04/10/2006

UM ESPAÇO MORTUÁRIO

Volto a lembrar que rezam as estatísticas que em Portugal existem mais de dois milhões de pobres. E rezo eu que esse número aumenta a cada reunião do conselho de ministros, especialmente quando o ministro da Saúde e o ministro das Finanças têm ideias novas. Nesses dois milhões, mais de duzentos mil vivem em extrema pobreza. Estes números não são inventados, nem palpites, mas resultam da simples leituras dos documentos oficiais, das estatísticas, o que significa, logo à partida, que a situação deve ser muito mais grave.

Se cortarmos isto às fatias, como se fizéssemos um TAC, veríamos que temos mais de um milhão de idosos cujos rendimentos não chegam aos 300 euros mensais, ou seja, menos de 60 contos na saudosa moeda antiga. Desse milhão de idosos desprezados, 30% (ou seja: 300 mil), vivem abaixo do limiar de pobreza, concluiu agora a Associação VIDA (Valorização Intergeracional e Desenvolvimento Activo) que reuniu dados do Ministério da Saúde, Instituto Nacional de Estatística e da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), logo também não são números atirados ao acaso.

Também um estudo do Eurostat (instituição que certos doutores de falas mansas gostam de citar quando lhes convém), elaborado no âmbito do Dia Internacional das Pessoas Idosas, indica ainda que Portugal é dos países europeus onde as pessoas têm menos expectativas de uma vida saudável após os 65 anos.

Aqui chegado, olho para estes números e sinto que alguma coisa não bate certo. Ora, se uns, baseados nas estatísticas oficiais, dizem que cerca de 200 mil portugueses vivem em miséria extrema, e outros, baseados em estudos idóneos e insuspeitos, dizem que, pelo menos, 300 mil idosos vivem abaixo do limiar de pobreza, isto quer dizer que o número de portugueses a viver na miséria é, no mínimo, assustador. Duzentos mil, é coisa que não pode ser, porque só de idosos na miséria temos nós, como vimos, 300 mil. Mas se há, como sabemos, muita gente a viver à míngua que ainda não é gente idosa, bem, temos de ir buscar o bom do engenheiro Guterres para nos ajudar a fazer contas de cabeça. Quatrocentos mil?! Meio Milhão?! Não me atrevo a dizer outra coisa que não seja: no meu país, há centenas de milhares de pessoas com fome.

Bom, mas isso tem pouca importância porque, como sabia o nosso Almeida Garrett, são sempre precisos muitos pobres para se conseguir fabricar um rico. Logo, quanto mais pobres e miseráveis existirem em Portugal, também mais ricos teremos, e nós sabemos como os ricos são necessários à economia. Não pelos impostos que pagam, já que grande parte dos seus rendimentos não é colectável. Não pela excelência da sua capacidade empreendedora, pela inovação e genialidade que, como empresários e gestores, imprimem às empresas de onde só pensam (benza-os deus!) retirar muito lucro – e o mais depressa possível. Não porque tenham levado o país a vencer as dificuldades, pois a actividade produtiva, da indústria, às pecas, das pecas à agricultura, está, há muito, em recessão.

Vá lá, que os serviços – com destaque para as actividades financeira e seguradora – vão de vento em popa, embora daí não venham sardinhas nem peixe-espada preto, pescada, carapau ou tamboril, mas não faz mal, que tudo isso vem de Espanha. Os bancos também não põem ovos, não dão leite, não produzem maçãs, laranjas ou beringelas, mas que importa, se podemos importar quase tudo o que comemos? O que importa é que o capital financeiro tenha lucros, muito lucros, mesmo que o país não produza nada e se vá transformando, pouco a pouco, num estado parasita, uma espécie da Tailândia ocidental, vendendo sol, praias, meninos e meninas.

Por falar nisto – em serviços – parece que as prostitutas (que, legalmente, não existem no nosso país) vão dar origem a mais receitas fiscais. Acho bem. Aliás, todas elas deveriam ter o estatuto de empresárias, já que muitas são industriais do sexo, trabalhando por conta própria, com escritório montado a anúncio nos jornais de grande tiragem. Talvez comecem a passar recibos verdes.

Como as classes sociais existem, por muito que o neguem os papagaios da globalização, também as há na prostituição. Por isso, temos que grande parte das prostitutas trabalham por conta de outrem, sejam, num caso, os «empresários da noite», sejam, noutros casos, os respectivos proxenetas, para não utilizarmos a designação comum: chulos. Se falarmos das imigrantes a coisa é ainda pior, pois dependem de vários parasitas ao mesmo tempo.

É claro que o governo não diz que vai colectar as prostitutas, porque, legalmente, elas não existem: diz que vai taxar as actividades ou negócios que envolvem a mais velha profissão do mundo, o que vai dar ao mesmo.

Mas o que reflecte esta ânsia fiscal não é qualquer intuito moralizador, porque, se o fosse, os lucros gerados na especulação bolsista seriam colectados e a taxa de IRC aplicável aos bancos não seria a ridicularia que é. Reflecte, isso sim, o desespero de quem vê no horizonte o fracasso das suas políticas e recorre a todos os meios para adiar o inevitável. Quando já não for possível tirar nem mais um cêntimo aos portugueses que ainda trabalham, aos pensionistas, aos pequenos e médios empresários, enfim, quando isto tudo se assemelhar a um imenso espaço mortuário, salpicado, aqui e além, por casinos e bordéis, Sócrates fará como Guterres ou Durão, porque esta gente tem sempre um esquema de fuga bem preparado e melhor remunerado.

Na Hungria, porque um primeiro-ministro confessou ter mentido ao eleitorado, as ruas encheram-se de protestos, como se mentir, em política, fosse outra coisa para além de uma ferramenta indispensável ao caçar de votos e, depois, à manutenção do poder. Se os portugueses reagissem com violência às mentiras que os políticos lhes pregam (já para não falar das habilidades semânticas e técnicas do senhor governador do Banco de Portugal…) tumultos seriam o pão-nosso de cada dia.

Veja-se, por exemplo, a diferença entre o discurso «tecnológico» de Sócrates e o que se passa nas escolas. Na realidade, nove em cada dez escolas portuguesas têm acesso à Internet, mas o país está na cauda da Europa em termos do número de computadores nos estabelecimentos de ensino, segundo um relatório da Comissão Europeia divulgado esta sexta-feira. De acordo com o documento, que analisa o uso de computadores e Internet nas escolas em 2006, 92 por cento dos estabelecimentos de ensino em Portugal têm acesso à Internet, mas o número de computadores existentes não chega sequer a um por cada 15 alunos. Por cada 100 alunos, existem apenas 5,4 computadores em Portugal, um valor que corresponde a quase metade do registado na média da UE, fixada em dez computadores, e o terceiro mais baixo entre os 27 países analisados, só à frente da Letónia e da Lituânia. Por isso, a Comissão Europeia salienta que «são necessárias medidas políticas em Portugal para alcançar uma drástica melhoria do número de computadores nas escolas e da qualidade do equipamento, assim como das competências informáticas dos professores».

Enfim, neste espaço mortuário que nos aprestamos a ser, dos idosos às crianças, dos trabalhadores aos desempregados, das prostitutas aos reformados, nada escapa à fúria da onda cor-de-rosa.

Sustê-la, é mais do que um dever patriótico: é um simples acto de pura sobrevivência.


Crónica de: João Carlos Pereira
Lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 04/10/2006.
(Não deixe de ouvir e participar todas as quartas-feiras entre as 09H00 e as 10H00, em 98.7 Mhz)

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Olá Tio João Carlos
Já estou de volta depois de umas grandes férias que passei com os meus avós na aldeia deles que fica atrás do sol posto. Daquelas aldeias onde para se chegar a um médico demoramos 3 horas e às urgências, com o novo sistema, é um dia inteirinho.
Felizmente que os meus avós são pessoas saudáveis e ainda não precisaram de nada disso, mas não sei como vai ser daqui para a frente.
Ouvi a crónica de hoje e gostei muito daquelas coisas que o senhor Gonçalo Castro disse. Assim é que se fala... Quando for grande também quero ser rica (e socialista como ele) para não ter que me preocupar com as desgraças dos outros.
Desconfio até que ele nem tem de se preocupar com a conta do telefone quando liga para a Rádio Baía, pois não deve ser ele a pagá-la.
Beijinhos da Aninhas

4/10/06 6:31 da tarde  

Enviar um comentário

<< Home

1997, 2007 © Guia do Seixal

Visões do Seixal Blog Directório Informações Quem Somos Índice