está uma boa ocupação para os futuros excedentários da função pública, para os tais 11 mil avençados à espera da ordem de marcha e – porque não? – para os jovens recém-formados cansados de procurar emprego. Chamar-se-iam, por exemplo, Brigadas Ecológicas Auto-sustentáveis.

Quanto ao resto, tudo normal, tendo em conta que vivemos aqui, em Portugal.

Finalmente, o facto mais normal de todos: uma ex-alternadeira (nas suas próprias palavras) pode dar um empurrão decisivo ao processo do Apito Dourado. Uma mulher repudiada, pelos vistos, pode mais do que o poder judicial e o poder político de braço dado.

De súbito, aquilo que se dizia à boca pequena, nas tertúlias mais ou menos desportivas ou que – vá lá… – a consciência nacional já tinha como certo, (mas duvidava que daí se passasse), assume agora foros de coisa irrefutável e obriga polícias e magistrados a desenterrar o peixe podre que, sabiamente, haviam arquivado no lodo de muitas e mal cheirosas conivências e conveniências.

Pinto da Costa, o vivaço, o espertalhão, o «bem encostado», o tipo das larachas bem metidas, o «papa», o mafioso ou o poderoso e inteligente senhor do Dragão, conforme o ângulo de observação e os olhos de quem apreciava, demonstrou que, afinal, pouco percebe da vida. Aparentemente, nunca lhe passou pela cabeça que agredir ou desprezar uma ex-alternadeira, depois de a elevar às capas das revistas cor-de-rosa e do jet-set, de a ter enchido de brocados e de jóias e de a ter colocado no trono da «mulher mais importante» do Porto e arredores, pudesse dar no que deu. Mas, para quem passou toda a vida no «calor da noite» – e aí se fez gente –, conhecendo de cor, com o seu amigo Reinaldo Teles, todos os meandros da vida esconsa do Porto e das redondezas – e com a idade que tem – não se compreende o descuido. Mas é como diz um amigo meu: se pela boca morre o peixe, certos tipos morrem pela minhoca…

Agora, o Apito Dourado ganhou outro impulso, e a alegada rede mafiosa (ou o Sistema) de que toda a gente falava, e onde o futebol era o fulcro de uma imensa teia de interesses (políticos, partidários, económicos e pessoais) pode ter os dias contados. Até à última semana, o mais certo era a coisa dar com os burrinhos na água. Depois do “Eu, Carolina”, tudo pode acontecer.

Mas, afinal, meus amigos, aconteça o que acontecer, tudo será normal.

Se tiver sido uma antiga alternadeira desprezada, a forçar a Justiça a fazer o que lhe compete, apesar de ser caso raro – ou único – no mundo, será normal aqui, pois estamos em Portugal. E se assim for, pois que viva a Casa de Alterne e que morra a Casa da Justiça!

Se, pelo contrário, ficar tudo na mesma, e se concluir que a lei anti-corrupção e as escutas telefónicas é que são ilegais, indo em paz corruptores, corrompidos, agressores e seus mandantes, associações de criminosos e seus associados, tudo bem.

Afinal, isso é que será absolutamente normal.

Normalíssimo…


Crónica de: João Carlos Pereira
Lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 13/12/2006.
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