27/12/2006

QUE LINDO! QUE COMOVENTE!

Em Espanha – informou-nos, risonha, a senhora locutora – o brinquedo mais vendido, neste Natal, foi uma boneca que se assemelhava à Infanta D. Leonor, a filha dos príncipes das Astúrias, os quais serão, por graça de Deus e de toda a corte celeste, os futuros reis daquele país. Fiquei comovido com esta prova de plebeia dedicação que, pela amostra, os súbditos espanhóis dedicam a suas altezas reais, e pela atenção que a nossa televisão concedeu a tão precioso desvelo. Que lindo! Que comovente!

Outras notícias dizem-nos que, já um pouco mais afastado de nós, na Indonésia, no Sri Lanka e na Tailândia, dois terços das famílias que ficaram sem casa, devido ao tsunami de 2004, ainda continuam por realojar. O que vale – pensei eu – é que o clima, por aquelas bandas, é quase sempre calmo e quente, pelo que um tecto em condições não faz assim grande falta. Depois, tratando-se de gente humilde, habituada a toda a espécie de carências, não se notará muito a diferença entre ter casa e não ter. Lá se desenrascam… O que também não deixa de ser lindo. E muito comovente.

Continuando lá por fora, soubemos que Saddam viu confirmada a sentença que o condenou à forca. Ora aí está, acima de tudo, uma boa, linda e comovente lição, principalmente para os actuais e futuros déspotas, ou simples ditadores: quem quiser aguentar o pescoço em boas condições, faça lá o que fizer, mantenha sempre uma boa relação com os EUA. Mas já sabe: no dia em que sacudir a canga, aprende logo como elas mordem. E, por trágica ironia – convém sempre recordá-lo – Saddam vai ser morto por crimes cometidos em estreita cumplicidade com aqueles que agora o condenaram. Foram os norte-americanos – e não outros – quem lhe forneceu as armas (especialmente as armas químicas) com que terá mandado assassinar tanta gente. Não deixa, por isso, de ser lindo e comovente o desfecho agora anunciado. «Bem fiz eu em nunca ter renegado los gringos», terá casquinado Pinochet, remexendo-se dentro das suas próprias cinzas.

Ali para as bandas de Sintra, vive uma família em condições muito más (igual a milhares de outras, mas não podiam as nossas televisões, coitadas, mostrá-las uma a uma, se não, daqui a um ano, a esta hora, ainda estávamos a vê-las desfilar no pequeno ecrã, em vez da Floribela). Vive, então, ali para os lados da aristocrática Sintra, um família (casal e dois ou três filhos – mais outro, que está para vir) entre quatro paredes mal amanhadas, onde as camas eram tábuas assentes sobre tijolos. O casebre não tem água, nem luz. À nova gravidez da mãe junta-se o desemprego crónico do pai.

Apesar de ser muito mau o que vimos, garanto-vos que conheço bem pior. Mas mostrou a televisão essa pobre família e, a provar que ainda há gente boa, logo mostrou, dois dias depois, a chegada de duas caminhas e dois colchões, em muito bom estado (e – não sei – talvez mais algumas roupitas e uns brinquedos), que uma família aqui da Margem Sul resolveu oferecer, num belo gesto de solidariedade.

Riram-se os pequenos, riu-se a mãe, riu-se o pai, riram-se os ofertantes, e até na voz da repórter havia um riso de bem-aventurança. Era a felicidade a pôr rendinhas em chita esgaçada. E por aqui se ficou a linda e comovente festa.

Confesso que senti um estranho incómodo perante tanta alegria, tanto enlevo. Na verdade, até fui invadido por um sentimento de humilhação que, nem a frio, consigo explicar muito bem. Não via eu uma família inteira a rir-se, feliz, por lhe terem dado duas camas e dois colchões? E não adivinhava eu um país inteiro, comovido, a dar graças ao «senhor lá de cima», por saber que aquela família ia ter, finalmente, duas camas dignas desse nome, embora já usadas? Não via – ou ouvia – eu, a senhora locutora, falando, com contida excitação, deste «suave milagre», só comparável ao do conto, também assim chamado, de Eça de Queiroz? Não percebia eu, na esplendorosa notícia, o sentencioso anúncio de que as misérias se podem resolver através das esmolas, sejam elas as dos cêntimos ou as dos colchões? O que via eu, nos rostos e nos sorrisos daqueles pais e daquelas crianças, que me doía – que me humilhava – em vez de me alegrar?

Pensei muito, e não sei encontrei as respostas as estas perguntas, bem como a explicação por me sentir humilhado, em vez de comovido ou satisfeito. Gostaria, por isso, que fossem os nossos ouvintes a fazê-lo, explicando-me, assim, porque razão, desta vez, nem por ironia, eu conseguir acrescentar: «Que lindo! Que comovente!».

Linda e comovente foi a mensagem de Natal do primeiro-ministro socialista. Num registo delicodoce, cheio de requebros quase beatíficos, assumindo um ar afável e paternal, inspirando-se – quiçá – no estilo usado por certas mamãs quando contam histórias de embalar aos seus rebentos, lá foi, sem se dar conta do ridículo de toda aquela encenação, efabulando petas sobre petas. Que a economia, as contas públicas e o emprego estão a melhorar «passo a passo», que é preciso haver muita «confiança» e que (oh! descoberta das descobertas! Oh! sublime e iluminada visão!) o País «tem ainda um longo caminho pela frente».

Foi lindo e comovente termos ouvido que «em 2006 as coisas começaram finalmente a melhorar», e que «melhorou a confiança – nos consumidores e nos empresários». Com vozinha de algodão doce, afirmou que «melhorou a economia», que «melhoraram as nossas exportações», que «as empresas estão a vender mais e melhor» e que «de Setembro de 2005 a Setembro de 2006, a economia portuguesa foi capaz de criar 57 mil novos empregos». Limpei as lágrimas (de tanto rir, claro…) e fiquei a pensar que este desempenho cómico ficaria melhor num dos muitos espectáculos de circo que, nesta quadra, os diferentes canais de televisão se fartam de passar.


Mas querem os meus queridos ouvintes – e leitores – saber algo verdadeiramente lindo e comovente? Querem? Então, façam favor de tomar nota.

1 – Em 2007, para os trabalhadores e outras camadas desfavorecidas da população, a actualização insuficiente dos escalões do IRS vai determinar um aumento deste imposto a pagar, que o Ministério das Finanças estima em mais de 30 milhões de euros por ano;

2 - A redução, em 2007, para 6.100 euros, da dedução específica que têm os reformados e aposentados, levará a um aumento de imposto a pagar, nesse ano, de mais de 123 milhões de euros;

3 - Os trabalhadores de recibo verde vão ver aumentar o IRS que têm de pagar, mesmo que o seu rendimento não suba, pois a parcela de rendimento sujeita a IRS passará de 65% para 70%;

4 - O IRS vai aumentar, entre 131% e 923%, para mais de 35% das pessoas com deficiência;

5 - O Decreto-Lei 20-C/88, que permitia a redução em 50% do preço da taxa de assinatura do telefone para pensionistas e inválidos com rendimentos inferiores ao salário mínimo nacional, vai ser revogado.

Mas quando o primeiro-ministro socialista diz que a situação do País exige o sacrifício de todos, vejamos se é isso que diz o OGE para 2007.

Continuem, por favor, a tomar nota:

Em 2007, serão mantidos e criados novos benefícios fiscais para uma minoria já muito privilegiada. De facto, a receita fiscal perdida devido aos benefícios fiscais concedidos, vai aumentar, entre 2006 e 2007, de 1.792 milhões de euros para 2.087 milhões de euros, quando nos três anos anteriores tinha diminuído de uma forma continua. E 59,5% desta receita fiscal perdida resulta de benefícios concedidos às empresas, nomeadamente aos grandes grupos económicos.

Assim, para além dos benefícios já existentes, são criados mais benefícios fiscais para os grandes grupos económicos, destacando-se os seguintes:

1 - Isenção dos lucros distribuídos por empresas com residência em Portugal a empresas situadas em países da U.E., desde que estas possuam pelo menos 15% do capital daquelas;

2 - Revogação da disposição que determinava a sujeição a pagamento de imposto os lucros que tivessem utilizado paraísos fiscais e zonas francas para não serem tributados;

3 - Redução da taxa de IMI de 5% para 1% a pagar pelos prédios que sejam propriedade de entidades com domicílio fiscal em paraísos fiscais;

4 - Isenção de IMT nas aquisições de imóveis por instituições bancárias;

5 - Redução da taxa de 25% de IRC e da taxa de IRS que podia atingir 42% para apenas 10%, a pagar pelos rendimentos respeitantes a unidades de participação nos fundos de capital de risco;

6 - Isenção de IRC dos rendimentos obtidos por fundos de investimento mobiliário, desde que pelo menos 75% dos seus activos estejam afectos à exploração de recursos florestais;

7 - A incorporação no Estatuto dos Benefícios Fiscais de todos os benefícios que constavam do Decreto-Lei 404/90, cuja vigência terminava em 2006, o que significa a sua perpetuação, representando mais privilégios fiscais, nomeadamente para os grupos económicos;

8 - Isenção dos lucros recebidos por empresas de sociedades afiliadas, residentes em países de língua oficial portuguesa, desde que estas tenham sido tributadas a uma taxa não inferior a 10%, o que será uma autêntico maná para os bancos e empresas de construção civil.

Também a OPA da Sonae sobre a PT, se se concretizar, determinará que mais de 5.000 milhões de euros de mais-valias não pagarão qualquer imposto, o que significará, para o Estado, a perda de mais de 500 milhões de euros de receitas fiscais.

E o perdão concedido pelo governo à banca, por esta não ter retido o imposto sobre o rendimento de dividendos de obrigações emitidas no estrangeiro, mas possuídas por residente em Portugal, que estava obrigada a reter, significou, para o Estado, a perda de mais de 125 milhões de receitas fiscais em 2006.

Retomo mais umas palavras do primeiro-ministro socialista: «Sei que o Governo está a pedir a todos um esforço maior, mas os portugueses sabem bem que nenhum país progride sem um esforço maior de todos os seus cidadãos. Não há alternativa ao trabalho árduo».

Notaram bem? De «todos os cidadãos», não foi o que ele disse?

Lindo e comovente, não é?


Crónica de: João Carlos Pereira
Lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 27/12/2006.
(Não deixe de ouvir em 98.7 Mhz e participar pelos telefones 212277046 ou 212277047 todas as quartas-feiras entre as 09H00 e as 10H00).

1997, 2007 © Guia do Seixal

Visões do Seixal Blog Directório Informações Quem Somos Índice