27/09/2006

UMA DITADURA CHAMADA DEMOCRACIA

Não sei porquê, na última semana voltou-me à memória, com frequência, esta célebre quadra de António Aleixo:

Uma mosca sem pudor,
pousa com a mesma alegria,
na cabeça dum doutor,
ou em qualquer porcaria…

Mas em vez de ficar aqui à espera de descobrir o porquê da lembrança, vamos ao que importa. Na semana passada, um ilustre ouvinte, com uma veia humorística invulgar, teceu loas sem fim à governação de José Sócrates, levando, na cómica enxurrada laudatória, tudo o que cheirasse a Partido Socialista. Entre muitas e boas, decretou o doutor que a luta de classes não existe, eventualmente porque não há classes, ou, se houver, as mais fracas e exploradas – as classes trabalhadoras – estarão devidamente amansadas e, por conseguinte, sem disposição nem força para a luta.

É claro que as classes sociais – e as lutas que entre si travarão – não existem, ou deixam de existir, porque uns dizem que sim e outros, do alto da sua cátedra, afirmam o contrário. Tal como não foi por Galileu ser obrigado, pela Santíssima Inquisição, a dizer que era o sol que girava a volta da terra, que a realidade se alterou. As coisas são como são, por muito que alguns manhosos, bem instalados na vida, nos queiram impingir o contrário. As classes existem, como o tal doutor implicitamente confirmou, ao declarar que o motorista que conduz suas excelências, por não ter o mesmo estatuto académico e profissional – logo, social – não pode ter, em consequência, os mesmos proveitos remuneratórios.

Na verdade, conheço muitos motoristas (de autocarros dos transportes colectivos de passageiros, de camiões de transportes de mercadorias, de táxis e, até, motoristas da fina flor da casta de velhos e novos ricos que por aí cacarejam), que são mais úteis à sociedade do que as matilhas de doutorzecos dependurados nos estofos do poder económico ou político, onde parasitam os recursos nacionais sem qualquer pudor ou hesitação.

Aliás, qualquer mineiro, qualquer pescador, qualquer agricultor, qualquer operário metalúrgico ou têxtil, qualquer um destes – ou doutros – agentes produtivos tem, para mim, uma utilidade social maior do que a dos perfumados doutores instalados nos incontáveis gabinetes da administração das empresas públicas ou privadas, essa elite obscena que nos leva couro e cabelo, sugando, avidamente, as tetas desta democracia feita à sua medida.

São os boys e as girls, os tios e as tias, os primos e as primas, os filhos e as filhas, as amantes e os gigolos, os favoritos e as favoritas, os cunhados e as cunhadas, enfim, é todo este banquete imundo, esta promiscuidade entre a classe de cima e as subclasses que lhe fazem os recados, instaladas em todos os patamares do aparelho do Estado, onde fervilham senhoritos e senhoritas que de lá só saem para serem ainda melhor gratificados nas empresas privadas que ajudaram a medrar, enquanto decretavam, para a plebe – ou seja, para as classes inferiores, como os «motoristas» – o aperta o cinto habitual.

Disse, às tantas, o doutor, aquilo que eu já ouvia a Salazar e Caetano, e, depois, a Soares, a Cavaco, a Guterres, a Durão, a Santana e, agora, a Sócrates, tal como a toda a sorte de sacripantas que têm segurado as rédeas do poder, ou seja, que os sacrifícios que hoje pedem aos portugueses só terão os seus frutos daqui a muitos anos, isto é, como ele doutoralmente perorou, só terão efeitos para os nossos filhos ou nossos netos.

Pois é: o pior é que já nasceram e morreram muitos filhos e muitos netos desde que esta lengalenga foi inventada, talvez inspirada na frase que o merceeiro afixava à vista de todos, numa das prateleiras atrás do balcão: Hoje não se fia. Só amanhã. É a táctica da cenoura pendurada num pau à frente dos olhos do jumento, que a vai perseguindo sem nunca a alcançar e, assim, puxa a carroça e transporta o dono – e os doutores que o lambem – ao seu destino.

Mas é a essa habilidade que se chama governar. Tal como é a esta ditadura que se chama democracia.

Falando disto a um amigo meu, respondeu-me ele que um dos males do nosso país é não haver uma opinião pública consciente, sólida e activa. Não há movimentos de opinião, nem movimentos cívicos à margem dos partidos, Só há, em suma, carneiradas. Em consequência – dizia ele – o país está dividido em rebanhos, e cada rebanho bale conforme o seu pastor. Há o rebanho da Serra da Estrela, há o rebanho da Serra de Aire, há o rebanho da Serra de Ossa, e não passamos disto. As fidelidades partidárias acabam por ser um cheque em branco para a imposição de políticas que, invariavelmente, favorecem meia dúzia de pessoas em prejuízo do resto.

E é precisamente por isto – e aproveitando uma enorme maré de conformismo e descrença – que os «doutores» deste país, reunidos em conclave no Beato (bem se poderia chamar-lhes o Bando do Beato), decidiram que era oportuno apanhar a embalagem de Sócrates para pedir ainda mais sangue, mais carniça fresca. Garantem que a carnificina que está em curso ainda não chega. Querem tudo, querem o resto. «As reformas realizadas são insuficientes. É necessário ir mais fundo», exigem, agora que tomaram o freio nos dentes e têm um primeiro-ministro «à maneira», que gosta de se pôr a jeito para satisfazer os desejos dos homens do dinheiro.

E eles nem querem muito! Querem, «só», pagar ainda menos impostos. Querem, «só», deitar as mãos à segurança social e serem eles a arrecadar os descontos e, depois, a pagarem-nos as pensões que o resultado da «capitalização» e, principalmente, da especulação bolsita, permitissem, depois de descontados os lucros que entendessem retirar para si. Querem «só», mão-de-obra barata e flexível, e que a possam despedir a qualquer momento. Querem, «só», arrebanhar tudo o que é serviço público, seja na área da saúde, seja na educação, seja na captação e distribuição da água e, depois, no tratamento das águas residuais. Eles querem – quando isso for possível – ser donos do ar, para depois no-lo cobrarem ao metro cúbico. Eles querem fazer de tudo – mas de tudo – um enorme e proveitoso negócio, para lhes encher a burra e a arca, competindo-nos a nós, aos «motoristas», aos «burros de carga» carregar com eles e receber o que suas excelências pagarem, isto se quiserem pagar, claro está. Eles querem, resumindo, ser os nossos donos, os seres omnipotentes a quem serviremos sem hesitações e sem levantar os olhos.

Os senhores doutores só falam do Eurostat, do FMI, da OCDE para dizerem o que lhes convém, mas passam, ligeiros, ao lado do facto de sermos cada vez mais últimos em tudo e de, todos os anos, ficarmos mais distantes do penúltimo. Eles sabem, coitados, conforme um seu exemplar nos informou a semana passada, que só temos bons ministros, incluindo, aí, a senhora ministra da edução. Mas, como não se pode saber tudo, não foi dito que Portugal é um poço de poucos e nada bons alunos. Que o ensino, em Portugal, que tem sido da responsabilidade, à vez, do PS e do PSD, provoca a «incapacidade dos jovens em transitarem do sistema educativo para o mundo do trabalho».

E não sou eu que o digo: o diagnóstico foi feito pelos economistas do Banco Europeu de Investimentos, Luísa Ferreira e Pedro Lima, que usam os indicadores da OCDE e desmontam argumentos desculpabilizantes do estado a que chegou o ensino.

A verdade, dizem aqueles economistas, é que Portugal está na cauda da OCDE. O número de estudantes de todos os níveis situa-se «claramente abaixo» dos países desenvolvidos. Só 35% dos adultos que beneficiaram do investimento na educação nas últimas décadas (hoje têm entre 25 e 34 anos) acabaram o secundário, remetendo-nos para o 3.º pior lugar, quando em mais de metade da OCDE o secundário foi atingido por 80%.

Para quem defendeu que o melhor do 25 de Abril foi o 25 de Novembro, deve custar um bocado engolir coisas destas: «o mais assustador», diz-se no estudo, «é que o número não baixou nos últimos dez anos, já que cerca de metade dos jovens entre os 18 e os 24 anos continua a virar costas à escola. Há cinco anos, um quarto dos nossos jovens não tinha sequer concluído o 9.º ano. Os níveis de participação no secundário e universitário estão, portanto, «claramente abaixo de valores óptimos».

Também «a qualidade não é melhor», dizem os autores do estudo, dado o «desempenho modesto dos alunos portugueses, sempre abaixo da média global». Baseados em testes internacionais, os autores sublinham que o nosso sistema educativo «parece incapaz de produzir um produto cuja qualidade média consiga competir».

Mas os doutores (alguns doutores) só sabem o que lhes convém. Nasceram para «puxa-saco», como dizem os brasileiros, mas suaves do que nós, que abrutalhados, usamos o vulgar «engraxador» ou, ainda pior: o «lambe-botas».

Não sabem que, em Oliveira de Azeméis, os pais fecharam 10 escolas, porque não tinham condições para funcionar. Que há milhares de refeitórios escolares que ainda não abriram. Que foram transferidos alunos para escolas muito piores do que aquelas que encerraram. Não sabem que, enfim, a vida está pior para 9 milhões de portugueses, mas está melhor, muito melhor, para os senhores doutores, com todas as suas incontáveis mordomias.

Não sabem – ou fingem que não sabem – que a uma democracia assim se pode chamar, com todo o rigor, ditadura disfarçada. Ou, se quisermos, de feudalismo financeiro, onde a casta dominante vive do sangue, do suor e das lágrimas dos dominados, e ainda por cima, goza com eles.

O que vale, meus amigos, é que as moscas não distinguem entre as carecas destes doutores e a estrumeira que por aí vai alastrando, alastrando, alastrando…

E veremos, um dia, como há motoristas que darão excelentes ministros, e doutores que, apesar de quererem ser ministros, nem para motoristas servirão.


Crónica de: João Carlos Pereira
Lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 27/09/2006.
(Não deixe de ouvir e participar todas as quartas-feiras entre as 09H00 e as 10H00, em 98.7 Mhz)

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