08/02/2006

E Jesus Cristo é marine?

Não sigo qualquer religião, pelo que, de um modo ou de outro, todas elas me parecem coisas estranhas, meras fantasias desnecessárias – e só não digo que existem fora de qualquer contexto racional, porque as considero, em muitos casos, meios excepcionalmente racionais de arregimentação e controlo de milhões de seres humanos: os crentes. Contudo, não tento impor a minha não crença a ninguém, da mesma maneira que não reajo bem quando alguém tenta impingir-me aquilo em que acredita.

Como é normal, conheço melhor a religião católica, na qual, aliás, fui iniciado ainda garotinho, e tive de suportar, a contra-gosto, as missas dominicais, a catequese e a primeira comunhão. Mas, aí por volta dos onze, doze anos, consegui libertar-me do sacrifício que era sujeitar-me aos ritos litúrgicos e às ladainhas, e nunca se me revelou, daí para cá – como antes nunca se me revelara – qualquer vestígio do chamado mistério divino. Se tivesse vivido nos santificados tempos da Santa Inquisição, o mais certo era ter acabado os meus dias feito archote, depois de ter passado tratos de polé nos cárceres misericordiosos do Santo Ofício.

Não acredito, nunca acreditei, e pronto! Mas também não hostilizo. Porém, vivo numa sociedade onde o fenómeno religioso é uma realidade que afecta crentes e não crentes, e onde, pelas mais diversas vias, a influência da hierarquia religiosa sai do âmbito restrito dos locais de culto e tenta impor os seus pontos de vista – os seus dogmas – como algo inquestionável, não só para os seguidores do culto, como – e especialmente – para a generalidade da população. É como se existisse sempre, sobre a cabeça de quem não obedece a Roma, uma espada e um estigma. Como se os não crentes fossem as ovelhas negras do rebanho humano, algo que oscila entre um ser depravado e um ser incapaz de entender a verdade revelada por ela, a hierarquia religiosa. Um ser, em suma, a quem está reservada a condenação eterna, mesmo sabendo-se que o catolicismo é apenas uma religião – e não a maior – entre muitas outras. Não crentes à parte.

E é precisamente porque vivo numa sociedade onde a religião se intromete em tudo e, por consequência, se intromete diariamente no nosso quotidiano, onde tenta impor-se como detentora da verdade absoluta, que, aqui ou ali, me sinto legitimado para reagir ao abuso. Serve isto para dizer que não me daria ao trabalho de abordar assuntos religiosos, se os assuntos religiosos não me fossem servidos a qualquer hora do dia ou da noite.

Mas vem isto tudo propósito das caricaturas do profeta Maomé, publicadas por um jornal dinamarquês.

Em primeiro lugar, deve dizer-se que essas caricaturas não se limitaram a usar a figura de Maomé para ilustrar uma qualquer brincadeira religiosa, ou não. Nada disso: elas associavam o profeta àquilo a que o mundo ocidental decidiu etiquetar como radicalismo islâmico de matriz terrorista. Mais do que a utilização de uma figura central da religiosidade islâmica, está a visão arrogante de um cartoonista – o mesmo é dizer, neste caso, de uma civilização que se julga com o direito de tratar todas as outras como coisas menores, que podem ser espezinhadas e ridicularizadas sempre que lhe der na realíssima gana. Por isso, as caricaturas, para além de utilizarem uma entidade religiosa, servem o espírito de cruzada que o Ocidente, levado pelo cheiro do petróleo, reacendeu, especialmente com o advento do inominável George Bush, em relação ao mundo islâmico.

Em segundo lugar, e fruto dos vários séculos em que milhões de muçulmanos foram (e continuam a ser) duramente explorados, especialmente no chamado Médio Oriente, quer através do domínio colonial exercido por várias potências ocidentais, quer pelas monarquias ou ditaduras, que depois lá deixaram para tratar dos seus interesses, quase sempre com o petróleo relacionados – e algumas ainda hoje subsistem na região – pouco restou a esses povos para além de entregar a Alá a condução da sua vida. Povos sujeitos à injustiça, à miséria e à ignorância, povos condenados à mais dura sobrevivência, onde a esperança de um futuro menos sombrio é tão irreal como as miragem no deserto. E é aqui que o radicalismo é gerado, como única saída aparente para uma vida onde a dignidade humana deixe de ser tão fortemente aviltada. Uma vida que, de tão má, confere à morte o sentido de libertação redentora.

Em terceiro lugar, quanto mais inculto e oprimido é um povo, mais se agarra à força divina como tábua de salvação. Falam os nossos ricos, os ricos ocidentais, em Deus, mas não lhe pedem – se é que pedem alguma coisa – o que lhe pede o pobre. Deus, para os ricos, é uma figura de retórica, um adorno, um acessório, pois se o não fosse, agiriam de acordo com aquilo que se diz ser a sua vontade, e que Jesus Cristo terá pregado de forma tão clara. Nada que tenha a ver com aquilo que por esse mundo fora se faz, já que o que se prega é o contrário do que se pratica. Deus, para os pobres, no entanto, é a última esperança, é o bálsamo para as suas dores, o pão para a fome dos seus filhos.

Dizem os nossos arautos da liberdade de expressão – da chamada liberdade de imprensa – que caricaturas como aquelas, que tanta polémica estão a gerar, não passam, na nossa civilização (que é a única que se aproveita), de coisas aceitáveis e próprias de uma sociedade livre e democrática, onde a crítica e a opinião podem assumir as mais diversas formas. E dizem mais: que nós, «os civilizados», nunca reagiríamos como certos sectores do mundo islâmico estão a reagir.

Pode ser. Mas é muito fácil viver no meio da prosperidade, auferir ordenados principescos como comentarista, cartoonista, jornalista ou analista político – e só viver nessa prosperidade porque se sabe escrever, dizer ou desenhar o que convém aos seus patrões – e, do alto dessa abastança, não só gozar com a crença dos outros, como fazer disso um meio para contrabandear as ideias racistas e neocolonialistas que alastram por este civilizadíssimo mundo ocidental. E se o mundo islâmico é, como se diz, radical, pobre e ignorante, não será o mundo ocidental um espaço sem valores, insensível e pleno de arrogância intelectual, onde o dinheiro é o único e verdadeiro Deus?

Não é, por tudo o que disse, o aspecto religioso que me preocupa nas famigeradas caricaturas, embora suspeite que o artista não seria capaz de utilizar a ironia da sua arte noutros quadrantes. Para, por exemplo, denunciar as contradições entre a miséria que existe na Europa do Sul e a na América Latina, regiões de clara influência católica, e o ouro e os brocados que cintilam no Vaticano. Para chamar a atenção para essa obscenidade, que é o conforto luxuoso da hierarquia católica, quase toda anafada e coradinha, ao pé da miséria extrema que afecta milhões de católicos, sem que a Igreja faça mais do que pregar à resignação e à esperança na outra vida, a que chamam de vida eterna, enquanto os governos ocidentais, muitos deles seguidores de Roma e declarando-se tementes a Deus, são responsáveis por injustiças e atrocidades sem nome, onde uma guerra – ou várias guerras – são apenas meros detalhes. A ferro e fogo, como agora se vê, sempre governaram os donos da cristandade.

Por isso, pergunto se faria o senhor caricaturista dinamarquês, sem pôr em risco o seu emprego, (apesar da tal liberdade de imprensa) meia dúzia de caricaturas para, por exemplo, responsabilizar Jesus Cristo, o filho de Deus, pelo genocídio atómico em Hiroshima e Nagazaki, pelos bombardeamentos na ex-Jugoslávia e no Afeganistão? Seria capaz de desenhar Cristo, fardado de Marine, a pilhar os museus de Bagdade, a assassinar civis em Falujah, ou a bombardear aldeias no Paquistão? Atrever-se-ia a caricaturar o Deus dos católicos, disfarçado de agente da CIA, a torturar suspeitos na base de Guantanamo, a assassinar resistentes afegãos ou iraquianos, em prisões secretas na Europa e na Ásia, durante os interrogatórios a que os sujeitam? Ou de pôr a Virgem Maria em Abu Graib, em práticas obscenas com prisioneiros nus, empilhados em cima uns dos outros?

Que diria o senhor director do jornal dinamarquês se o seu caricaturista, à sombra da sua liberdade criativa e da jamais negada liberdade de imprensa e de opinião, fizesse umas graçinhas destas?

Fica a pergunta, porque a resposta, essa, todos nós a sabemos.


Crónica de João Carlos Pereira - Lida aos microfones da Rádio Baía em 08/02/2006

1997, 2007 © Guia do Seixal

Visões do Seixal Blog Directório Informações Quem Somos Índice