28/12/2005

Os Verbos-de-Encher

Rezam os dicionários que a expressão verbo-de-encher significa «palavra, acto ou pessoa desnecessária; pessoa que só faz número, sem préstimo, pessoa inútil». Na linguagem comum, aplica o povo esta expressão quando pretende designar alguém que parasita os demais, que se instala num cargo e, sem nada fazer de útil, se enche com aquilo que o cargo tem para dar. O verbo-de-encher é, segundo o senso comum, um parasita oportunista, um sanguessuga, uma carraça, um descarado aproveitador do suor – e do sangue – dos outros.

A expressão veio-me à ideia numa altura em que os políticos, percebendo que a sua imagem andava pelas ruas da amargura (outra expressão popular que não carece de explicação livresca), iniciaram uma campanha para modificar a ideia negativa que os cidadãos deles formaram. Agora, tentam fazer-se passar por gente que se sacrifica em prol dos seus semelhantes, um exemplo de altruísmo e de entrega, enfim, uns novos Cristos capazes de se deixarem pregar na cruz se a felicidade do povo o exigir.

«Tarde piaste», dirá o povo, que tem sempre a língua armada com um arsenal léxico para carimbar – ou atirar – à malandragem, seja ela a mais rasteira ou, como é o caso, a de mais alto coturno.

Mas tudo isto me veio à ideia quando, olhando distraidamente a televisão, me passou pela frente uma estranha figura que tardei em identificar como o primeiro-ministro (e engenheiro sem obra feita, que se saiba), de seu nome José Sócrates. Mas era ele, conforme percebi, depois de esfregar longamente os olhos. Abundantemente retocado, tão pintado como se duma miss universo se tratasse, com as sobrancelhas e os olhos artisticamente salientados com claros/escuros espampanantes, as pálpebras com brilhos de madrepérola – só a custo se poderia chamar àquilo maquilhagem – o senhor primeiro-ministro estava lindo, verdadeiramente belo, angélico, até. Quase divino. Depois, com a sua voz delicadamente aflautada, toda cheia de entoações e requebros magnificamente estudados, com as mãos e os braços em discretos afagos às frases que ia debitando, ofereceu-nos uma mensagem de Natal que, se passar no próximo Carnaval, vai ser um sucesso.

Mas disse-nos o quê, esta aparição quase travestiana, este anjinho alantejoulado que os deuses mandaram à terra para nos salvar da perdição?

Disse, em termos gerais, que não vamos para o paraíso se não compreendermos os sacrifícios que ele e o seu governo nos estão a impor e, principalmente, se não cooperarmos nessa tarefa sacrificial. Disse, usando eu uma linguagem teológica tão adequada à época, que somos os carneiros que é necessário agora imolar aos deuses para que, num dia que há-de vir, todos sejamos felizes. Explicou que, em 2005, começámos a enfrentar e a resolver os nossos problemas, parecendo não saber que, desde sempre, todos nós, os que não vivemos do trabalho dos outros, mas do nosso – e que não fomos para a política para sermos «verbos-de-encher» – sempre enfrentámos e resolvemos a maior parte dos nossos problemas. Aliás, o grande problema que nos falta resolver, e do qual depende a resolução de todos os outros, é pormos com dono e a trabalhar numa profissão qualquer os «verbos-de-encher» que se têm enchido à nossa conta, e entregarmos a governação do país a gente séria, a gente nossa, a gente que não se venda ao deus dinheiro, a gente que governe para todos, e não apenas para os que têm muito. Que governe, especialmente, para os que pouco ou nada têm, fazendo deles cidadãos de primeira. De corpo inteiro…

Quanto ao resto, a mensagem natalícia do primeiro-ministro-lantejoula foi um chorrilho de lugares comuns e promessas de dias melhores, coisa que eu oiço há muitos anos pelos aldrabões de serviço em cada Natal. Pelos sucessivos «verbos-de-encher».

Falando de Natal, vem a propósito trazer a esta conversa a morte de duas meninas de três e cinco anos, a Bianca e a Vanessa, vítimas, por um lado, da negligência dos pais e, por outro, do facto fortuito de terem nascido em Portugal e serem meninas que, tal como acontece a milhares de outras crianças, nunca foram… meninos, como disse Soeiro Pereira Gomes. Moravam na Urbanização Vila d’Este, em Gaia, e estavam sozinhas em casa, onde, segundo se disse, não havia água nem luz, mas lixo e desleixo por todo a lado. Os pais, à hora em que deflagrou o incêndio que as vitimou, estavam no café…

A urbanização Vila d’Este é mais uma como centenas – ou milhares – de outras em Portugal, onde se concentram milhares de pessoas afectadas pelas mais diversas mazelas sociais. Desemprego, baixos salários, trabalho precário, doenças de todos os foros, baixas perspectivas de vida, desesperança e, consequentemente, a consolidação de valores éticos e sociais muito condicionados. A droga e o seu tráfico, a adopção de padrões de comportamento marginais como única resposta visível para as frustrações que decorrem de uma sociedade desigual e injusta, as crianças a conviverem com essa degradação familiar e social que as envolve, a habituação à miséria por parte dos que desistiram de esperar e de acreditar na sociedade, uma comunidade inteira metida num gueto, onde só emergem algumas boas vontades e uma auto-organização incipiente e ineficaz face à indiferença do poder político e dos seus agentes – é esse o quadro.

Quando o ministro do Trabalho e da Segurança Social, entrevistado a este respeito, a meio de um almoço de bodo aos pobres, organizado pelo aparelho socialista de Loures, sacode a água do capote, e o mesmo faz a Comissão de Crianças e Jovens em Risco de Gaia, tal como a Segurança Social, que atira para cima da autarquia, dizendo esta ter feito tudo o que devia, e quando todos dizem que fizeram o que deviam, só pode chegar-se à conclusão de que ninguém tem culpa de nada, que são todos, ao fim e ao cabo, um bando de irresponsáveis. E são. Afinal, todos eles se limitam a servir políticas que, ao invés de resolverem estes problemas, estão na sua origem. São a sua causa.

Diz a comunicação social que os problemas de Vila d’Este foram, em devido tempo, apresentados aos diversos poderes, incluindo a Presidência da República, que nem se dignou responder. Se calhar – digo eu – porque o tempo de «haver mais vida para além do défice», como disse uma vez Jorge Sampaio, só se aplica se o governo for do PSD. Sendo do PS, já o problema do défice é mais importante do que os problemas das pessoas, do que a VIDA, mesmo que seja a vida das mais de 200 crianças em situação de risco existentes naquela urbanização de Gaia.

E pela comunicação social também ficámos a saber que o caso dessas mais de 200 de crianças estavam, no ano passado, nas mãos da Comissão de Crianças e Jovens em Risco de Gaia. 106, por situações de risco, e 95 por negligência familiar. Isto sem contar com os cerca de 180 processos de absentismo escolar, também do conhecimento daquela comissão. Estes dados foram divulgados pela Associação de Proprietários da Urbanização de Vila d’Este no Diagnóstico Social do Concelho, levantamento que abrangeu os 16.710 habitantes da urbanização.

E foi com base neste retrato negro que a associação apresentou, à Segurança Social, o projecto «Futuro para Todos», no âmbito do programa «Ser Criança». Porém, os argumentos apresentados não sensibilizaram o Conselho Directivo da Segurança Social que, em 27 de Outubro, rejeitou a proposta, apesar de pareceres favoráveis da direcção distrital do Porto, da Comissão de Protecção de Menores e do Concelho Local de Acção Social. Justificação? «Insuficiência orçamental do programa». Pudera! Há que financiar o Lisboa / Dakar, o campeonato do Mundo de Vela, há que pagar a derrapagem dos estádios do Euro, que ficaram por mais do dobro, os ordenados e reformas de luxo dos governadores e vice-governadores, dos administradores, presidentes e vice-presidentes, dos deputados, ministros e presidentes da República, (este, os idos e os por haver), etc, e por aí fora.

Com este chumbo, ficaram por terra as intenções da associação em alargar as actividades de tempos livres até às 22.30 horas, tirando das ruas quem não tem, em casa, cuidados básicos e, sobretudo, carinho. Os meios de que a associação dispõe não deixam que o espaço ocupacional que possui tenha as portas abertas para além das 18 horas. Depois disso, 5.535 crianças e jovens ficam entregues a si próprios, muitos deles servindo de correio no tráfico de droga – sendo alguns já toxicodependentes.

Isto, veio nas páginas interiores de alguns jornais, foi referido por outra comunicação social, e não é só um retrato de Vila d’Este. É um retrato do próprio país. Aliás, a quadra festiva que atravessamos está a mostrar, nas chamadas iniciativas de solidariedade que por aí acontecem, como os pobrezinhos são uma coisa enternecedora, são mesmo do melhor que há para fazerem saltar de nós, os mais felizes (os pobres são, apenas, os «menos felizes» estão a perceber a subtileza?...) os mais belos sentimentos. Que haja sempre pobrezinhos, para nós podermos bem-fazer e salvar as nossas almas. E, já agora, libertarmos o Orçamento Geral do Estado do peso desses nossos irmãos «menos»… afortunados.

Sócrates pintou-se e aperaltou-se todo para nos tentar convencer à imolação silenciosa e, mesmo, à auto-imolação. «Não vou por aí!», disse José Régio no seu famoso Cântico Negro.

«Não vou por aí!»

Nem eu!


Crónica de João Carlos Pereira - Lida aos microfones da Rádio Baía em 28/12/2005

1 Comments:

Blogger x said...

Caro João Carlos

Esta tua última crónica fez-me lembrar aquilo que escreveu o Jornalista e Dramaturgo Brasileiro Joracy Camargo no seu “Deus lhe pague”, em que, a troco de uma miserável esmola, todos os pecados ficariam mais aliviados e as consciências mais tranquilas.
Quem ainda não leu ou não teve oportunidade de ver esta peça representada, sugiro que o façam, pois daí poderão tirar algumas ilações e fazer algumas comparações sobre o mundo em que vivemos.
Ainda ontem, dia 28 de Dezembro, estava a dar qualquer coisa na televisão sobre uma recolha de fundos para ajudar não sei quem no estrangeiro, aproveitando o evento do Dakar para a sua promoção.
Parece-me, salvo melhor opinião, que são demasiadas as recolhas para ajudar neste ou naquele país que precisa muito, quando nos esquecemos que na nossa própria casa temos carências abismais e que não estamos assim tão longe desses tais considerados países de 3º mundo.
Não tenho qualquer dúvida sobre a fome que existe em África; mas também não tenho dúvidas sobre a fome que existe em Portugal.
Não tenho qualquer dúvida sobre a falta de ambulâncias em S.Tomé, mas também não tenho dúvidas sobre a falta de um simples transporte para levar pessoas que vivem isoladas em Portugal para se deslocarem a um hospital ou a um centro de saúde.
Não tenho qualquer dúvida sobre a falta de habitação que existe em Timor, mas também não tenho dúvidas sobre as carências habitacionais de quem ainda vive em barracas em Portugal.
Não tenho qualquer dúvida sobre as carências que as crianças e adultos deficientes de Angola têm, mas também não tenho dúvidas sobre a falta de apoio a todos os deficientes em Portugal.
Parece-me que estas campanhas não passam de pura hipocrisia, onde uns quantos se vão auto-promovendo - e arrecadando dividendos - à custa das más consciências de uns quantos e da generosidade de outros tantos.
Por tudo isto é que cada vez dou menos importância à quadra festiva que atravessamos, não alinhando no consumismo desenfreado nem dando esmolas para aliviar a minha consciência - que continua a estar muito tranquila - pois para mim os males do mundo são todos os dias e não só nesta época.

Um grande abraço,

Celino

29/12/05 6:16 da tarde  

Enviar um comentário

<< Home

1997, 2007 © Guia do Seixal

Visões do Seixal Blog Directório Informações Quem Somos Índice