06/12/2006

UM SERÃO PORTUGUÊS

Vários amigos, a quem tenho submetido as minhas «provocações» para apreciação, e outros que, por as ouvirem, ficam habilitados a comentá-las, são praticamente unânimes no seguinte: por um lado, dizem que me alongo demais, o que, em termos radiofónicos, não será aconselhável; por outro, que abordo demasiados temas numa única crónica. E, também, que me estou a tornar repetitivo.

Na verdade, concordo com essas apreciações, que eu próprio já fizera ao meu trabalho, e até refiro outra: deveria falar mais dos problemas que nos afectam e deixar que fosse o ouvinte a encontrar os culpados. Ou seja: cingir-me eu apenas aos factos, para permitir que o auditório concluísse como entendesse. Não adjectivar tanto, mas substantivar mais, em suma.

Tentemos, então, dar outra forma a estas «provocações», mudar o seu clima, o seu ambiente, só para ver o que dá. Experimentemos, para começar, uma coisa mais intimista.

Todas as noites, depois do jantar (se jantar se pode chamar àquilo que fazemos em minha casa e que, apesar de resultar mais de uma opção dietética do que de um constrangimento económico, já é um luxo comparado com o que fazem centenas de milhares de portugueses), mas – dizia eu – todas as noites, depois jantar, constituído por uma sopa à base de legumes e cereais, umas tostas com umas fatias de queijo magro e, para acabar, uma peça de fruta, ficamos a olhar para a televisão.

Àquela hora, convém dar uma vista de olhos aos serviços noticiosos. Nas Filipinas, um furacão matou centenas de pessoas e deixou milhares sem as suas pobres barracas, destruídas pelas enxurradas de lama e detritos de toda a espécie, onde as cinzas de um vulcão das redondezas contribuíram para transformar toda a zona num enorme cemitério. Vêm-me à memória imagens de outras catástrofes naturais e, enquanto penso nisso, oiça a minha mulher comentar:

- Quando há desgraças destas, são sempre os pobres a sofrer. Nunca vi a casa de um rico ir na enxurrada.

Nessa altura, já o locutor diz que tinham morrido vários civis no Afeganistão, no ataque dos rebeldes a uma coluna da NATO. Curiosamente, o sujeito omite que, nesse mesmo ataque, tinham ficado feridos vários fuzileiros de Sua Majestade britânica, coisa que eu soubera ao ver, horas antes, aquela notícia na Sky News. A omissão – penso eu – deve ser para não moralizar as forças «antidemocráticas» existentes em Portugal. Não vejo outra razão.

Logo a seguir, um pulo à Venezuela. Apesar de já todos sabermos quem iria vencer as eleições – e de até a própria televisão nos dar conta, em voz contrita, dos confortáveis 20% de vantagem que as sondagens davam a Hugo Chávez – a equipa de reportagem raramente encontrava alguém favorável a este candidato. Escolhidos a dedo – pelo menos, parecia – quase todos os entrevistados, com ar de gente que está bem na vida (as senhoras, então, que charme, que poses, que desenvoltura no falar!) lá iam dizendo que votariam no «candidato da democracia», um certo senhor Rosalles. Lá, como cá, um político que olhe pelos mais desfavorecidos, pela gente pobre, não é democrático. Isso já nós sabíamos.

Fico a pensar por onde andariam os potenciais eleitores de Chávez, esses muitos milhões que a nossa RTP não conseguiu descobrir. Se eu fosse muito distraído – ou completamente tontinho – chegaria à conclusão de que, por aquela amostra, Chávez só ganharia por meio de chapelada. Seria essa a ideia que a RTP quis passar, ou o pobre do repórter não fez o trabalho de casa e, assim perdeu uma oportunidade de fazer uma peça jornalística a sério? Ou séria.

Volta o locutor aos assuntos nacionais, para lembrar que Portugal é o país desenvolvido («desenvolvido, salvo seja!», exclamo eu) com piores resultados na luta contra a SIDA. Será, pelo que ouvimos, o país onde a doença mais alastra e onde há uma maior percentagem de doentes infectados. Fico à espera que nos sejam adiantadas razões para tão nefasta situação, mas o “pivot” não vai por aí. É mais giro andar atrás de uma carrinha que distribui preservativos e troca seringas, ali para os lados do Intendente…

E a minha mulher continua a comentar: – Somos sempre os primeiros naquilo que é mau. Olha a novidade!

Também não é novidade, mas a notícia lá vem, envergonhada: Não há saídas profissionais para os jovens que acabam os seus cursos universitários, sendo entre os recém-formados que o desemprego atinge números ainda mais assustadores. E a coisa alastra, piora, pois até o 12.º ano dá menos emprego do que o 9.º. Fica-se por aqui, pois o bom jornalismo televisivo é aquele que não põe perguntas incómodas ao poder político. Por exemplo: o que é isso na inovação e da excelência?

As «boas» notícias ainda não acabaram. É que vêm aí mais aumentos das taxas de juro, apesar dos despejos, dos arrestos e do accionamento das hipotecas subirem exponencialmente. Por isso, os jovens voltam para casa dos pais – ou já nem saem de lá – pois a vida, como está, prolonga a dependência cada vez até mais tarde. São as gerações passadas a pagarem os seus erros e as oportunidades perdidas com língua de palmo, as opções políticas e partidárias nos tais «candidatos da democracia». Cá se fazem, cá se pagam, penso eu. Só é pena que os jovens de hoje comam por tabela e não percebam o que lhes está a cair em cima. Ainda bem que na Venezuela há quem já tenha aberto os olhos.

Mas fico à espera – em vão – que me seja explicado porque sobem as taxas de juro, porque conseguem, em Bruxelas, ou lá onde é, alguns senhores complicar tanto a vida a milhões de pessoas, mas volto a ficar em branco. É assim… e pronto. Devem ser estes os custos da adesão. Se calhar…

Para dar um toque positivo ao funeral noticioso, sai uma referência risonha. As pensões mais baixas vão aumentar 3,1%. Faço as contas de cabeça, tomando como base uma pensão de 250 euros (que são às centenas de milhares – e até há mais baixas) e dá-me qualquer coisa como 7 euros e meio por mês, ou seja um aumento diário de 25 cêntimos. Penso que me enganei. Vou buscar a calculadora e verifico que, afinal, estou bem no cálculo mental. Começo a rir, com a família a olhar para mim, duvidando da minha sanidade mental, já que as notícias, agora, falam de 62 pessoas mortas no Iraque, em mais um dia sangrento.

Faço uma cara séria e, com ares de professor, recordo à família que a reforma média, em Portugal, é de 350 euros, sendo, em Espanha, de quase o dobro: 689 euros. Ainda em termos médios, as pensões de sobrevivência e de invalidez, cá, são de 173 e 319 euros, respectivamente, menos de metade do que em Espanha, onde são de 455 e 702 euros.

Nessa altura, o gato desata a miar. Percebo a mensagem. Está na hora de mudar de canal. E lá vamos nós à procura de qualquer coisa mais civilizada. Isso. Um programa sobre a vida animal vinha agora mesmo a calhar.

Um qualquer, desde que não trate de vampiros, não é?


Crónica de: João Carlos Pereira
Lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 06/12/2006.
(Não deixe de ouvir e participar pelos telefones 212277046 ou 212277047 todas as quartas-feiras entre as 09H00 e as 10H00, em 98.7 Mhz)

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Sr. Joao Carlos Pereira ja a muito tempo que oiço as suas "provocacões" na Radio Baia agora tenho oportunidade de as ler e acho-as muito pertninentes e oportunas enquanto poder e o deixarem va continuando.
Antonio Vieira. Baixa da Banheira

26/12/07 8:13 da tarde  

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