01/02/2006

Havias de ver…

Há muitos ouvintes que, por não gostarem de entrar em directo entre as 9 e as 10 de cada quarta-feira, me contactam depois, pessoalmente, por e-mail, ou telefonicamente, dizendo de sua justiça sobre o que aqui se passa. Influenciado por isso – e porque uma mudança de estilo já germinava há algum tempo na minha cabeça – decidi dar um novo formato às nossas «provocações». Não mudarei de objectivos, mas tentarei mudar a forma, tanto mais que me sinto mais à vontade se puder fantasiar sobre a realidade.

Veremos se isso agrada aos ouvintes, porque é para isso – para lhes agradar – que aqui estamos. Para isso, e para continuar o nosso combate pela democracia política, económica, social e cultural. A nossa luta contra a mentira e a desigualdade, contra as políticas que têm conduzido o nosso país para o esgoto, sítio que, como todos sabem, está sempre abaixo da… cauda.

Para isso – para dar vida a esse novo formato – vou trazer-vos, numa primeira fase, textos que escrevi há alguns anos no jornal Outra Banda, algumas deles sob o pseudónimo de André. Descobri – vejam lá! – que se mantêm perfeitamente actuais, o que nos permite avaliar como este país não anda, nem desanda. Comecemos, hoje, por um texto subscrito por esse tal André, personagem que, no dizer de alguns leitores, «escrevia ainda melhor do que eu». Eles é que diziam…

Vamos a isso:

«Há dias, estava eu a descansar de estar vivo, refastelado num banco de jardim, ali ao pé de um sítio que ninguém conhece, quando um gajo se sentou ao meu lado e disse: «Olá, boa tarde. Dá-me licença?». Eu, que tinha os olhos semicerrados, como convém a um tipo que está meio hibernado, grunhi qualquer coisa e fiz que sim, com a cabeça.

O gajo pigarreou e vi logo que o fulano queria meter conversa. Tás lixado, pensei, disposto como estava a não aturar ninguém, a começar por mim. Se vens à espera de trela, vais ficar a falar sozinho, concluí para mim mesmo. Foi quando o gajo disse: «Olha lá, põe-te em condições, que precisamos de ter uma conversa». Eu abri o olho direito e mirei-o de soslaio. E dei um pulo. O gajo era eu! Não podia ser. Voltei a fechar o olho, tentei manter a calma e reflectir. Estavas a sonhar, agora vais abrir os olhos e reparar que não está aqui ninguém ao teu lado, muito menos tu. Foi quando ele disse: «Não estás a sonhar, não. Sou mesmo eu, quero dizer: és mesmo tu que estás aqui. Vá lá, pá, vamos conversar».

Abri os olhos e virei-me para ele. Isto é: para mim. E ali estava eu, um pouco diferente do que costumo aparecer-me ao espelho, pois aí só vejo o meu simétrico. Entrei no jogo. «O que é que tu queres», perguntei, pensando se aquela seria a melhor maneira de dirigir a palavra a mim próprio. E ele, muito calmo: «Estou farto de ti… bem… de nós, isto é, do eu que tu és. Por outras palavras: acho que o eu que sou eu, deve começar a prevalecer sobre o eu que és tu», disse ele… ou eu, sei lá!

Entendi que o melhor era encarar aquilo como se fôssemos dois: eu e o meu contrário. «Afinal, onde queres chegar. O que há de mal em mim?», perguntei-lhe de sobrolho franzido. Riu-se. «O que há de mal em ti?! Para começar, há que tu não te enxergas. És um eremita, uma relíquia, um fóssil, um atraso de vida. Andas para aí, prenhe de belos princípios, de altos valores morais, a dividir o mundo em bons e maus, e a apelar à sublevação dos fracos e oprimidos contra os poderosos. Para quê?! Onde é que isso nos leva e, principalmente, onde é que isso te leva?».

Assustei-me. Aquilo era eu? Aquilo era a outra parte de mim? Já estava infectado desta maneira? Balbuciei: «Já estás assim? Já falas e pensas como eles?». Respondeu-me com rispidez: «Qual eles, qual carapuça! Nós, homem. Nós! Abre os olhos e o espírito. Somos todos da raça humana. Só que uns, assim… e outros, assado. Uns mais fortes ou inteligentes, outros mais fracos ou estúpidos. E tu nem és estúpido de todo, embora pareças. Queres o quê? Justiça, igualdade? Repartir à força? E o que é isso de justiça? Será justo tirar ao que foi capaz de agarrar uma grande fatia, para dar um bocado ao que não soube agarrá-la antes? Se dividirmos tudo o que há por todos, viveremos todos mal, o que é que julgas?».

Fingi entrar no jogo: Afinal, o que me queres propor?», indaguei. Respondeu-me: «A vida é curta, homem, e tu não podes mudar o mundo. (Onde é que eu já ouvira isto antes?). Junta-te aos fortes, aos ganhadores, porque se não o fizeres, tu é que perdes e ninguém ganha. Não vês o que acontece na política? Não vês que até os partidos que defendem certas políticas fazem o contrário mal chegam ao poder? Olha como eles, na prática, não se distinguem uns dos outros, sejam de esquerda, sejam de direita. Eles falam muito bem enquanto não chegam lá. Depois, são todos iguais. Não vês o que vai por aí, ou queres melhores exemplos?».

Concedi: «Sim, sei de gente que rosnou contra os jobs e os boys, e hoje são boys com belos jobs. Sim, sei de quem condene e excomungue nos outros aquilo que, se for feito por si, já é tudo virtude ou, no mínimo, uma fatalidade incontornável, que um dia se há-de resolver. Sei de quem condene certo tipo de empresas, mas aceite um tachito na sua administração. Sim, sei de quem se bata pela transparência e pelo exercício do poder desinteressado, mas, depois de instalado, não há ninguém mais opaco e agarrado às vantagens dos cargos. É com esses que me queres ver alinhado?». Perguntei.

Resposta do gajo, isto é, da minha outra parte: «Claro! Porque não? Já pensaste numa bela vivenda? Em férias em Cancun ou na República Dominicana? Adere ao esquema, meu! Olha: deixas de escrever nesse pasquim para onde escreves agora, e aceitas um convite que me pediram para te transmitir, para escrever num jornal desses que há por aí, sempre que houver espaço livre entre os anúncios. Dizes duas ou três aldrabices, e pronto. Acalmas durante uns tempos e, daqui a uns meses, vais para adjunto, ou assessor de um gabinete de imprensa ou de relações públicas de uma autarquia, ou para bufo e lambe-botas de um vereador. Há almoços grátis quase todos os dias, homem, e olha que só em bons restaurantes. São os almoços de trabalho, não sabes? Andas de gravata e fatinho, que podes deixar aos fins-de-semana, para usar coisas mais desportivas e ligeiras (mais democráticas), mas de marca, claro. Alinhas? Havias de ver…».

Virei-me, voltei a fechar os olhos e pus-me a pensar. O que é que eu faço a este gajo? Mandava-o para a tal senhora que o pariu, mas, afinal, somos filhos da mesma mãe, que era uma mulher isenta de pecado. Cuspo-lhe? Mas cai-me em cima. Ainda de olhos fechados, virei a cara para o outro lado, depois abri os olhos, levantei-me e pus-me a andar, sem olhar para trás. Via as pessoas que por ali andavam, sombrias, tristes, pesadas, tristonhas, e senti-me como se fosse cada uma delas. Amei-as. E também senti que nunca estivera tão de bem comigo.

Olhei, então, para o banco que, naturalmente, estava vazio. Mas se ele estivesse lá… havias de ver».

Estas linhas foram escritas em Abril de 2004. Lembrei-me delas quando vi o Boletim Municipal do Seixal dar grande destaque ao facto de uma empresa intermunicipal ir tratar do saneamento básico do concelho, apresentando a coisa como se de um grande feito se tratasse. Não está lá dito, mas eu sei que essa empresa, onde as câmaras municipais são minoritárias, vai ser, mais dia, menos dia, privatizada. Então, nós iremos pagar taxas de saneamento elevadíssimas, pois seremos obrigados a pagar os lucros de quem a comprar.

Bem fez Almada, que, por nunca ter brincado com os dinheiros públicos, construiu a sua rede de saneamento à custa do seu próprio orçamento. Não pôs a qualidade de vida e os bolsos das suas populações nas mãos de interesses privados. Isso, caros ouvintes, é ser de esquerda. É trabalhar com honestidade e competência.

O resto... é conversa fiada.


Crónica de João Carlos Pereira - Lida aos microfones da Rádio Baía em 01/02/2006

1997, 2007 © Guia do Seixal

Visões do Seixal Blog Directório Informações Quem Somos Índice