20/12/2006

É TÃO BOM HAVER POBREZINHOS!

Não me apetecia nada falar sobre o Natal – nem, sequer, dourar as minhas palavras com luminosos tons de registo natalício.

Não me apetecia seguir as regras e, neste final de Dezembro, chamar a atenção para as desigualdades e injustiças que por aí vão, coisa que as boas consciências sempre fazem por esta altura.

Não me apetecia recordar aos meus ouvintes como deve ser amargo o Natal de milhares de famílias que, só este ano, perderam os empregos que as sustentavam.

Não me apetecia, hoje, dizer palavras de solidariedade para com os que dormem em caixas de cartão, nos vãos de escada, em barracas podres, ou andam aos caixotes, como os cães ou os gatos vadios.

Não me apetecia chamar a tenção para o drama dos que esperam por uma operação há anos, nem para aqueles que já não entram na farmácia, impedidos pela vergonha de ainda não terem conseguido pagar o medicamento que aviaram há dois meses.

Não me apetecia discorrer sobre carnificinas provocadas por guerras de rapina, cuja única justificação, honesta e verdadeira, é a de controlar a produção do petróleo mundial e manter o dólar como moeda padrão.

Não me apetecia, em suma, aproveitar o Natal para, como os caridosos sazonais, me sentir subitamente bonzinho e generoso, e lembrar-me, de repente, dos pobrezinhos, coitadinhos – dos excluídos, como se costuma dizer. Ou das criancinhas que vivem à míngua de tudo, e de quem todos se lembram por esta altura, mas de quem todos – quase todos – se esquecem nos restantes dias do ano.

E não me apetecia, porque não quero correr o risco de ser tomado por mais um dos hipócritas (ou, coitados, apenas distraídos) que, ano após ano, fazem desta época uma cascata de apelos à solidariedade social, jamais se questionando porque carga de água essa receita nunca serviu de nada, já que também, ano após ano, há cada vez mais pobres a precisarem da nossa ajuda.

Hipócritas (ou, coitados, distraídos), que parece satisfazerem-se em tornar menos frios, sombrios e amargos, a milhares de seres humanos, estes dois ou três dias do ano, como se os pobres – os excluídos, os desfavorecidos, como também lhes chamam – fossem (esses desgraçados…) uma fatalidade cósmica destinada a permitir-lhes exibir, todos os anos por esta altura, a sua generosa humanidade.

Dizer – como ouvimos dizer – que a quadra exige uma atitude de compaixão e caridade, é, na sua brutal e básica singeleza, avalizar a existência da própria miséria. Assim como quem diz: «Nós, os que podemos muito – ou alguma coisita – devemos, nesta quadra consagrada ao amor e à sã alegria, dar um pouco do que temos àqueles que, como todos sabemos, nada têm». Como se «aqueles que nada têm» não passassem de um pormenor da paisagem, uma vulgar constante do nosso quotidiano, uma fatalidade da vida, uma excrescência naturalíssima da sociedade humana.

Por isso, para não ser confundido com hipócritas – ou ignorantes – apetece-me, nesta quadra, saborear ainda mais o vinagre da indignação e revolta que, ao longo de todo o ano, me azeda os dias.

E aqui estou eu, em mais um Natal, nesta minha vidinha mediana, entalado entre milhões de pobres absolutos e uma pequena casta de mandantes absolutistas, ouvindo apelos à caridadezinha, mas percebendo, atrás deles, a sinistra sentença que perpetua este estado de coisas: «Sempre houve ricos e pobres – e sempre os haverá».

Ando por aí e vejo, na minha imaginação, essa expressão indigna escrita nas barbas de um Pai Natal qualquer, ou cintilando nas luminárias indecorosas que pretendem enfeitar os nossos olhos e aquecer as nossas almas. Oiço-as nas palavras engravatadas dos políticos, nas inconsequentes homilias dos bem paramentados bispos, no roçar das sedas que vestem os grandes vendilhões, no tilintar das suas infindáveis caixas registadoras.

Então, aqui estou eu, entre os pobres – de um lado – e os ricos e os mandantes – do outro – mas sabendo bem qual é o meu lugar neste presépio obsceno, por muito que isso custe a alguns Castros, Noronhas, Amarais, Braganças, Mendonças, Almeidas, Possidónios, Meireles, Meneses, Alarcões, Fontouras, Dantas, Lencastres, Pessanhas, Azeredos, Miras, Godinhos e, até, a alguns Silvas e a alguns Tavares – e com isto tenho tudo dito.

Ou quase. Porque só falta dizer que, de hoje a um ano, teremos mais pobres em Portugal; e Portugal será, então, muito mais pobre do que é hoje.

Bom Natal, não é?


Crónica de: João Carlos Pereira
Lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 20/12/2006.
(Não deixe de ouvir em 98.7 Mhz e participar pelos telefones 212277046 ou 212277047 todas as quartas-feiras entre as 09H00 e as 10H00).

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